domingo, 22 de julho de 2018

BUF150.01. Julgamento em Besbee

O promotor de Justiça do Condado de Besbee voltou-se para a bancada do júri com solenidade afetada. O juiz-presidente do tribunal incitou-o a prosseguir, num tom de voz lento e ao mesmo tempo áspero:
-- Pode continuar.
O promotor respirou fundo. Era um maravilhoso dia de Julho. O sol entrava a jorros pelas janelas da sala das audiências. As árvores que de ali se avistavam agitavam brandamente as suas ramagens, cujas folhas apresentavam belos reflexos verde-claros. O céu era de um azul-vivo e transparente.

Eneias Finlay pensou, de si para si, que era aquele o dia escolhido pelo destino para que ele se elevasse aos píncaros da fama; era evidente que ele ia conseguir uma sentença condenatória. Os argumentos apresentados pela defesa em favor dos incriminados tinham sido de tal forma débeis e sem consistência, que, durante todo o tempo que demoraram as alegações, ele se limitara a sorrir com a maior complacência, como dando a entender que compreendia muito bem todos os esforços feitos pelo advogado para cumprir os seus deveres, mas deixando entrever também que tais esforços eram perfeitamente inúteis.
Finlay pigarreou para aclarar a garganta e prosseguiu:
— Sem demonstrarem possuir a mínima noção da moral e da ética, os homens que se sentam no banco dos réus comeram e beberam regaladamente durante um mês no restaurante de Peter Huxley, pretendendo em seguida safar-se sem liquidar a despesa.
O promotor piscou impercetivelmente um olho a Sally Brown, cozinheira do restaurante de «mister» Huxley, que estava fazendo parte do júri. Eneias intimamente tinha tido o maior cuidado na escolha dos membros do júri e esforçara-se ao máximo para que não fossem recusados pela defesa. Referindo-se ao mais alto dos dois incriminados, acrescentou:
— Este homem enleou Molly Parsons com juramentos de amor, levando-a a acreditar num futuro casamento! Depois... recusou-se a cumprir todas as suas promessas.
«Pícaro» Bill, olhou estupefacto para o promotor.
—Perdão! Eu não prometi coisa nenhuma.
— É capaz de negar que lhe jurou que a amava?
—Não nego.
— Então!... — exclamou o promotor em ar de triunfo, rodando sobre os calcanhares e olhando fixamente para Hellen Parsons, segundo membro do júri e irmã da «pobre Molly».
— Então... nada! — replicou «Pícaro», enfadado.
— Como é isso de «nada»? Jurou ou não jurou que a amava?
—Confesso que sim — concordou Bill —, mas também amo outras.
Eneias Finlay esbugalhou os olhos.
— Mas isso é o cúmulo da desfaçatez!
— Apenas sinceridade — retificou «Pícaro».
O homem pequenino que se sentava a seu lado, um mexicano magro e ameninado, deu-lhe uma cotovelada.
— Parece-me que será melhor para ti se te calares, «Pícaro».
— Porque razão é que eu hei-de calar-me, não me dirás, «colosso»? Fazem-me perguntas e eu respondo. Que pode haver de mau em semelhante coisa?
Luciano respondeu, num gemido:
— Pouca coisa: Podem enforcar-nos!...
«Pícaro» sorriu-se jovialmente.
— A tua maneira de encarar os problemas da vida é por demasiado pessimista, «Colosso» amigo. Quase me deixas acabrunhado... Se eu estivesse no teu lugar...
— Tanto estás no meu, como eu estou no teu, Bill. Acho que ambos estamos metidos no mesmo sarilho.
Finlay pigarreou com tanta força que ficou com a garganta dorida.
— Se os senhores acusados derem licença, prosseguirei no uso da palavra — interveio o promotor.
— Por quem é — desculpou-se «Pícaro». — Por nós não seja a dúvida!
O promotor apontou com o dedo para Luciano.
— Este salteador apoderou-se do cavalo de Júlio Baker!
A mulher de Júlio Baker, uma loira de agradáveis feições, chamada Joyce, fazia também parte do júri. Ficou ligeiramente ruborizada e sorriu-se discretamente.
Luciano ergueu a mão.
— Restitui o cavalo no dia seguinte...
— No dia seguinte! — comentou o promotor. — Mas nem por isso «mister» Baker deixou de fazer o resto do percurso a pé para chegar ao seu rancho. Nada menos do que doze horas de caminho. Além do que, o facto de restituir o cavalo não invalida o crime de roubo. Resta saber se foi a pileca que fugiu, ou não lhe agradou, ou...
—Fui eu quem a restituiu — insistiu Luciano.
— Pois seja. Mas apoderou-se dela pela força, sob a ameaça do revólver, obrigando Baker a desmontar. Isto chama-se simplesmente pirataria! E castiga-se ou pune -se com a forca.
Luciano levou, instintivamente, a mão à garganta e redarguiu:
— Suponho que o senhor está exagerando...
— Prossigamos — disse Finlay, exaltado. — De outra vez, no «Brandy-saloon», estes dois homens deram margem a uma tremenda zaragata, provocando os irmãos Truman, deixando-os gravemente molestados e deixando o estabelecimento completamente destroçado.
«Pícaro» soergueu-se no banco.
— Peço perdão! No que respeita ao destroçamento do «saloon», tão culpados somos nós, com os tais irmãos Truman. E quanta a ferimentos dos referidos Truman, se não fora eu e «Colosso» defendermo-nos, não seriam eles, mas nós próprios que estaríamos agora a receber assistência médica.
O promotor deixou escapar um vago sorriso, olhando disfarçadamente para Sara Truman, uma gentil rapariga de negros cabelos, aos caracóis, que era o membro número quatro do júri.
— Mas isto não é ainda o pior — prosseguiu o promotor de justiça. —Desde que, há cerca de um mês, estes dois criminosos fizeram a sua aparição em Besbee, aquele que dá pelo nome de William Vitória, mais conhecido entre os malfeitores por «Pícaro» Bill, assassinou diversos habitantes desta localidade crivando-os literalmente de balas. Quem há aí que se não recorde de Vem Bennet?
— Esse tipo não passava de um miserável trapaceiro no jogo das cartas e quando eu lho fiz notar, cometeu a imprudência de puxar pelo seu «Derringer».
— É ou não é verdade que você o matou no «Poker-Saloon»?
— É verdade.
Finlay olhou intencionalmente para Andrew Lee, proprietário do «Poker-Saloon» e quinto membro do júri.
—Nega que assassinou Jay Patterson?
— Peço mais uma vez perdão, mas a verdade é que eu é que fui provocado — disse Bill, meio-exaltado. — E devo informar o tribunal que antes de empunhar o revólver fiz todo o possível para o convencer de que ia cometer um tremendo disparate.
— Fantasias! — comentou Finlay.
O assassínio de Jay Patterson interessava aos jurados números seis, sete e oito: John Stewart, gerente do «Jolly-Saloon»; Bob Mac Namara, ganadeiro; e Lotty Power, uma linda rapariga da localidade e ex-noiva de Jay Patterson, precisamente a partir do dia em que «Pícaro» surgiu em Besbee acompanhado do seu inseparável companheiro Luciano.
— Como se isto ainda não bastasse, enquanto o acusado mais pequeno ficava de guarda aos cavalos vigiando e preparando a fuga, «Pícaro» Bill introduzia-se, através de uma janela, na residência dos Forsytte! Felizmente para todos, passou por este tribunal o número suficiente de testemunhas para confirmar a minha acusação. «Pícaro» Bill viu-se obrigado a retroceder, montar a cavalo e desaparecer com o seu cúmplice, após uma baldada tentativa' de roubo.
Tadeu Peres, criado dos Forsytte, era o jurado número nove. O membro número dez era uma ruiva de invulgar aspeto, que olhava para Eneias Finlay como se fosse um tigre. Tratava-se de Betty Turner, uma parente afastada dos Forsytte que se encontrava de passagem em Besbee. O acusador público colocou-se em frente dos acusados, reprimindo o seu regozijo.
— Mas não é tudo ainda! A prova mais convincente do que são capazes os salteadores, é-nos dada pela sua audácia ao pretenderem roubar o gado de Frank Gable! Só a oportuna intervenção dos vaqueiros impediu que levassem a sua avante, vendo-se este par de canalhas obrigado a fugir a toda a velocidade, limitando-se a sua ação ao tresmalho de algumas reses, o que, por felicidade, pôde ser impedido a tempo.
Berta Gagle e Rosário Lucientes, membros do júri números onze e doze, suportaram serenamente o olhar triunfante de Finlay. Acabado o discurso de acusação, o acusador público voltou-se para o presidente:
— Tenho dito!
Seguidamente, o juiz-presidente do tribunal, determinou:
— O júri pode recolher para deliberar. Em face da prova produzida, não será difícil declarar os acusados culpados ou inocentes. Espero que a decisão seja o mais rápida possível.
Os doze componentes do sinédrio foram conduzidos a uma sala próxima por um dos oficiais de justiça que se retirou após ter fechado a porta. Luciano olhou com ar apreensivo para a porta que acabava de fechar-se e deu outra cotovelada no seu amigo Bill.
— Que te parece, «Pícaro»? Que pensas de tudo isto?
«Pícaro» sorriu-se levemente, sem deixar de olhar com os seus olhos verde-mar para o rosto triunfante do acusador público.
— Há-de ser o que Deus quiser... — replicou ele.
Eneias Finlay cochichava com o juiz Cronwell esfregando as mãos de contente, enquanto este acenava afirmativamente a tudo quanto o outro lhe segredava.
— Grande triunfo! -- dizia ele. —Há muito tempo que não se enforcava ninguém em Besbee!
Entretanto...
Os doze membros do júri apreciavam como lhes competia a prova testemunhal. Sally Brown, a cozinheira do restaurante «Huxley», era de opinião que um homem que requestava as mulheres como «Pícaro» Bill o fazia, era mais digno de um trono do que de uma forca, acrescentando que teria muito prazer em que ele continuasse a cortejá-la, pouco se importando de que ele pagasse ou não pagasse a despesa que fizera no hotel.
Hellen Parson, irmã da «pobre Molly», manifestou o seu descontentamento quando se apercebeu de que o simpático e galanteador «Pícaro» a desprezava a ela, trocando-a por sua irmã. Não estava disposta a consentir no enforcamento de «Pícaro». Lá porque Molly fora tão simplória que o denunciara por ter abusado da sua confiança e da sua ingenuidade, não era razão para que ela o não defendesse a todo custo, levando-o a mostrar--lhe toda a sua gratidão. Ser amada por um tal homem, era o seu anseio supremo! Fechou os olhos por um instante. Abriu-os logo em seguida e encarou todos os demais membros do júri, em ar de desafio. «Pícaro» tinha declarado: «Também amo outras». Que culpa tinha o pobre rapaz de lhe não terem dado tempo para que a amasse também a ela? E ela que culpa tinha?
Joyce, a gentil loira de delicadas feições, esposa de Júlio Baker, recordou romanticamente a noite em que «Pícaro» lhe segredava frases sentimentais, enquanto seu marido calcorreava a planície a vários quilómetros de distância. Pensava, intimamente, que, se Luciano se não tivesse apoderado do cavalo de seu marido, talvez nunca tivesse vivido uma noite tão maravilhosa. Concentrou-se na recordação daquelas horas inigualáveis e o seu peito encheu-se de gratidão para com «Pícaro» Bill. O acusador público não devia estar bom da cabeça! Como podia ele esperar que ela votasse a condenação do tão extraordinário homem?
Pelo seu lado, Sara Truman, a deliciosa trigueirinha, recordava com enlevo o momento em que confessara a seus irmãos que estava na disposição de fugir na companhia de «Pícaro». Mas recordava também, com tristeza, a reação de seus irmãos que não se mostraram dispostos a colaborar na aventura. A primeira coisa que eles fizeram foi irem contar tudo a Salomão Truman, o chefe daquela família de gigantes, que tomou a iniciativa de enviar um exército de valentões contra Bill, com a missão de lhe quebrar os ossos. E o resultado foi ficarem reduzidos pouco menos do que a estilhas. Sara sorrira deliciada com a façanha. Iria até aonde lhe fosse possível a fim de obter um veredicto de inocência para o acusado. Era a única maneira de o seu sonho de fuga se converter em realidade.
Andrew Lee, o proprietário do «Poker-Saloon», lembrava-se perfeitamente de como e quando «Pícaro» correu a tiro Vem Bennet. Bennet não passava de um trafulha e de um fanfarrão que só lhe desacreditava o estabelecimento. Ameaçava constantemente os clientes da casa e «depenava-os» ao jogo, logo em seguida. Era evidente que nenhum deles voltava a pôr ali os pés, o que afetava grandemente os lucros do seu negócio. Quando «Pícaro» liquidou Vem Bennet, compreendeu que acabava de ser salvo da ruína. Não podia deixar de lhe estar absolutamente grato é ainda que os outros o considerassem culpado, ele, pelo seu lado, votaria pela sua inocência.
John Stewart, proprietário do «Jolly-Saloon» estava farto de Jay Patterson até aos olhos. Patterson era conhecedor de alguns dos seus «pecadilhos» e aproveitava-se dessa circunstância para exercer «chantagem», explorando-o por todas as formas. Quando o viu tombar varado a tiro por «Pícaro» Bill, sentiu-se liberto de um enorme pesadelo. A sua gratidão para com «Pícaro» não conhecia limites.
Lotty Power deu um suspiro de alívio e pensou de si para si que o destino acabava sempre por resolver as coisas da maneira mais simples. Quando disse a Joy que as suas relações tinham terminado porque ela se tinha apaixonado por «Pícaro», ficou na convicção de que ele saberia comportar-se como um autêntico cavalheiro. Não aconteceu assim. Barafustou como um louco furioso, jurando matar «Pícaro» Bill. Que culpa tinha «Pícaro», afinal, de que o outro se tivesse comportado como um idiota?
Bob Mac Namara desconhecia as razões que levavam John Stewart e Lotty Power a considerar inocentes os acusados. Em contrapartida deixara-se seduzir pelos encantos de Lotty. Enquanto Joy foi vivo, não se atrevia nem sequer a dirigir-lhe um simples olhar pela simples razão de que Jay Patterson era terrivelmente eficaz com o seu revólver. Uma vez Jay desaparecido, ficava--lhe o caminho completamente livre. Tinha uma grande admiração por «Pícaro» porque tivera a coragem de eliminar um homem cuja simples presença lhe causava pânico. «Amor com amor se paga». pensou ele.
Tadeu Peres, criado dos Forsytte, toda a vida padecera da doença dos soluços, para a qual baldadamente procurara alívios durante anos e anos, conseguindo apenas que a doença se agravasse redobrando-lhe os sofrimentos. Aconteceu, porém, que no dia em que «Pícaro» entrou pela primeira vez no estabelecimento se gerou um tal burburinho dentro do salão, com murros e tiroteio, que ele experimentara uma profunda sensação de terror... tendo os soluços desaparecido por completo. Tinha-o feito sofrer tanto aquela maldita doença... Impedira-o sempre de ser feliz! E recordou, melancolicamente, o dia em que declarou o seu amor a Palita Martinez. «Palita... hip... eu... hip... amo... hip... te! hip... hip...!» E a pobre rapariga, com o espanto pintado no rosto respondeu-lhe que nunca poderia corresponder ao amor de um homem, por mais trabalhador e honrado que fosse, se esse homem, de cada vez que abria a boca produzia o mesmo ruído que faz uma garrafa quando se lhe extrai a rolha. Tadeu sentiu-se emocionado ao lembrar-se de que Palita continuava ainda solteira e que ele se encontrava completamente curado dos seus malditos soluços. E... graças a quem? Aos médicos? Nem por sombras! Graças apenas a «Pícaro» Bill e ao sarilho que se armou quando fugia de residência dos Forsytte. «Inocente»! Não podia ser outro o seu voto.
Betty Turner, a parente afastada dos Forsytte, era uma jovem apaixonada de cabelo anelado que havia de odiar toda a vida o seu tio Grant que surpreendera «Pícaro» quando se preparava para entrar no seu quarto. Betty estava perdida de amores por «Pícaro» Bill e seria mais fácil consentir que a enforcassem a ela do que contribuir para que sentenciassem o seu adorado.
Berta Gable, irmã de Franck Gable, estava ansiosa para proclamar o seu veredicto. A primeira coisa que ela se propunha fazer logo que Bill fosse posto em liberdade, era assegurar-lhe que na primeira vez que tornassem a encontrar-se, se rodearia das maiores precauções. Narcotizaria seu irmão. Assim mesmo. Ficaria a dormir como um cepo. Berta esperava que Bill se mostrasse condescendente.
Rosarito Lucientes, pelo seu lado, esperava também que Luciano se mostrasse condescendente. Tinham sido elas que puseram as reses em debandada quando os vaqueiros do rancho e o próprio patrão descobriram os cavalos dos intrusos. Foi assim que «Pícaro» e Luciano puderam fugir... muito embora não conseguissem evitar ser reconhecidos por alguns dos trabalhadores da herdade.
Bob Mac Namara, o rancheiro que estava apaixonado por Lotty Power, ergueu a voz e declarou:
—Na qualidade de presidente do júri, solicito que cada um dos membros transmita o seu parecer...
Eneias Finlay olhava triunfantemente, ora para «Pícaro» Bill, ora para Luciano e vice-versa.
— Vai ser um belo espetáculo — desabafou ele. -- O juiz já me deu a certeza de que a sentença será executada amanhã.
«Pícaro» bocejou escarninhamente.
— Espero que esteja um dia tão bonito como o de hoje.
A arrogância de Eneias Finlay fraquejou sensivelmente.
— Atreve-se a escarnecer-me?
Bill olhou-o com ar de ternura.
—Nem pensar nisso! É que sou muito supersticioso, compreende? Ficaria desgostoso se chovesse.
O outro pestanejou, cheio de curiosidade.
— Desgostoso, porquê? — perguntou.
— Sempre ouvi dizer que quando chove em dia de grande solenidade, é mais do que certo que temos azar pela porta.
Finlay reprimiu uma praga.
— Quer chova, quer faça sol sereis enforcados na mesma. Que mais dá uma coisa ou outra?
«Pícaro» semicerrou os olhos.
— Os corpos dos enforcados agitados pelo vento e fustigados pela chuva constituem um espetáculo bastante desagradável.
Uma pancada seca dada pelo juiz, com o martelo, pôs um ponto final na conversa. Os membros do júri começavam a regressar à bancada. Finlay enganchou os polegares nas cavas do colete, alçou-se nas pontas dos pés, olhou para Mac Namara que acabava de se levantar e esperou.
— Vejamos qual é o veredicto— disse o juiz.
Mac Namara, fazendo-se eco da decisão geral, exclamou:
— Considerado inocente por unanimidade.
Eneias Finlay deu um pulo.
— Não é possível! — disse ele, surpreendido.
Na sua frente, uma dúzia de rostos impassíveis observavam-no com ar desdenhoso. Um alvoroço tremendo gerara-se em toda a sala, enquanto o juiz batia repetidas pancadas com o martelo sobre a secretária, a fim de impor a sua autoridade. Restabelecido o silêncio, voltou-se para os acusados:
— Levantem-se os réus.
«Pícaro» e Luciano obedeceram.
— Em face do veredicto proferido pelo júri, declaro os réus ilibados de toda a culpa, pelo que os mando em paz e em liberdade — declarou o juiz, desaparecendo logo em seguida por uma porta lateral.
Eneias, pasmado e boquiaberto, olhava confuso para a bancada dos membros do júri. Apenas para a bancada...
Porque dos componentes do grupo de jurados já não restava nenhum. Todos eles rodeavam Bill e Luciano, demonstrando a sua satisfação pelo resultado do julgamento.
As mulheres, especialmente, aproveitaram-se da situação para segredarem certas frases aos ouvidos de William. Passados instantes, só ficaram na sala Eneias Finlay, «Pícaro» Bill e Luciano.
— Não é caso para ficar com uma cara dessas — disse Bill, dirigindo-se ao acusador público. — É preciso saber perder.
Finlay apenas balbuciou:
— Confesso que não compreendo... Era tudo tão claro! Expliquei minuciosamente todas as vossas culpas..
—E não há dúvida que o fez o melhor possível --continuou ele, em ar de consolação. — Foi até muito eloquente! Não te parece, Luciano?
O outro acenou afirmativamente. — Estou até em dizer que é o homem que melhor tenho ouvido falar em toda a minha vida!
«Pícaro» deu uma amigável palmada nas costas de Finlay.
— Não desespere, «mister». Outro dia será...
Enquanto os dois homens se retiravam, pareceu-lhes ouvir, vagamente, que Eneias Finlay murmurava:
— Parece-me que vou pedir a minha demissão...
Uma vez na rua, Luciano puxou «Pícaro» pela manga do casaco.
—Escuta, Bill. A verdade é que... eu próprio, também o não compreendo!
William Vitória semicerrou os olhos e sorriu ligeiramente.
— Ouve, Luciano... Helena Parsons espera-me esta noite em sua casa, às nove horas. Jura que não é tão exigente como a «pobre Molly» ...
«Colosso» olhou para o seu amigo com sincero espanto.
— Bill... será melhor não recomeçarmos!
«Pícaro», porém, parecia não lhe dar atenção.
— Joyce Baker prometeu-me que envenenaria o cavalo de seu marido... e espera por mim às dez.
— Oh céus! — disse Luciano, quase num soluço.
— Sara Truman vai comprar passagens para os dois, para a diligência que passa às onze para Tucson.
—Nada temos que fazer em Tucson, Bill!
William sorriu-se com entusiasmo.
— Lotty Power, espera por mim à meia-noite. Diz que é uma hora excelente para jantar e iniciar um novo dia...
— Não te metas nisso...
— Betty Turner espera-me à uma. Jurou-me solenemente que se o seu tio Grant lhe aparece no corredor... lhe faz saltar os miolos com uma bala.
«Colosso» torcia e retorcia as mãos com desespero.
— Ouve, Bill! Tens de refletir! Bem sei que é pedir-te demasiado... mas, ao menos por esta vez, faz o sacrifício!
«Pícaro» deu um suspiro e olhou para a verde ramagem das árvores.
— Berta Gable garantiu-me que o narcótico começava a produzir os seus efeitos às duas. Não só ficará adormecido seu irmão, mas também os vaqueiros, os serventes e até o gado. A propósito, amigo Luciano. Cumprimentos de Rosarito. Ela também te espera.
«Colosso», meio vencido, perguntou debilmente:
— Achas que devemos ir, Bill?
«Pícaro» abanou sacudidamente a cabeça, como se tivesse acabado de acordar.
— Como dizes? Então nós estivemos vai não vai para ser linchados e achas que serei tão idiota que volte a meter-me noutra? Nem pensar nisso, «Colosso». Vamos safar-nos daqui neste mesmo instante. Acabaram-se as complicações e os sarilhos.
Luciano sentiu os olhos arrasarem-se de lágrimas.
— Eu sabia que és um homem inteligente. Nem sabes a alegria que me dás! E... para onde nos dirigimos?
Bill arqueou as sobrancelhas.
— Para um lugar seguro, como é fácil de prever...
— Eu sei de uma pequena povoação — insinuou Luciano.
— Já descobri! -- disse Bill. — Vamos buscar os cavalos.
Dirigiram-se para o lugar onde guardavam os animais, passaram pela repartição do xerife que lhes devolveu as armas e afastaram-se de Besbee. Luciano perguntou, um tanto inquieto:
—Para onde vamos?
Os olhos de William Vitória iluminaram-se.
—Vamos para um lugar onde estaremos como o peixe na água. Já lá estivemos noutra ocasião. Temos lá alguns bons amigos.
—Onde é isso?
— Em Dodge City! — exclamou «Pícaro» esporeando a montada. — Avante «Lágrima»! Para a frente é que é o caminho.
Luciano fechou os olhos, como quem está à beira de presenciar um cataclismo.
—Virgem bendita! E dizia este homem que queria ir para um lugar seguro onde não houvesse complicações de espécie nenhuma!
E... resignadamente, estimulou o cavalo, seguindo na cola do seu companheiro...

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