quinta-feira, 26 de setembro de 2019

KNS004.02. Vaqueiros em fúria desmedida

Shelby King, montado no seu belo alazão de pelo brilhante, aproximou-se dos enormes currais situados nos arredores de Abilene, onde naquele momento acabara de entrar uma enorme manada.
O pó levantado por aqueles milhares de cascos, dirigia-se em espessas nuvens para o céu azul, que parecia inflamado pela enorme bola de fogo do sol.
Era um espetáculo magnífico. Os mugidos das fatigadas reses, cujos olhos avermelhados, denunciavam as longas jornadas percorridas desde os pastos do Sul, atroavam os ares. Junto a isso, os gritos dos «cowboys» e os tiros que disparavam, para dirigir o gado na direção mais conveniente, de modo a fazer abortar qualquer tentativa de fuga.
O rapaz, com um largo «sombrero» de cor creme, aproximou-se do lugar onde um cavaleiro de cabelo grisalho, presenciava as manobras.
— Prazer em vê-lo, Stanley — foi o cumprimento de King, colocando-se ao lado do proprietário.
— Caramba, Shelby! Não esperava que viesses visitar-nos tão cedo!
— Interessa-me sempre a chegada de qualquer manada. Que tal a Rota?
— Como de costume, um inferno!
— Foram incomodados?
— Houve tiros e tivemos de pagar o tributo. Um pouco de tudo para amenizar a travessia.
Os dois homens olharam-se, sabendo ambos que pensavam na próxima pergunta. Shelby, olhando os olhos cinzentos do seu velho amigo, adivinhou a resposta.


— Há gado doente?
— O costume.
Shelby olhou para a manada e calculou três mil cabeças.
— Epidemia?
— Sei lá!... — o vaqueiro cuspiu para longe. —Não lucro nada vir a Abilene. Antes, eram os índios. Agora... isto. Tenho cerca de mil reses enfermas.
— Céus! — disse o rapaz assustado. — É muito gado.
-- Não voltarei aqui.
Shelby indagou:
— De onde teria chegado ao Sul, esta epidemia?
Stanley voltou vivamente o seu rosto para ele.
— No Sul não há uma só rês enferma. É à chegada a Abilene que nasce a epidemia.
— Mudança de pasto ou de água?
Stanley estava pensativo. Os olhos, muito abertos, contemplavam a tarefa que os seus «cowboys» desempenhavam, cavalgando infatigáveis em torno da manada, introduzindo-a nos currais destinados para o efeito, onde a erva fresca e amplos bebedouros ofereciam ao gado fatigado, uma breve recuperação.
— Você está a ruminar qualquer coisa, Stanley — disse o rapaz. — Ora diga lá...
— Nada posso dizer. Só que tenho mil cabeças de gado doentes. E que o causador disto, lamentará tê-lo
Shelby pôs a sua mão no ombro do seu interlocutor.
— O seu causador? O que é que você sabe, Stanley? Tem de me dizer! É um assunto muito importante!
— Só para nós os que vendemos gado. Vocês não compram gado doente, portanto nada perdem com isto.
— Está enganado. A perda desse gado, prejudica-nos enormemente. A Associação dos Criadores de Gado de Abilene, incumbiu-me de investigar o que há fora do normal nesta epidemia.
— Isso mesmo, rapaz. Não é natural.
— O que quer dizer...
— Que alguém a provoca. Sim, alguém muito poderoso para tentar tal golpe.
Shelby considerou durante alguns momentos aquela possibilidade.
— Como é que se pode provocar uma epidemia tão grande?
— Não é difícil. Basta contagiar algumas reses. A doença propaga-se num instante.
As últimas cabeças de gado tinham entrado nos currais e os «cowboys» desmontaram, para descansar.
— A verdade é que não podemos ficar indiferentes, Stanley. Ajude-me e procurarei pôr termo a esta situação.
O vaqueiro refletiu uns instantes, considerando se se poderia fiar no seu jovem amigo. Por fim, pareceu decidir-se.
— Vê aquele cavaleiro?
Apontou com o queixo, para um dos vaqueiros que acabara de pôr os arreios no seu cavalo, afastando-se dos currais.
— Sim.
— Ele sabe de qualquer coisa. Suspeito dele. Agora vai sozinho até à cidade.
Com efeito, o «cowboy» esporeava o seu cavalo e tomava o caminho que conduzia a Abilene.
— Como é que ele se chama?
 — Spotmann. Contratei-o ao chegar a San Ângelo, em virtude de um dos meus homens ter morrido.
Shelby decidiu-se, e fazendo voltar o seu alazão, pediu:
— Não diga a ninguém. Deixe o caso por minha conta.
Picou as esporas, afastando-se em poucos momentos do lugar onde tinha presenciado a tarefa de encurralar o gado.
Spotmann cavalgava a bastante distância, sem suspeitar que era seguido. O vaqueiro chegou à cidade e meteu-se pela rua principal. O jovem membro da Associação, atrás dele, não o perdia de vista, aproximando-se o mais possível, escudado no movimento da rua.
A essas horas da manhã, o movimento em Abilene era enorme. Via-se claramente ser uma cidade heterogénea, com jogadores profissionais, bailarinas, músicos, mulheres de vida fácil, etc...
Os vaqueiros quando lá chegavam, após três meses de rudes trabalhos, enchiam as ruas com um frenesi louco, que só acabava quando os dólares acabavam também. Depois voltavam a formar equipa, em viagem de regresso para o Sul, para obter no fim idêntica recompensa de prazeres.
Spotmann desmontou diante duma casa de aspeto refinado e excelentemente construída. Amarrou as rédeas a um poste e subindo umas escadas, bateu à porta, com a pesada aldraba de bronze.
Shelby desmontou por sua vez e franziu a testa, perguntando a si mesmo o que poderia fazer um vaqueiro recém-chegado da pradaria, em casa de Walcott, banqueiro de Abilene, membro da Associação.
A porta abriu-se e apareceu Leona, a filha de Walcott. Uma mulher de cabelos louros, olhos verdes brilhantes e lábios rubros como cerejas. Parecia preparada para sair.
Do lugar onde se encontrava, Shelby só podia ver. E observou o deslumbrante sorriso dela saudando o «cowboy» barbudo e os movimentos negativos da sua linda cabeça. Spotmann murmurou qualquer coisa, tocou com dois dedos a aba do chapéu e regressou ao seu cavalo, disposto a prosseguir a marcha.
Shelby ia fazer o mesmo, mas ao ver que a rapariga fechava a porta atrás de si, decidiu deixar para depois o encontro com o vaqueiro.
— Bom-dia, Leona — cumprimentou.
A mulher fitou-o. Ninguém poderia dizer se nos seus olhos verdes havia ódio, afeto, agrado ou desprezo. A Shelby, pouco lhe importava, na verdade. O seu espírito estava obcecado por outros pensa-mentos.
— Olá, Shelby — disse — Parece que tens quer coisa para me dizer.
— É um facto.
Tinham parado. Ela olhava-o de frente, desafiando-o e fulminando-o ao mesmo tempo, como uma domadora perante uma fera, de chicote na mão.
— Há muito tempo que não nos víamos — começou ele.
— Sim? Não tinha dado conta.
— Supunha o contrário.
As faces da rapariga coraram levemente e os seus belos lábios feitos para beijar, crisparam-se.
— Não me agrada o teu ar conquistador, Shelby. Nem gosto doutras coisas em ti. De maneira que...
Ele deteve-a, agarrando-a por um braço. A pele dela ardia e debaixo dos dedos firmes do homem parecia tremer.
— Não sejas tão desdenhosa, Leona. Não o tens sido das outras vezes.
As palavras do rapaz eram carregadas de intenção... Sem saber porquê, disse aquilo, como se desejasse ferir o orgulho feminino e rebaixá-la o máximo possível.
— És odioso!... — exclamou ela.
Pensavam ambos no mesmo: no baile do fim do ano, prolongado até alta madrugada, ela tinha-se abandonado à embriaguez da música, dos licores e ao capricho passageiro. Passaram umas horas que nenhum dos dois poderia mais esquecer. Nos dias seguintes, nada ocorreu. Talvez tudo tivesse tido o caminho normal, se Leona fosse menos soberba; talvez o casamento os esperasse, após aquela noite. Mas Shelby reagiu a tempo, libertando-se da paixão momentânea que os tornaria forçosamente infelizes e tinha repelido, uma após outra, as oportunidades que ela procurara para um novo encontro.
Por isso, Leona odiava-o, com todas as forças duma mulher, desejada e desdenhada, ao mesmo tempo.
— Não te tenho falado para não recomeçar mais uma das nossas discussões, Leona...
— Não? Creio que as tuas palavras não podem ser mais ofensivas.
— Lamento-o. Mas irritas-me com a tua soberba e orgulho. Se soubesses dominar-te, poderíamos ser bons amigos.
— Não recomeces, Shelby — replicou ela, imediatamente. — Não quero nenhum tipo de amizade contigo.
O rapaz, terminou friamente:
— R a única coisa que podemos ser.
Ela começava a afastar-se, sem se despedir, quando se sentiu agarrada pela mão direita de Shelby, que se lhe tinha pousado no braço como uma garra. Shelby perguntou:
— Porquê tanta pressa? Tenho de falar contigo!
Ela estremeceu, levantando o seu busto soberbo, avançando o queixo e mordendo os lábios, fulgurante e sensual.
— Deixa-me...
— Antes, tens de me dizer que relações te prendem a esse vaqueiro que acaba de te visitar.
Ela voltou a cabeça rapidamente, para ele.
— Ciúmes?
— Sabes perfeitamente que não se trata disso. Não tenho ciúmes de ninguém que se aproxime de ti. Vinha a seguir esse vaqueiro, esse Spotmann. Quem é?
Ela pareceu respirar e riu nervosamente.
— Dá-me vontade de rir o teu aspeto! É o que tu disseste: um vaqueiro.
— Que queria de ti?
— Adivinha-o!
Voltou a rir-se e com um puxão brusco soltou-se e afastou-se.
— Cada vez estás mais estúpido, Shelby.
Voltou-lhe as costas e seguiu o seu caminho, majestosa como uma rainha, sinuosa e «coquette», tirando o máximo partido do singular corte do seu vestido. Irritado, o rapaz viu-a afastar-se maldizendo interiormente a sua falta de tacto, demonstrada ao lidar com ela.
Apertando os punhos, voltou junto ao seu cavalo e montando-o, procurou orientar-se, de maneira a encontrar Spotmann. Não lhe custou muito trabalho. Como tinha suposto, bastou-lhe percorrer alguns «saloons», para acabar por o encontrar, na companhia de três «cowboys», todos em volta duns copos cheios de «whisky», duma garrafa acabada de abrir.
Aproximou-se deles silenciosamente, procurando surpreender a sua conversa. Naquele momento Spotmann dizia confiadamente:
— Foi um belo trabalho, asseguro-vos. E nada difícil. Daquela maneira pode liquidar-se qualquer manada.
Shelby perguntou:
— Quem te paga para fazer isso?
Os quatro vaqueiros voltaram-se imediatamente. Spotmann empalideceu intensamente e levou as mãos aos coldres.
— O que é que procuras aqui?
— Um miserável e encontrei-o. Tira as armas e marcha à minha frente. Vou levar-te ao xerife.
Spotmann sorriu.
— E pensas fazer isso tudo só- zinho?
— Assim o espero — disse Shelby, sorrindo friamente.
Os três companheiros do traidor separaram-se, oferecendo assim menor alvo e aumentando as suas possibilidades de agir. O rapaz percebeu a manobra.
— É melhor que se vá embora. Venho de longe e tenho fome. Estou desejoso de comer um tipo como tu... e cru.
— Devo ser indigesto, com certeza. Vamos?
No «saloon», as conversas tinham diminuído de intensidade e a maior parte dos presentes concentravam a sua atenção sobre eles, desejosos de são perder o espetáculo que se previa.
— Não volto a repetir, Spotmann.
Fitaram-se. Shelby tinha de tomar atenção a quatro adversários, que separados, diminuíam o seu raio de ação. E de repente começou...
Spotmann e os seus companheiros, empunharam os «colts». Shelby imitou-os. Soaram tiros como latidos de cães raivosos. Um furacão de chumbo encheu o local e os restantes clientes meteram-se debaixo das mesas para fugir às balas.
Os vaqueiros iniciaram o bailado da morte...
Os dois primeiros largaram os revólveres, como se fossem brasas. Uma golfada de sangue abafou os gritos do terceiro. Spotmann caiu para trás, como se tivesse sido escoiceado por um potro selvagem. O seu corpo depois de bater no balcão, deslizou lentamente até ficar sentado, com um fio de sangue a escorrer--lhe dos lábios. A luta tinha sido tão rápida, que tinha acabado segundos depois de começada. Shelby precipitou-se para o corpo de Spotmann e ajoelhando-se junto dele, verificou que estava vivo ainda.
— Depressa, uma cama! — pediu ao dono do «saloon», cuja cabeça começava a aparecer, por detrás do balcão.
A confusão generalizara-se, passados os primeiros momentos de tensão. Um cliente que estava mais do que alegre, dizia:
— Caramba! Eu não percebo nada!... Tanto barulho para matar um tipo... e depois tanto barulho para evitar que estique o pernil! Não percebo nada!...
Shelby ajudado por outro vaqueiro, levou o ferido para um pequeno quarto, onde o deitaram. O dono do «saloon» resmungou:
— Não deve tardar o «Matagente». Já o avisei.
Efetivamente o galeno irrompeu pelo quarto, com a casaca ainda meio vestida.
--- Vou-me embora desta maldita cidade! — disse ao entrar com o rosto congestionado. — Não faço outra coisa senão ajudar as pessoas a irem desta para melhor! Quem é que fez isto?
Soltava estes gritos e outras expressões menos edificantes, à medida que prestava os primeiros socorros ao ferido.
— Fui eu o autor, «Matagente» — informou-o Shelby.
— Bem podia empregar o seu tempo, doutra maneira! Julga que não tenho suficiente trabalho, em Abilene?
A seguir o pitoresco médico calou-se, concentrando-se na tarefa de extrair a bala e estancar a hemorragia. Quando terminou, disse:
— Pronto!
— Salvar-se-á?
— Para lhe meter outra bala, não?
— Não, doutor. Preciso de o interrogar.
O médico olhou-o.
— Tivesse acertado mais abaixo!
— Enganei-me...
— Se se salvar, acabarei por ter de lhe coser outro buraco. Bem, amigos, se voltarem a lutar, não me avisem. Não quero saber de feridos!
E saiu. O rapaz voltou ao quarto e examinou Spotmann que respirava com dificuldade. O dono aproximou-se:
— Quem é que vai cuidar dele?
— Você ou alguém da casa. Eu pago. E pago bem.
— Oiça, isto é uma casa para beber, não é um hospital.
— Pois agora serve de hospital. É um... pedido.
O dono estremeceu. Os olhos frios de Shelby King ao pedirem, ordenavam...
— Está bem. Porei alguém a tomar conta dele.
O rapaz tirou um maço de notas e meteu algumas nas mãos do proprietário do «saloon», dizendo:
— Para as primeiras despesas.
Depois saiu. À saída cruzou-se com o xerife de Abilene.
— Disseram-me que houve zaragata — disse o representante da Lei. — Com efeito. E o resultado está à vista. Qualquer dos presentes explicar-lhe-á. Eu tenho de ir...
Mas o xerife obstruiu-lhe a passagem.
— Não tenha pressa, King. Gosto de conversar consigo...
— Já lhe disse que...
— Fixe bem esta estrela, King, olhe bem para ela! Ela significa que posso dar ordens... e estou a dá-las. Matou três vaqueiros e o quarto, está entre a vida e a morte, King. Compreendo a sua pressa. Mas tenho outra opinião, King.
Era uma ameaça velada, cuja desobediência não era aconselhável. Shelby cedeu.
— Está bem. Que deseja?
— Primeiro ver o que aconteceu. Quer entrar?
Sorria ao convidar. Ao entrar, viu, sem comentar, os corpos contorcidos dos vaqueiros mortos. Depois entrou no quarto, onde Spotmann respirava debilmente. Por fim, saiu.
— Agora explique-me tudo, King.
— Faz - se com poucas palavras. Perseguia Spotmann e quis prendê-lo, para o levar junto de você. Não obedeceu e os seus companheiros concordaram com ele. Depois... ou eles ou eu...
— Porque seguia Spotmann? E porque é que o queria prender? Fale King, estou a ouvi-lo.
Olhando em volta e vendo que os curiosos se agrupavam em torno deles, o rapaz aconselhou:
— Este não é o lugar mais apropriado para conversar, xerife. Vamos ao seu gabinete.
O xerife Canory ia a responder, mas calou-se. Olhou em volta e dirigiu-se para a porta do «saloon».
— Talvez tenha razão. Vamos?
Uma vez no gabinete do representante da Lei, Shelby explicou tudo, acabando por dizer:
— É preciso interrogá-lo. Ele sabe qualquer coisa. Qualquer coisa muito importante. Talvez o nome do homem que planeia estes envenenamentos, estas epidemias que dizimam as manadas.
Canory calou-se durante uns momentos, afagando o rosto com a sua mão direita. Parecia com isso, aumentar a produção de ideias. A sua enorme e pesada figura, lembrava um enorme paquiderme, violento, mas lento de ideias e reações.
— Porque é que não me pôs ao corrente do que se passava? Isso indica pouca confiança em mim, King. E creio ter dado à Associação suficientes provas da minha inteireza — lamentou-se o xerife.
O rapaz apressou-se a declarar:
— Até ontem não tinha comunicado as minhas suspeitas a ninguém. Fi-lo no Conselho da Associação... e fizeram pouco de mim. Agora procuro demonstrar a exatidão da minha teoria.
— Posso ajudá-lo nalguma coisa?
— Sem dúvida, xerife. Ainda não sei como. Estou no meio dum mar de dúvidas e confusões. Ignoro tudo. Só tenho suspeitas... e estas de nada servem.
Canory levantou-se e passeou pelo escritório, com as mãos atrás das costas.
— Eu tratarei do seu ferido, King. E terei os olhos bem abertos. Se precisar de mim, diga-o. Gosto de Abilene. E aborrecer-me-ia que estas coisas entravassem o progresso da cidade.
O rapaz, aproximando-se da porta, despediu-se:
— Vou ver Stanley, proprietário da manada e patrão de Spotmann.
Saiu e montando no seu alazão, afastou-se da cidade. Pouco tempo depois chegava aos currais, onde se encontrava o gado. Estranhou não encontrar ninguém. Não era normal aquela ausência de vigilância.
Conduzindo a sua montada com os joelhos, subiu uma pequena colina e viu os vaqueiros formando um grupo. Um silêncio enorme reinava naquele lugar. Todos, em semicírculos, permaneciam estranhamente imóveis. Compreendeu o motivo daquela imobilidade, quando se aproximou mais. E adivinhou o resto, ao ouvir uns débeis gemidos femininos, surgirem do meio dos vaqueiros.
Desmontou e só então se aperceberam da sua presença. Os vaqueiros olharam pada ele e abriram alas, mostrando o triste espetáculo de uma frágil rapariga muito morena, ajoelhada junto ao cadáver de um homem, no qual reconheceu o seu velho amigo Stanley.
Ficou sem pinga de sangue e cerrou os dentes. Um buraco sangrento notava-se nas costas do velho vaqueiro que, como lhe tinha dito horas antes, jamais voltaria a Abilene. Com a voz embargada pela comoção, perguntou:
— Como é que isso sucedeu?
A jovem que chorava sobre o corpo já frio, levantou a cabeça. Tinha as faces bronzeadas e os olhos enormes, marejados de lágrimas. Os lábios carnudos, tremiam de espanto e dor e toda ela parecia aniquilada pelo sofrimento.
Shelby contemplou-a largamente. Não devia ter mais de dezassete anos, mas já tinha o corpo bem formado e a sua figura era intensamente agradável à vista. Os cabelos escuros, caídos sobre os ombros, pareciam atacar-lhe as faces pálidas. Um dos vaqueiros informou:
— Encontrámo-lo assim.
— Ninguém sabe mais nada?
O capataz destacou-se do grupo e disse com voz rouca:
— Só sabemos que Abilene acarreta desgraças! Amaldiçoado seja...
— Algum de vocês deve saber alguma coisa. Se eu apanho quem fez isto!...
-- Não o desejará mais do que nós.
O rapaz voltou-se para que o tinha falado em último lugar.
— Stanley era meu amigo.
— E nosso patrão, como um pai. Muito canalha deve ser o tipo que o matou.
— Se me ajudarem, espero castigar o culpado.
— Não precisamos. Nós trataremos disso. Abilene recordar-se-á por largo tempo...
O capataz, após ter dito estas palavras, afastou-se do grupo. Os dez vaqueiros restantes seguiram-no, com os «colts» empunhados. A única que não se moveu, foi a rapariga, que continuava a fitar Shelby, entre estranha e confusa, sem saber que atitude tomar, ante a sua presença. Em breves palavras, Shelby apresentou-se:
— Eu era muito amigo do senhor Stanley... Apreciava-o deveras. Chamo-me Shelby King. E a menina?...
A rapariga atirou-se de bruços sobre o cadáver, soluçando:
— Oh, papá!
Shelby pôs-lhe a mão no ombro e com suave firmeza, disse:
— Vamos, menina Stanley. Não deve continuar aqui. Nada mais se pode fazer. Venha comigo. Faz-lhe mal continuar junto do cadáver.
Ela não parecia com forças para obedecer e Shelby tomou-a nos braços, ajudando-a a levantar-se. Afastou-a dali, enquanto os vaqueiros preparavam as suas montadas, sem dúvida para se dirigirem a Abilene, em missão vingadora. Estavam já montados e dispostos a partir, quando Shelby bradou:
— Fiquem quietos!...
Embora a mão direita sustentasse o corpo da rapariga, a esquerda empunhava um «colt» 45. pronto a cuspir chumbo.
Os «cowboys» voltaram-se para ela, admirados. O capataz crispou as mãos nas rédeas e disse:
— Enlouqueceu?
— Não gosto de disparates. E o que vão fazer é uma loucura. Não posso consentir que encham a cidade de fogo e sangue!
— E como impedi-lo?
Shelby sorriu. Com uma mão só, poderá pensar-se que não representava grande perigo. Mas os vaqueiros a olhá-lo, sabiam por instinto o contrário.
— Com isto — e balanceou o «colt».
— Podemos matá-lo. Somos onze contra um. É pouco para nós.
— Mas tenho chumbo de mais. Vamos. Desmontem e sejam razoáveis. Estão doidos, ou o sol secou--lhes os miolos? Estas coisas não se solucionam assim! O verdadeiro culpado rebentará a rir, ao ver a vossa fúria estúpida!...
Os vaqueiros entreolharam-se. O capataz, um homem corpulento e de idade indefinida, murmurou:
— Não sei se posso confiar em si...
— Já lhes dei provas do contrário? Não era amigo de Stanley?
— Não sei quais eram os seus amigos e os seus inimigos! — disse — A única coisa que sei, é que jaz aí, morto pelas costas.
— Lamento-o tanto como você. Desmontem e vamos conversar. Talvez lhes possa dizer algo de interessante.
O capataz desmontou e os restantes «cowboys» imitaram-no.
A filha de Stanley, tinha parado de chorar, mas continuava abatida, como se desejasse morrer. Bom. Estamos prontos a ouvi-lo.
— Vamos tratar primeiro desta jovem. Precisa de descansar. Não podem preparar um leito, aí à sombra?
Dois vaqueiros obedeceram silenciosamente às ordens do rapaz. Em poucos minutos, improvisaram com ervas, que cobriram com uma manta, um leito, debaixo duma árvore. Shelby estendeu a rapariga e cobriu-a com outra manta. Depois encarou os homens que o olhavam, desconfiados.
— Então, qual é o seu plano? — inquiriu o capataz.
— É melhor que nos apresentemos antes. Um conhecimento mútuo favorece as coisas. Chamo-me Shelby King e sou membro da Associação dos Criadores de Gado. Atualmente, estou incumbido de investigar as causas da epidemia, que sofre a maior parte do gado, que vem do Sul.
— Das manadas que vêm para Abilene — precisou o capataz, que estendendo a sua mão continuou: — O meu nome é Donovan.
Apertaram as mãos e apresentaram a seguir os restantes vaqueiros.
— Ninguém ouviu nada? — perguntou, por fim, o rapaz.
— É possível que sim. Um tiro, quando se está a guardar o gado nos currais é tão normal, que ninguém liga importância. Ninguém poderia supor, que disparavam sobre uma pessoa e não para o ar.
— Também não viram nada?
— Não.
— E suspeitam de alguma coisa?
— Absolutamente nada. Só que alguém procura prejudicar-nos.
Shelby passeava para cá e para lá, com as mãos atrás das costas, dando pontapés nas pedras com que as suas botas deparavam.
— Estão todos presentes?
— Sim. Viemos ao saber que o patrão... — respondeu Donovan.
— Têm a certeza de que estão todos? — insistiu o rapaz.
O capataz concentrou-se melhor e exclamou:
— Falta um! Onde está Spotmann?
— Eu respondo-lhe — interveio Shelby —. Tem uma bala no peito.
Olharam-no todos, surpreendidos.
— Como o sabe?
— Fi-lo eu.
Donovan levou as mãos aos coldres.
— Não se excite, Donovan. Fui eu, sim. É um traidor.
O capataz estava espantado.
— Ignorava-o?
— Por Deus, sim!
— Stanley tinha-me dito há umas horas. Spotmann tinha-se dirigido a Abilene, para tratar com o seu patrão, o canalha que fez isto. Eu segui-o.
O capataz apoiou as mãos nos «colts» e disse:
— Nesse caso, você sabe quem é o autor da morte do patrão. Vamos procurá-lo!
Os vaqueiros levantaram-se, mas de novo Shelby os conteve, com um imperioso gesto.
— Não tenham pressa. Eu segui Spotmann e sei com quem falou... e com quem tentou falar. Mas isso não prova nada. Tentei fazê-lo falar, mas puxou pelos «colts», ele e três dos seus amigos. Era a vida deles ou a minha. Fui obrigado a responder. Os seus companheiros morreram e ele ficou gravemente ferido. Quando puder falar, fá-lo-ei soltar a língua e depois...
— Onde está esse cão tinhoso? Onde está esse traidor imundo? Torço-lhe o pescoço quando o vir!...
— Não fará nada disso, Donovan. Primeiro, temos de saber o nome. Depois...
— Eu faço-o falar. Consinto que me cortem um braço, se o não conseguir...
— Será melhor cuidar dele. A sua vida vale muito para nós... digo-vos eu.
Shelby confirmou.
— Exatamente. Venha comigo, Donovan e traga dois homens mais. Deixe alguém de confiança a vigiar aqui.
Donovan pronunciou dois nomes e minutos depois, cavalgavam os quatro em direção de Abilene, enquanto o resto do pessoal desempenhava as suas tarefas habituais. Sem perder tempo, dirigiram-se ao «saloon» onde tinha tido lugar a peleja.
Suspeitando o pior, Shelby abriu caminho à cotovelada, até ao interior, seguido de Donovan e dos «cowboys». Compreendeu tudo o que se tinha passado, ao ver o rosto crispado e preocupado de Canory.
Ao vê-lo, o xerife correu ao seu encontro.
— Lamento-o, King. Deveras que o lamento.
Shelby não pronunciou uma só palavra. Dirigiu--se com largas passadas para o pequeno quarto, onde tinha deixado Spotmann e olhou para dentro. O que viu, deixou-o petrificado. Num monte confuso, via-se Spotmann, o criado do «saloon» que se tinha comprometido a tratá-lo e um ajudante do xerife. Todos mortos, banhados em sangue. O dono do «saloon», apavorado, explicou-lhe:
— Dispararam de fora, da rua. Efetivamente, a trajetória das balas procedia da janela. Um excelente trabalho de profissional.
Canory voltou a desculpar-se, compungido:
— Para já, fui um autêntico idiota! Mas como podia pensar que...?
Shelby respondeu:
— Agora não há remédio. De que servem as lamentações? Na realidade, eu é que devia ter previsto isto. Mas não julguei que fossem tão longe.
Donovan e os dois vaqueiros aguardavam fora, adivinhando que tinham perdido uma vasa importante.
— Não podemos fazer nada. Liquidaram Spotmann — disse King, ao chegar perto deles.
— Temos de recomeçar — disse o xerife.
Sacudindo a cabeça, o rapaz recobrou o autodomínio.
— Vamos embora! E o senhor, xerife, aponte no seu livro estas três mortes no «Deve» do culpado.
— Não se preocupe! No dia em que o apanhar... — ameaçou o representante da Lei.
Abandonaram o «saloon», dirigindo-se ao gabinete do xerife. Pelo caminho iam todos pensativos e cabisbaixos, sentindo-se impotentes para lutar contra o inimigo desconhecido, que se lhes escapava por entre os dedos mal acabava de cometer um crime. Pararam à porta do gabinete.
— Que pensa fazer, King? — perguntou Canory —. Todos os seus planos foram por água abaixo.
— Resta-nos um caminho.
— Qual?
— Começar pelo princípio.
— Como?
— É fácil. Acontece qualquer coisa no caminho para Abilene, que faz adoecer parte do gado. Estou disposto a saber o que é. Para isso vou percorrer o mesmo caminho. Isto é, vou trazer para Abilene uma manada.
Os outros homens entreolharam-se compreendendo a sua ideia.
— Vai arriscar-se a esses perigos todos?
— Stanley era um dos meus melhores amigos. É o máximo que posso fazer pela sua memória. Além disso, quero salvar Abilene da ruína.
Admirado, Donovan perguntou:
— E com que pessoal pretende fazer esse trajeto?
— Procurá-lo-ei. Suponho que em Laredo, Corpus Christie ou em El Paso, encontrarei vaqueiros dispostos a tudo.
— Não é preciso, King.
— Porquê?
— Porque pessoal já você o tem. Conte connosco.
No meio da tristeza que lhe deformava as feições, o capataz sorria. Os dois homens apertaram as mãos.
— Stanley deve estar contente lá em cima, por ter tido homens leais no seu pessoal... 

*

O presidente da Associação mordiscou o charuto que fumava, pensativamente.
— Isso não será uma loucura?
— Não muito pior que o que se fez até agora. O criminoso já foi longe demais. Somos obrigados a fazer isso.
— Isso quer dizer que ele procurará desembaraçar-se de si, na Rota para Abilene. A minha decisão é inabalável. O presidente acabou por ceder.
— Está bem. Eu era muito amigo do seu pai. Tome cuidado, King.
— Tomarei. E vocês, entretanto, mantenham a ordem em Abilene. Se o não conseguirmos, temos tudo perdido. Os proprietários das manadas, não estão dispostos a ficar sem o fruto de tantos meses de trabalho, devido a factos anormais.
— Vá tranquilo. Canory é um ótimo xerife e manterá a ordem.
Apertaram as mãos. Livingston sorriu:
— Sei que se interessa muito pela filha de Stanley. Em atenção a si, consegui um excelente preço pelo gado são.
— Obrigado, em seu nome.
-- Tenha cuidado.
Saiu de casa de Livingston e já perfeitamente equipado, para a longa viagem para o Sul, montou no seu cavalo e saiu da cidade. Foi encontrar os vaqueiros a levantar o acampamento. Carol Stanley parecia um pouco mais animada, embora tivesse sempre o olhar distante. Donovan, ao ver o rapaz, agradeceu-lhe:
— Pagaram bem o gado, King. Isso só dignifica a vossa Associação.
— Mostramos assim que não queremos explorações, mas sim o bem comum. Está tudo pronto?
— Dentro de meia hora partimos.
— Estou impaciente.
Aproximou-se de Carol, que ajoelhada, junto do túmulo do pai, parecia rezar.
— É melhor subir para o carro, menina. Vamos partir.
Ela fez o sinal da cruz e enxugando uma lágrima, murmurou:
— Obrigado por tudo, senhor King. Não esquecerei nunca o que fez por mim.
Os seus lábios, sem serem pintados, mas mesmo assim rubros, tremiam ao olhar para ele...

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