quarta-feira, 25 de setembro de 2019

KNS004.01 Gado doente, lucros anormais

Os olhos azuis de Shelby King deitavam chispas e as suas mãos fortes apertavam-se, uma contra a outra.
—É preciso pôr termo a esta situação! É tudo quanto tenho a dizer, meus senhores!
As pessoas reunidas naquela sala, elegante e ricamente mobilada, olharam-se entre si, inquietas e ao mesmo tempo assombradas. Eram ao todo seis, contando com o jovem que tinha falado, aparentando ser todos, pessoas de posição. Vestiam fatos de boa fazenda, camisas de seda fina e traziam anéis de brilhantes nos dedos.
— Não creio que essa questão nos importe muito. Ao fim e ao cabo, não somos os diretamente prejudicados.
Shelby King voltou a cabeça, de cabelos pretos e feições corretas e másculas, para olhar aquele que tinha falado.
— Não considera importantes os nossos próprios interesses?
O interpelado era um dos vice-presidentes da Associação de Criadores de Gado de Abilene, cargo que tinha ocupado, após muitos anos de luta na pradaria.
— Você pensa, King, que eu não sei do meu ofício?
— Não duvido que seja capaz, apenas com um olhar, dizer que lhe falta uma rês, mas temo que em negócios, ande um pouco às cegas.
Outro dos presentes cortou a discussão:
— Basta, Spencer! Chega, Shelby! Este é um assunto, em que estamos todos envolvidos e que, por consequência, nos interessa a todos.
— Ao senhor Spencer, pelos vistos, não — interrompeu King, com firmeza.


— Eu também não estou muito — disse o que tinha cortado a discussão —. Não vejo muito claro neste assunto.
— Pois é claro como a luz do dia. As remessas de reses do Sul são cada vez menos certas do que antes. Quando Chissholm abriu a Rota, esta passou a ser frequentada por todo o tipo de pistoleiros e indesejáveis que cobravam um tributo pelo direito de trânsito. Agora continuam a fazê-lo, mas deixam passar as manadas. O que é mais grave é que as manadas chegam cá, com cinquenta por cento das reses doentes, as quais temos de recusar.
— Também não as pagamos. A perda, se existe, não é nossa, mas sim dos proprietários dessas manadas.
— Diretamente, sim. Indiretamente, não. Examinemos a questão e façam um esforço para compreender. Uma cabeça de gado — disse Shelby King, olhando alternadamente para os seus interlocutores -- custa no Texas, onze dólares. Os condutores das manadas, juntam um bom rebanho e levam-no a Abilene, Dodge City ou Leavenworth. Aqui pagamos--lhe a vinte dólares por cabeça. Não é verdade? Quase o dobro! Embora percam metade da manada, a perda total nunca é grande. Mas para nós sim, porque a rês adquirida a vinte dólares, embarcada para os matadouros de Chicago, é-nos paga a trinta, pelo menos, o que representa um lucro de dez dólares, por cabeça. Ora bem, quantas reses tivemos de abater, esta temporada? — inquiriu o rapaz, em tom firme.
— Umas dez mil — opinou Walcott, o banqueiro.
— Dez mil a dez dólares, são cem mil dólares.
— Que não perdemos porque não pagámos —interveio desabridamente Samford. -- O gado que não compramos é morto e só se aproveita a pele.
— Pele que você compra, não é assim, Samford? Os negociantes de gado do Sul, vendem-lhas por um preço irrisório.
Samford levantou-se dum salto, muito pálido.
— Não consinto essas incorreções e exijo uma explicação! É atentório contra a minha dignidade!
Livingston, o presidente da Associação, interveio apaziguador:
— Será conveniente moderar as suas expressões, King. Implicitamente, as suas palavras acusaram o senhor Samford de beneficiar diretamente dessa doença do gado... que a você, não parece natural.
O rapaz sorriu.
— Se me permitem, acabarei de expor o problema. Disse que perdemos cem mil dólares. Num negócio, deixar de ganhar é perder. E cem mil dólares, é muito dinheiro, na minha opinião.
Um murmúrio coletivo respondeu às suas palavras. Samford, ainda alterado, conversava com Spencer em voz baixa, enquanto Walcott fazia gestos enérgicos a Kirby, o último do sexteto ali reunido. Livingstone bateu com o punho na mesa, cortando os comentários e voltando ao assunto.
— Quere-nos dizer, King, porque pensa que devemos tomar sobre nós o encargo de evitar que as manadas se contagiem?
— Por que se o não fizermos, além de continuarmos a perder dinheiro, alguém se aproveitará. E esse alguém não seremos nós. Quando os condutores das manadas derem conta de que o caminho para Abilene é «maldito», dirigir-se-ão para Dodge City ou para Leavenworth, e nós teremos de cavar batatas.
As suas palavras eram firmes e seguras. O pequeno auditório trocou olhares entre si, como que duvidando daquelas profecias.
— Embora isso possa vir a ser possível, como evitá-lo? — perguntou calmamente Walcott.
— Temos de o estudar.
— Nenhum de nós é especialista em doenças de gado.
— É que não se trata de nenhuma doença, senhores.
— Como? — perguntou surpreendido Livingston.
— Que diz? — disse Kirby.
— Cada vez o percebo menos — assegurou Spencer.
Shelby King enfrentou valentemente a cerrada oposição de todos:
— Compreender-me-ão se vos disser que esta doença, que existe na realidade, não é produto de uma epidemia, mas sim de um plano tenebroso, cujo alcance ainda não percebi! Afirmo que essa doença é provocada por alguém!
 Se uma manada de gado tivesse irrompido pelo salão em louca correria, não teria causado maior confusão. As exclamações, os comentários, as discussões e as piadas trocistas duraram vários minutos. Shelby King aguardava o fim das exclamações. Dentre todos, só um homem, o presidente da Associação, parecia refletir sobre o problema que lhes fora posto em equação.
— Meditou bem no que disse, King? — perguntou-lhe em voz baixa.
— Sim, senhor Livingston. Estou convencido. Fiz muitas investigações e o resultado não pode ter sido mais evidente.
— Em que sentido?
— Em que estamos a ser vítimas de uma fabulosa maquinação, enquanto que, os que podem fazer qualquer coisa, se riem. — disse, com desprezo, apontado para o resto do auditório.
As feições de Livingston endureceram e disse:
— Tenha confiança em mim, King. Eu também a tenho em si.
Bateu com o punho na mesa, para chamar a atenção dos outros e com palavras secas, terminou:
— À vista da vossa atitude, transformando um problema coletivo numa questão pessoal, só me resta levantar a sessão e esperar que na próxima, trabalhemos com mais sensatez.
Levantou-se. Os circunstantes imitaram-no, afastando do seu rosto as caretas e risos de segundos antes. Um silêncio glacial tinha descido sobre a reunião, deixando uma tensão no ar e olhares receosos...
— Bom-dia...
Foram-se despedindo, aos poucos. Shelby ficou intencionalmente para trás e quando estendia a mão, para cumprimentar o presidente, este, dando-lhe uma palmada amigável nas costas, levou-o para a varanda.
— Não tem pressa, pois não, King?
— Absolutamente nenhuma...
— Bem. Nesse caso, poderá explicar-me melhor o que se passa. Talvez tivesse sido melhor assim, do que convocar esta reunião a seu pedido. Eles... —e apontou para os quatro que saíam — não gostam de si. Consideram-no um aventureiro.
— Procuram tornar-me a vida impossível.
— Assim é.
— Não obstante, ocupo o lugar que era do meu pai.
Livingston moveu a cabeça afirmativamente. Parecia preocupado.
— Têm inveja de si, King. Dir-se-ia que acariciam a ideia de o correrem da Associação.
O rapaz sorriu, com dureza.
— Não consentirei que me espoliem dos direitos que o meu pai logrou antes de morrer. Eu ocupo o posto que ele deixou vago... e se eles acham mal, o melhor é mudarem-se...
Livingston levantou as mãos, apaziguador.
— Talvez fosse melhor que você não se mostrasse tão duro e exigente. Isso não lhes agrada. Tolerá-lo-iam se você se limitasse a dizer que sim a tudo.
— Nesse caso, suspeito que as reuniões no futuro serão animadas...
O presidente acariciou a barba, pesando aquela possibilidade. Franziu a testa e pareceu não aprovar a ideia.
— Peço-lhe que não arranje complicações, King. O meu cargo, já de si é difícil, sem essas discussões...
— Defendo os meus direitos, senhor Livingston.
— Tem razão.
— E ninguém me pode exigir que prescinda deles, só para agradar aos outros membros da Associação.
— Só lhe peço que evite conflitos desnecessários.
— Mas este caso, que estamos a tratar, não é desnecessário. Penso que o senhor atingiu o alcance do que eu disse. A doença de cinquenta por cento das manadas, é uma perda dura e quando os comerciantes de gado do Sul o souberem, dirigir-se-ão para Dodge ou Leavenworth e Abilene morrerá. Toda a nossa riqueza e a da cidade, se baseia na afluência de gado. Sem ele, Abilene seria um deserto. Livingston passeava pelo salão, com as mãos atrás das costas.
— Você disse que essa doença era propositadamente provocada. Por quem?
— Ignoro-o. Foi o que pretendi fazer ver. Que há uma mão criminosa nisto; mão que tem de ser cortada...
— Mas, qual será o motivo?
— Há muitos e mais que suficientes...
— Como é que tem tanta certeza, de que a doença é provocada?
— Vou dizer-lhe o que consegui averiguar. As manadas saem do Texas, de perfeita saúde. As reses são das melhores e escrupulosamente escolhidas, sem o mínimo indício de enfermidade. Nada acontece até cem quilómetros daqui. Nessa altura aparecem os primeiros possíveis compradores. Cavaleiros desconhecidos, que oferecem o máximo, quinze dólares por cabeça. A maior parte dos comerciantes rejeitam as suas propostas e quando chegam a Abilene, temos de separar metade do gado, porque adoeceu subitamente. Se isso é normal...
— Da maneira que você conta...
— Não há outra versão. Alguém que nos faz concorrência: alguém relacionado com Chicago, pois algumas reses que foram vendidas a quinze dólares, não apareceram aqui, para serem embarcadas.
Pensativamente, o presidente murmurou:
— Não estou a gostar da feição que isto está a tomar.
— Nem eu.
— Isto, de facto, incumbe à Associação!
— Apesar disso, os meus queridos colegas não pareceram tomar muito a sério as minhas afirmações — murmurou Shelby.
— Espero que os factos os façam entrar na razão. Julgam-se muito seguros da sua posição e por isso tornam-se descuidados.
Voltando-se para o presidente, o rapaz perguntou:
— Entretanto, que poderemos fazer?
Com serena decisão, Livingston autorizou:
— Continue a investigar. Peço-lhe que procure desmascarar o autor desse crime. Gostaria de lhe pôr a mão em cima.
— Confie em mim. Tenho verdadeiro empenho em solucionar este caso.
Livingston acompanhou-o até à porta.
— Se isto tem a importância que julgo, tome cuidado. Abilene é uma terra selvagem e você foi criado no Este.
— Há dois anos que estou aqui.
— Eu fui um dos fundadores desta cidade e ainda não me acostumei a ela. Não acredite demasiado na sua força, nem no respeito que os outros tenham pela Lei. Lembre-se do seu pai. Ele confiou demasiado em si mesmo e um dia encontraram-no...
— Não continue—disse com voz rouca, Shelby.—Nunca poderei esquecer o seu cadáver ensanguentado. E não o poderei olvidar, enquanto não apanhar quem o matou.
— Julgo que não o conseguirá. Ninguém viu e ninguém sabe nada. O assassino foi prudente e audaz.
— Apesar disso, a sua morte favoreceu alguém. Saber quem, será o suficiente. E hei-de consegui-lo.
Livingston despediu-se do rapaz, com uma sombra de preocupação no rosto.

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