sexta-feira, 27 de julho de 2018

BUF150.06 Três assassinos

Por mais voltas que desse à imaginação, Sheila Norrit não conseguia compreender a razão por que Elia Wayne a tinha atraiçoado. Acaso não lhe pagava um esplêndido salário?
Como era possível que cento e quarenta mil dólares tivessem quebrantado a lealdade de que lhe era devedor.
Recordava-se de ter escondido o dinheiro e a chave dentro da estatueta na sua presença. Isso não podia negá-lo. Assim como não podia negar que Wayne tinha entregue a Omar a chave que servira para fazer o duplicado e ainda que o xerife tinha encontrado, na presença de quantos ali se encontravam, tanto o dinheiro como a chave, nas algibeiras do cadáver.
Começava a sentir-se inquieta. Porque se tinha comportado com tanta perfídia... um homem que parecia doido por ela? De uma maneira geral, também Accard, Entig, Clark, O'Dwyer e Pícaro se mostravam fascinados por ela. Até que ponto, porém, podia estar segura da paixão que afirmavam ter por si?
Wayne não tinha resistido à tentação de se apropriar de cento e quarenta mil dólares! Qual seria o preço que, daí por diante, os outros iam exigir-lhe pela sua fidelidade?
O único para quem o dinheiro parecia não valer um chavo era «Pícaro» Bill. Esse apenas demonstrava interesse pela sua pessoa.
Sheila Dorrit franziu a testa e começou a amadurecer uma ideia. Procurou «Pícaro» com os olhos e viu-o sentado na mesa de onde dominava todo o salão, examinando tudo com a maior atenção. Era indubitável que aquele homem cumpria à risca a sua missão de administrador do «Sky--Saloon».
Aproximou-se e segredou-lhe:
— Vens ter comigo quando fechar o estabelecimento, Bill? Tudo isto me deixou bastante perturbada e necessito muito do teu amparo.
«Pícaro» contemplou-a com ternura.
— Está bem, meu tesouro. Não faltarei.
Um pouco mais tranquila, Sheila Norrit subiu para os seus aposentos.
Logo que a viu desaparecer, Bill pensou que era chegado o momento de se ocupar do infortunado Archie Skelton. Aproximou-se do recanto onde o coproprietário do «Sky-Saloon» prosseguia nas suas libações e no seu monólogo acerca de «o «mal» como Sheila se estava comportando com ele...», «o «mal» que ia acontecer ao «negócio», e o «mal» que ela própria ia acabar...». William arrebatou-lhe a garrafa das mãos e olhou-o com simpatia.
— Oiça, «mister» Skelton. A única coisa que aqui está «mal» é que o senhor se transforme numa cuba. Chegou a altura de deixar de comportar-se como uma criança e começar a pensar em ser um homem. Isto não se consegue à primeira vista, naturalmente. Necessita para isso da ajuda de um bom amigo.
Archie olhou para ele cara os olhos velados.
—Quero... hip!... a minha garrafa...
—Está bem, homem. Terá a sua garrafa, mas um pouco mais tarde.
Skelton levantou-se para se apoderar da garrafa, mas... dobraram-se-lhe as pernas e estendeu-se a todo o comprimento. «Pícaro» fê-lo rebolar com a biqueira da bota.
— Vamos, Archie! Arriba!
O homem limitou-se a grunhir. William insistiu com um pouco mais de energia. A resposta, desta vez, foi uma espécie de ronco abafado. Uma das coristas que presenciavam a cena comentou condoída:
— Acaba de perder os sentidos. Deve ter mais álcool no bucho do que sangue tem nas veias.
— Disseste uma grande verdade, rapariga — concordou Bill, entregando-lhe a garrafa. — Toma. Bebe o resto, deita-a fora ou entrega-a no balcão. Eu vou ocupar-me, de «mister» Skelton.
E assim fez. Transportou-o às costas como se fosse um fardo e saiu do «Sky-Saloon», não sem advertir os empregados:
— Durante a minha ausência que deverá ser curta, podeis ocupar-vos a limpar o salão. Chegou a hora de encerrar o estabelecimento. Se algum cliente, entretanto, se obstinar em continuar na paródia, tratai-o com delicadeza, dizei-lhe que se instale comodamente e que tudo aquilo que deseje beber a mais... é por conta da casa... Depois do meu regresso trataremos das contas...
Como é de supor, as palavras acabadas de proferir foram também ouvidas por todos os fregueses que enchiam a sala por completo. Cinco minutos depois da saída de Bill, o «Sky-Saloon» estava absolutamente vazio, as coristas tinham recolhido aos seus aposentos e os empregados tratavam de arrumar as mesas e as cadeiras. «Pícaro» conduziu o inconsciente Archie Skelton a casa de «Doc» Bellamy.
O médico recebeu-o alegremente.
—Olá, Bill! Que me traz você? Um ferido?
— Exato.
— Céus! Trata-se de «mister» Skelton! Estenda-o aí sobre essa marquesa.
William depositou a sua carga sobre o móvel que o médico indicara. Após um rápido exame, Bellamy, perplexo, comentou:
— Este homem está ileso, Bill!
— Engana-se. Este homem está muito doente, «Doc». A diferença é que o seu mal não é no corpo, mas no espírito. Faça tudo o que estiver ao seu alcance, enquanto eu regresso às minhas funções.
Bellamy encarou-o, receoso.
— E que pensa fazer quando acabar o trabalho? Vai adotar «mister» Skelton?
«Pícaro» olhou-o com o melhor dos humores.
—Não lhe parece que Archie está já de boa idade para necessitar de um papá emprestado? Escute, «Doe». Não me considero nenhum imbecil e Cumberlan ainda o é menos do que eu. Dê-lhe os parabéns da minha parte pela maneira tão requintada com que soube meter-me, a mim e a Luciano, neste tremendo sarilho. Eu saberei resolver o caso, posso garantir-lho. Mas... ponho as minhas condições. Em primeiro lugar, Sheila pode modificar-se se a puser entre a espada e a parede. Ë uma mulher muito jovem e ainda bastante bela. Se voltasse para a prisão, seria fatal.
— E como vai ele pô-la entre a espada e a parede?
«Pícaro» piscou-lhe una dos olhos.
— Archie Skelton está desvairadamente louco por ela. Trata-se de um excelente homem. Quando Sheila não dispuser de um único dólar... pensará várias vezes antes de recomeçar a sua vida de aventuras e de vigarices. Skelton continuará a borboletear à volta dela. Será, então, a altura de ela descobrir, um tanto surpreendida, que ser-se mulher serve para qualquer coisa de romântico e de agradável; anuirá aos seus desejos, dar-lhe-á o «SIM», ligar-se-ão pelo matrimónio, terão uma catrozada de filhos e, dez anos decorridos, Sheila Dorrit perguntará a si mesma, como foi possível ter sido tão louca e tão ambiciosa na sua mocidade.
— Uma linda fantasia, Bill.
— Segunda condição: Amanhã mesmo, Omar Warren exigirá judicialmente a Sheila que lhe revolva a outra metade das ações do seu hotel. Omar resgatará as ações e pagará os lucros, e ela dará a sociedade corno dissolvida.
— Como pode o senhor estar tão seguro do que afirma?
— A Sheila não interessa absolutamente nada despertar suspeitas ao juiz Taylor.
— Talvez venha a encontrar dificuldades nesse ponto, Bill. O secretário de Taylor é Iver Clerk... um dos pistoleiros de Sheila.
— Oiça, «Doc». Acabo de expor-lhe a minha segunda condição. Chuck Cumberlan pode fazer o que melhor lhe pareça. Pegar ou largar.
Bellamy suspirou, meio persuadido:
— Pegará...
— Terceira condição — prosseguiu Bill. — Escute-me atentamente porque o tempo escasseia. Sheila está à minha espera para que eu a embale com um conto de fadas e não posso demorar-me demasiado...
Quando «Pícaro» acabou de expor a terceira condição... viu-se obrigado a ajudar Bellamy a fechar a boca, empurrando-lhe para cima a mandíbula que tinha ficado escancarada de puro assombro.
— Mas... mas... acredite que ela será tão ingénua como...
Bill olhou-o, zombeteiro.
— Só os cérebros privilegiados se deixam cair numa armadilha singela. Não o esqueça nunca, amigo. E agora... adeusinho!
Vinte minutos depois afagava as mimosas faces de Sheila humedecidas pelas lágrimas, e recomendava-lhe:
—Vê se te acalmas, pombinha... Qual a razão de semelhante desconsolo?
— Elia Wayner era um traidor! Tenho a impressão de me encontrar cercada de traidores por todos os lados. — Se queres referir-te também a mim...
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— Oh, Bill! Não sejas tontinho! És o único em que posso fiar-me.
E, para o convencer, beijou-o com ternura. Bill amou e deixou-se amar. Depois, afagando as loiras tranças, disse-lhe, ternamente:
— Bem hajas pela tua confiança. Eu saberei criar uma vida nova para ti, Sheila. Mas... a tua confiança em «Pícaro» Bill, não há-de vacilar nem um momento. De acordo?
— De acordo, Bill.
— Nesse caso... Boas noites, querida!
— Boas noites... meu amor!
*
A noite nem para toda a gente era boa. Quatro homens aureolados pela mais terrível das famas, discutiam acaloradamente os acontecimentos das últimas horas, sentados em redor de uma mesa.
— Recuso-me a acreditar que Wayne tivesse roubado Sheila. Não há forma de o conceber — afirmou Bud Entig pela centésima vez. — É muito mais lucrativo trabalhar para ela do que ser-lhe infiel nos negócios.
— E por uma porcaria de cento e quarenta mil dólares! — interveio Albert Accard, escandalizado.
— Talvez ele se encontrasse em apuros — sugeriu Iver Clark, sem grande convicção —; se bem que podia muito bem ter recorrido a qualquer de nós, ou até à própria Sheila, dizendo-lhe que carecia de determinada importância. Ela não lha recusaria, estou certo disso.
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Fred O'Dwyer olhou friamente para os seus companheiros.
— As coisas viraram-se do avesso desde que William Vitória trabalha para Sheila.
— Deixemo-nos de histórias... — exclamou Accard, aborrecido. — O que tu não podes esquecer é que ele te meteu a ridículo diante de toda a gente e nos pregou uma tunda a todos nós. Escuta, Fred; já analisámos o assunto por todos os lados e acabámos por chegar sempre ao mesmo resultado: Wayne tinha consigo o dinheiro e a chave do cofre-forte de Warren.
— Seja como for, a verdade é que, desde que esse maldito mexicano, ou índio, ou lá que diabo é, entrou para o grupo dirigido por Sheila, tudo começou a modificar-se. Sheila não parece a mesma de antes. Estou a falar-vos muito a sério, pondo de parte os ressentimentos pessoais!
Os outros três consultaram-se com os olhos.
— Realmente, não deixas de ter razão... — aquiesceu Accard.
— Sim — corroborou Clark. -- Algo de esquisito acontece, desde que esse sorridente sujeito adormece no regaço de Sheila...
Budd Entig interveio a seguir:
—E aquele seu amigo de pequena estatura está agora feito xerife de Dodge City. Tenho a impressão de que não devemos ficar para aqui pasmados, a olhar uns para os outros.
O'Dwyer sorriu-se intimamente.
— Que vos parece a ideia de... nos desfazermos de «Pícaro» Bill?
— Talvez Sheila não goste da graça — comentou Iver Clark.
— Pois sim. Mas nós temos um poderoso motivo a nosso favor, ante o qual ela terá de curvar-se! Elia Wayne era um dos nossos amigos e morreu às mãos de William Vitória. O que nos move é apenas a vingança e nada mais! Não nos convençamos de que, uma vez morto «Pícaro», Sheila se vai desligar de nós. Temos demasiado valor para que isso aconteça. Somos indispensáveis para realizar os seus planos de conquista de Dodge City.
— Exato... — sussurrou Entig. Fred O'Dwyer olhou ansioso para os seus companheiros. — Proponho que «Pícaro» morra sem mais demora. Estamos todos de acordo?
Clark, Accard e Entig concordaram. Podes contar connosco. O'Dwyer, sorridente, exclamou:
— Por mais rápido que seja... não poderá fazer frente a quatro pares de revólveres!
*
Na manhã seguinte... Quando Sheila e «Pícaro» desceram para o rés-do-chão, já Omar Warren, o juiz Taylor, o seu secretário Iver Clark... e o «marshal» Cumberlan os aguardavam no salão.
— Encantadora manhã, senhores! — disse «Pícaro», cumprimentando.
Cumberlan replicou:
— Espero que continue a sê-lo para todos. «Miss» Dorrit, o juiz Taylor e «mister» Warren desejam fazer-lhe uma proposta.
Sheila olhou para o juiz e para Omar com curiosidade.
— De que se trata?
Taylor sorriu-se com ar paternal.
— «Mister» Warren não deseja, de forma alguma, que a senhora continue a arriscar o seu dinheiro em um negócio como aquele do hotel em que tão facilmente se pode assaltar-se um cofre-forte e esvaziá-lo. Entende que o melhor será devolver-lhe ele o capital correspondente ao lote das suas ações, pagar-lhe os dividendos e entregar-lhe os lucros obtidos pela sociedade. É evidente que a senhora poderá recusar, mas, nesse caso seria intentado um processo de reivindicação. Como nos encontramos apenas entre amigos, proponho que esta questão se resolva à boa paz.
Instintivamente, Sheila consultou Iver Clark com os olhos.
— Não compreendo— declarou a jovem. — Eu deposito a maior confiança em «mister» Warren. Nunca lhe apresentei qualquer reclamação a este respeito.
— Mas... propôs-se comprar-lhe o hotel quando o viu em dificuldades — interveio o juiz — quando teria sido muito mais razoável... digamos... e até mais generoso, acorrer em seu auxílio.
Iver Clark acrescentou:
— A sua posição pode ser apreciada em tribunal, «miss» Sheila, mas... é natural que «mister» Warren ganhe ali a questão. O juiz Taylor está dentro da razão. Uma solução amigável é, certamente, o conselho mais inteligente que qualquer advogado lhe dará.
Sheila humedeceu os lábios.
— Está bem — disse com voz apagada. — Concordo. Traz dinheiro consigo, «mister» Warren?
— Dinheiro e o documento comprovativo da compra das ações. Está tudo em regra. Foi visto, pessoalmente, pelo juiz Taylor.
Omar estendeu um maço de notas a Sheila, bem como o respetivo documento.
— Falta apenas a sua assinatura.
— Subamos para o meu gabinete, senhores — convidou Sheila Dorrit.
Antes de entrar, olhou com insistência para Chuck Cumberlan.
—O senhor não entra, «Marshal»?
— A minha missão está cumprida, «miss» Dorrit.
—A sua missão? — perguntou ela com estranheza.
Os olhos do «Marshal» dirigiram-se, friamente, para «Pícaro».
— Digo-lhe que tem ao seu serviço um homem muito perigoso e meio maluco, «miss» Dorrit.
Ela sorriu-se com certa ironia.
—Mas... se bem me lembro... houve tempo em que os dois eram muito amigos...
— Sim — concordou Chuck —; mas... muitas vezes, o destino de um homem altera-se por completo quando com ele se cruzam certas pessoas... Quando isso acontece, as velhas amizades não mais contam para ele.
E virando as costas a todos, Cumberlan saiu do «Sky-Saloon». No momento em que caminhava sob o alpendre, Cumberlan divisou no passeio oposto da rua e estrategicamente colocados, Fred O'Dwyer, Budd Entig e Albert Accard. Cumberlan não deixou de caminhar. Dobrou a esquina e, aí, apressou o passo. Ao entrar na repartição, ordenou a Luciano:
— Vá imediatamente para junto do «Sky», de maneira que os três homens que ali se encontram, e que o senhor reconhecerá à primeira vista, se não apercebam da sua presença. Um deles é aquele que «Pícaro» obrigou a engolir o orgulho no meio de um charco, no dia em que os senhores aqui chegaram. Os outros dois são aqueles que «Pícaro» sovou na noite da festa.
«Colosso» fez um gesto de assentimento e abandonou a repartição. Sem que Luciano disso se apercebesse... Cumberlan seguiu atrás dele.
*
— Agrada-me a sua compreensão, Sheila — declarou o juiz, pegando no documento e entregando-o a Omar Warren. — Agora tudo está em ordem.
— Uma vez que o senhor o diz... — disse Sheila, sorrindo.
—A minha opinião pessoal é que se trata de um autêntico abuso — declarou «Pícaro» Bill.
Taylor Adams encarou-o de frente.
— Não me agradam as tuas palavras, mancebo.
— E a mim sucede-me o mesmo! — exclamou Iver Clark.
— Deveras? — disse Bill, sarcástico. — Pois... a mim não me agrada nenhum dos dois.
Omar Warren sugeriu:
— Porque não nos retiramos?
Iver Clark, com um sorriso gelado, dirigiu-se a Bill:
— Quer ter a gentileza de nos acompanhar até à porta, «mister» Vitória? Ainda que as nossas pessoas lhe desagradem, recomendo-lhe que perca a arrogância. E uma imprudência faltar ao respeito àqueles que representam a Lei.
— O senhor também a representa? Não me provoque o riso...
— Sou o secretário de Sua Excelência.
«Pícaro» fez-lhe uma reverência irónica.
— Nesse caso não me resta se não obedecer...
— Sim, Bill — rogou Sheila. — Acompanha-os. Isto foi um rude golpe para mim. Necessito de ficar só...
Os homens abandonaram o gabinete e «Pícaro» fechou a porta, sendo o último a sair. Warren comentava:
— Muito me satisfaz que tudo tenha decorrido de uma maneira tão pacífica.
— Sheila não é má rapariga... — suspirou o juiz —...mas as suas ambições são já impróprias da sua idade.
Iver Clark encaminhou-se para o balcão, dizendo:
— Apetece-me tomar uma bebida. Tenho a garganta ressequida.
— Espero-o na repartição — explicou Taylor, seguido de Omar Warren e de «Pícaro» Bill que os acompanhou até à saída.
Iver Clark semicerrou os olhos, ao mesmo tempo que aproximava lentamente a mão direita do coldre subaxilar. Olhou prudentemente para todos os lados para se assegurar de que ninguém presenciaria a sua aleivosa ação. Teve uma sorte prodigiosa, porque o «marshal» Cumberlan o olhava fixamente através de uma janela. Em vez do revólver, Clark extraiu um lenço com que esfregou vigorosamente a fronte repentinamente inundada de um suor copioso e frio. Depois, compreendendo que não podia prevenir os seus companheiros da presença de Cumberlan, voltou as costas para a janela e encostou-se ao balcão de braços cruzados, desinteressando-se do que iria suceder nos segundos mais próximos.
A porta do estabelecimento «Pícaro» fazia as suas despedidas ao magistrado e a Omar Warren.
— Adeus cavalheiros.
Warren olhou-o com ar de censura.
—Em outros tempos, Bill, não há dúvida de que você foi um homem exemplar. Foi mesmo o melhor xerife que já passou por Dodge City.
«Pícaro» replicou:
— Há muitas maneiras de ser-se xerife de uma cidade, «mister» Warren...
Taylor Adams, enfadado, resmungou:
— Vamo-nos embora daqui...
Mal se tinham separado alguns passos do sempre sorridente «Pícaro», sobressaltados e dominados pelo pânico, lançaram-se por terra, como se a repentina chuva de balas que se cruzavam estrondosamente de um lado para o outro da rua procurasse ceifar-lhes as vidas.
A bala dirigida por Albert Accard contra «Pícaro» foi desviada da sua trajetória, devido à rapidez com que Luciano disparou três vezes seguidas contra o pistoleiro que largou as armas e, rodando sobre os calcanhares, com o rosto congestionado pela dor e pela surpresa, foi bater contra a parede do edifício.
«Pícaro» reagiu instantaneamente e dando um salto para trás conseguiu esquivar-se à rajada de chumbo saída das armas de Budd Entig e de Fred O'Dwyer, ao mesmo tempo que empunhava o seu «45». Rodou sobre si próprio com uma rapidez incrível e começou a fazer fogo com assombrosa precisão.
Fred O'Dwyer, atingido num dos joelhos, perdeu o equilíbrio e viu-se obrigado a segurar-se à balaustrada da varanda para não cair. Pretendeu continuar disparando, apertando com a mão vacilante o gatilho do seu «seis tiros», ao mesmo tempo que se agarrava desesperadamente ao corrimão. Uma bala certeira atravessou-lhe o crânio de lado a lado e uma outra passou-lhe ligeiramente acima, quando. O'Dwyer, já sem vida, tombava para trás, ficando estendido no terreno com os braços abertos em cruz e uma visagem de horror nos seus esbugalhados olhos.
A cerca de cinco metros, aproximadamente, Budd Entig, ainda surpreendido pelos disparos de Luciano (uma vez que tinha visto cair Accard um segundo antes de «Pícaro» empunhar o seu revólver), compreendeu que se achava entre dois fogos. Optou pela retirada e escapando-se aos tiros de William Vitória, decidiu virar-se para Luciano, preferindo, dos males, o menor.
Luciano, porém, não assomava a cabeça à esquina nem por simples descuido. Se Entig o tivesse visto naquele momento teria compreendido que o mal menor, era, realmente «Pícaro» Bill, visto que, do lado oposto daquela mesma esquina, Luciano e Chuck, trocando as suas impressões, perguntavam a si próprios quanto tempo levaria ainda Entig a deixar o mundo dos vivos.
Todas estas congeminações eram feitas de revólver em punho, não fosse dar-se o caso de Budd Entig decidir escapar-se por aquele lado. E as circunstâncias vieram confirmar as suas previsões.
Subitamente viram surgi-lo pela frente, com um «Colt» em cada uma das mãos, disposto a vender caro a sua vida. A inesperada presença de Cumberlan fê-lo soltar um rugido de raiva. O «marshal» disparou apenas uma vez. A bala, cravada em pleno coração, cortou-lhe cerce o fluxo vital. O pistoleiro, como se fosse uma árvore arrancada pela raiz, caiu de bruços, chocando brutalmente o rosto contra o solo. Antes de que Entig tivesse caído por completo, Chuck Cumberlan voltara a espreitar pela janela do «Sky-Saloon», verificando que Iver Clark, sacudido por um estremecimento, ingeria a bebida só de um trago, permanecendo imóvel e com os ombros encolhidos, compreendendo que todo o plano urdido para acabar com «Pícaro» tinha fracassado.
Mal acabou o tiroteio, o juiz Adams e Ornar Warren ergueram-se arquejantes. Adams encaminhou-se para «Pícaro», corno se fosse um búfalo preparando-se para investir.
— Por amor de Deus! — rugiu. — Pode saber-se porque acaba de matar estes homens ?
«Pícaro», apoiado a una pilar do alpendre, recarregava calmamente os seus «45», enquanto contemplava os adversários vencidos.
— Porque me não explica o senhor a mim o motivo porque queriam assassinar-me ? interrogou num sussurro. E acrescentou: — Presenciou por acaso alguma coisa, senhor juiz ? Segundo me parece, tanto o senhor como «mister» Warren arranhavam o terreno com as mãos, desejando escapulir-se para dentro de qualquer buraco... enquanto o chumbo silvava pelo espaço. E assim, ou não é ?
Taylor Adams assumiu um ar grave e replicou:
— Oiça, Bill
Naquele instante apareceram Chuck Cumberlan, Luciano...
*
O tiroteio não durara mais do que um minuto. O tempo necessário para Sheila sair a correr do seu gabinete e lançar-se sobre Clark, gritando:
— Que é que acontece?
Iver Clark, mais pálido do que a cera, murmurou:
— Porque não vai «miss» Dorrit averiguar por si mesma?
Iver continuava a sentir os olhos de Cumberlan cravados sobre si. Os tiros redobraram de intensidade e Sheila correu para junto dos batentes da porta. Daquele posto de observação, viu Budd Entig a correr desvairado. Subitamente, porém, o pistoleiro parou e lançou um grito, caindo um pouco mais adiante, de cara contra o solo. Um último tiro tinha posto um ponto final na tragédia. E não tinha sido «Pícaro» quem apertara o gatilho.
Enquanto o juiz Adams pretendia admoestar «Pícaro, Bill, dobravam a esquina, desviando-se cautelosamente do cadáver de Entig, o «marshal» e o xerife de Dodge City. Cumberlan interpelou o juiz:
— Parece-me que temos alguma coisa a dizer-lhe, Excelência.
O magistrado olhou interrogativamente para Cumberlan.
— Pode falar, Chuck.
No tom de voz mais calmo deste mundo, o «marshal» explicou:
— Pelo visto, estes três homens tentaram disparar contra os senhores.
— Como? — perguntou Warren, perplexo. — Pois... se nós mantínhamos as melhores relações com todos eles!
— E todos eles estavam ao serviço de Sheila Dorrit — especificou Chuck. — Albert Accard tombou sob o fogo do xerife. Fred O'Dwyer foi morto por «Pícaro» Bill, mas nem eu nem o xerife podemos incriminá-lo por esta morte, porque, dado o inesperado e traiçoeiro ataque, pode ter sido levado a concluir que as balas se dirigiam a ele e não aos senhores; agiu em legítima defesa. No que respeita a Budd Entig, fui eu próprio quem o matou.
O juiz e Omar Warren trocaram olhares de perplexidade. Taylor Adams voltou-se para o «marshal»:
—Não será possível ser um pouco mais explícito, Chuck?
O «marshal» concordou.
— Naturalmente — replicou ele, olhando para Sheila por cima do ombro. — Excelência... por mim, recomendaria a todos aqueles que têm contratos assinados com Sheila Dorrit, a revogar os seus compromissos, pagando a respetiva indemnização.
— Deixa-o falar, Sheila... — interveio «Pícaro» sorrindo e metendo as suas armas nos coldres. — Ele apenas pretende impressionar-te.
As palavras acabadas de proferir por Bill levaram Sheila a tomar uma decisão, porque, efetivamente, a jovem estava muito impressionada. Sheila passou a língua pelos lábios e olhou fixamente para o «marshal», que se manteve imperturbável.
—Posso saber porque me tem tanto ódio ? — lamentou-se a rapariga.
— Não sinto qualquer espécie de ódio por si, «miss» Dorrit. A senhora é que se atravessa no caminho de toda a gente. Não se esqueça disto.
— Não te esqueças disto, pequena — reforçou «Pícaro» escarninhamente — porque, se não, aparece-te o «papão» Cumberlan e enche-te o corpo de açoites.
Cumberlan limitou-se a olhar ligeiramente para o juiz Adams.
— O senhor lá sabe o que mais lhe convém. E virou as costas, acompanhado do pequeno Luciano.
Iver Clark, única testemunha do que se passara, pensou que tinha de falar urgentemente com Sheila Dorrit.
*
Decorridos dois dias, todos os contratos de sociedade que Sheila tinha assinado com diversos negociantes e ganadeiros dos mais importantes de Dodge City ficaram legalmente rescindidos.
Encerrada no seu gabinete, sem mais companhia que a de «Pícaro», a jovem desabafou, suspirando:
— No fim de contas não tive qualquer prejuízo. Possuo ainda um milhão de dólares; mais cinquenta mil de indemnização e metade da propriedade do «Sky-Saloon» enquanto a não cedo a Archie Skelton, a quem pretendo vendê-la, mas que não hã maneira de aparecer em parte alguma.
Voltou a suspirar e olhou para Bill que se entregava à tarefa de enrolar um cigarro.
— Pergunto a mim próprio... Que poderei eu fazer daqui por diante?
A porta abriu-se naquele mesmo instante e, à entrada, surgiu a figura de Iver Clerk.

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