Os homens do tipo de Link Grinter não se parecem muito com as pessoas normais. Contra todos os prognósticos, desafiando as leis da lógica mais elementar, o fugitivo chegou longe.
Suportou uma semana a cavalo. Subiu pela pradaria até Doole, onde adquiriu provisões. Chegou a Millersview. Cavalgou, à beira da morte, para Paint Rock.
Tudo isso a marchas forçadas, sem repousar, infligindo-se um tratamento brutal para estancar a hemorragia, e sentindo, como animados de vida, o peso dos dois chumbos incrustados nas costas.
A cura aprendera-a com um velho rato do deserto que conduzia carroças pela Rota do Oregão. Não era muito ortodoxa nem representava um medicamento eficaz. Mas servia para casos de urgência como o seu.
Quando chegasse a Paint Rock, fora do alcance dos xerifes da comarca, entregar-se-ia nas mãos de um médico e este extrairia as balas. Tinha dinheiro, e com dinheiro... não se conseguem as coisas mais impossíveis? Há médicos de poucos escrúpulos e acostumados a fechar a boca, se lhes pagarem bem.
Só, confiando exclusivamente nas suas forças, foi recordando as palavras do «trailman» Loving. Parecia-lhe escutar a sua voz rascante, penosa, repetindo as instruções entre cuspidela e cuspidela de tabaco de mascar.
«— Ouve bem isto, filho. Nós, os que viajamos pelo deserto, devemos aprender a desembaraçar-nos sem ajuda de ninguém. Gostas de cirandar por aí, não? Pois não tenho nada a opor. Viverás muitos anos se te afizeres à ideia de que não existe mais ninguém no mundo senão tu... Não é preciso grande talento, filho. Só um pouco de habilidade. Segue o exemplo dos animais. Eles sabem... tratam-se das suas doenças sem remédios e sem médico. Entendes-me?»
— Sim, Loving — replicava ele.
«— Pois é. O pior das feridas de bala não é o chumbo em si. Há outras duas coisas fatais: a hemorragia e a infeção. Qualquer pessoa pode tirar-te a bala com a ponta de uma faca, desinfetando-a ao fogo. Isso é simples, mas o sangue? Se sai muito um tipo pode ficar seco em meia hora. Primeiro é preciso parar o jorro. Como? Com isto!» — e mostrava uma cápsula do seu longo «sharps» mata-búfalos, capaz de trespassar um bisonte de lado a lado. — «Presta atenção, filho».
— Diga.
«— Aí vai. Pega-se no cartucho e tira-se o projétil do invólucro. Uma vez separado, empregas a pólvora para cobrir a ferida. Em certas ocasiões, sangra tanto que são precisas várias cargas de pólvora... Quando o ferimento está bem coberto de pólvora, aplica-lhe um fósforo. Grande invento os fósforos: basta esfregar! Bom. Custa um bocado. Cheira a carne de vitela chamuscada. E é a nossa carne, filho! Mas que mais pode pedir-se? Assim, a ferida transforma-se num bife grelhado... e não sai nem urna pinga de sangue! Com respeito à infeção, conheces as oito ervas comanches que evitam a formação de pus? Eu ensino-te...»
Naquele deserto salino não havia ervas comanches de nenhuma espécie, porque as manifestações vegetais escasseavam assombrosamente, e reduziam-se a murchas plantas vasculares da família das cactáceas.
Para atalhar a hemorragia e não acabar exangue, Link despojou-se da camisa. Utilizando uma pedra, esmagou alguns cartuchos e formou_ um regular montinho de pólvora. Com ela regou a dorida espádua.
Ato contínuo, aplicou um fósforo, berrou de dor ao sentir-se assar vivo, o irritante cheiro a carne queimada nublou-lhe a razão... e perdeu os sentidos.
Um tratamento selvagem, completamente bárbaro. Mas, quando recuperou os sentidos, verificou que as dores tinham cessado e que se encontrava muitíssimo melhor. O simiesco Loving dissera a verdade. Todavia — é bom explicá-lo — o mal ficara no interior. Dentro da ferida cujos bordos tinham sido fechados com pólvora e fogo.
Meio recomposto da sua prostração de chumbo, cavalgou até Doole onde se abasteceu. As pessoas olhavam com estranheza o seu primoroso revólver. Aquela coronha... esteve tentado a desfazer-se da arma. No entanto, ainda que fosse estúpido, devia confessar que lhe ganhara estima.
Nunca encontrara um instrumento para matar com um acabamento tão perfeito. Agora o «Colt» fazia parte de si próprio. Perdê-lo seria como se lhe arrancassem um dedo, uma orelha, o nariz...
De Doole seguiu para Millersview. Ali o perigo era muito maior. Viu cartazes com a sua descrição pregados em algumas paredes!
Os avisos da Lei cavariam a sua desgraça ao menor descuido. Voltava a sentir-se mal, extremamente fraco. Mas empreendeu o caminho para a distante Paint Rock. Só nessa cidade poderia considerar-se completamente a salvo.
Durante a cavalgada desmaiou duas vezes. Dois avisos certos sobre a gravidade do seu estado. Não lhes deu atenção. O primeiro foi breve. O segundo demasiado prolongado para pressagiar senão funestas consequências.
No entanto, não havia remédio. Tarde demais para assustar-se e pensar em retroceder. O deserto estendia-se, dominador, pelos quatro pontos cardiais.
Ardiam-lhe os castigados olhos. Sabia que tinha febre. Os lábios gretados, a pele a escaldar, o olhar lânguido, sem luz, davam-lhe ao rosto uma expressão de completo abatimento.
Ainda que nunca chegasse a inteirar-se disso, Link Grinter perdeu a partida por obstinar-se em prosseguir na fuga. Em Millersview — não obstante o risco de ser detido — desprezara a salvação. Necessitava de cuidados médicos; nada de bruxarias bestiais de carroceiro. Continuando a viagem, lavrou a sua desgraça e assinou a inexorável sentença de morte. Se pudesse contemplar-se a um espelho, não daria pela sua pele nem cinco cêntimos falsos.
Além disso, sem reparar, desviou-se da rota. Deixou a direção noroeste. Por aquele caminho nunca alcançaria Paint Rock. Nunca.
O terceiro desmaio, o verdadeiramente perigoso, atacou-o a um anoitecer. As estrelas, lutando contra o pôr do sol, esforçavam-se por brilhar sobre a abóboda impressionante do firmamento. Uma dor forte, lancinante, perfurou-lhe a cabeça. Uma dor interna, recôndita, mil vezes pior que a física. Não pôde manter o equilíbrio... e resvalou da sela.
A cem metros de distância, talvez por um desses prodígios da natureza que mais parecem milagres, corria um regato de pequeno caudal. Os sinais da humidade entraram pelos dilatados olhos do alazão que iniciou um trote rápido, acicatado pela promessa líquida que atuava como um íman sobre o seu sedento ser.
Link, caído no chão, ouviu o retumbar do galope e gritou roucamente. O saco do dinheiro estava nos alforges. Fugia com o animal. Fugia.
Não conseguiu mover-se de onde estava. Nem sequer sacar o revólver. Caiu a noite. No escuro as suas dores recrudesceram. Teve medo. Um pânico irracional e louco. As trevas horrorizavam-no. O cavalo não voltou para o seu lado. Uma vez acalmada a sede, livre do cavaleiro, pôs-se a correr para onde o levava a vontade, mordiscou uns rebentos raquíticos que cresciam junto às margens do arroio... e perdeu-se no deserto.
Quando nasceu o sol, Link Grinter desistiu dos seus inúteis esforços para mover-se. Tudo lhe era indiferente! Entre névoas, baçamente, verificava que não continuava a cavalo. Que o animal tinha fugido... levando os maços de notas!
Mal respirava. O calor que tombava do céu e o daquele chão de forno consumiam-no. Dinheiro? Bah!... Para que queria o dinheiro no deserto? Só Paz. Uma morte tranquila e sem dor.
As costas eram uma autêntica brasa. Uma chaga candente e insuportável. Anoiteceu outra vez antes de que no seu dorido cérebro entrasse a evidência. O vagabundo admitiu então, dominado por brumas mentais, que se acabara o seu errar por sendas ignotas. Que chegara ao final da viagem. O sol calcinaria os seus ossos e os corvos debicariam o seu cadáver. A ideia já não o aterrorizou. Morrer era uma libertação, entre tantas torturas.
///
O homenzinho miúdo, de cara de rato e fato miserável, cavalgava em pelo uma égua velha, esquálida, com o desenho das costelas marcando-lhe o esqueleto em pronunciado relevo. Peter Brown estranhou ver o alvoroçado bando de corvos. Ato contínuo meteu calcanhares à égua.
O trote cansado do animal afugentou as aves de rapina e revelou aos olhos do cavaleiro o vulto que alterava a lisura do deserto. Desmontou e aproximou-se do cadáver. Sem escrúpulos, colou-lhe o ouvido ao peito. Sorriu, mostrando os dentes amarelos e desiguais.
Link ainda vivia. Talvez guardasse no coração urna reserva inesgotável de energias. Peter Brown viu-lhe as costas de pele esticada pela carne esponjosa. Viu as bicadas dos corvos. A inflamação purulenta. E a gangrena.
Apesar disso, não consentiu em deixar morrer o desconhecido.
Carregou-o na égua e levou-o até ao regato. Humedeceu-lhe a testa, fê-lo beber água e esperou em vão que ressuscitasse do letargo.
O ferido queimava como o rescaldo de uma fogueira. Era, na verdade, um rescaldo do fogo vivo e crepitante de antanho. Resolvido a salvá-lo ou pelo menos a tentá-lo, voltou a atravessá-lo na égua que tomou o caminho do seu rancho.
Maria e os sete pequenos — mais esfarrapados do que o pai — fizeram-lhe uma receção de boas-vindas, cheia de gritos e risos. Era sempre assim no seu regresso.
Pouco a pouco, assim que foram atentando, na figura oscilante que pendia da sela, a euforia decresceu. Maria, consciente do seu duplo dever de esposa e mãe, ordenou aos pequenos que se retirassem. Quando Peter parou a égua em frente do casebre de adobe que constituía o seu humilde rancho, estavam sós, frente a frente, com um moribundo entre eles.
— Encontrei-o a duas milhas daqui — explicou o marido.
— Morto?
— Pouco lhe falta.
— Faremos por ele o que for necessário — resolveu a mulher. — É o que tu queres, Peter. Tens alma de samaritano. Conhece-lo?
— Não. Deve ter vindo de longe. Mas não encontrei o cavalo. Sem dúvida, trotou ao longo do ribeiro e extraviou-se.
— Que tem?
— Dois tiros nas costas — disse Peter, indicando com um gesto que o ajudasse a descê-lo do cavalo. — É o primeiro que recolhemos nestas condições. O sol, a sede e o pó fizeram o resto. A ferida cicatrizou. Creio que deve ter utilizado o fogo para cicatrizá-la... Contudo, continua infetada por dentro.
— Gangrena?
Brown fez que sim. Não voltaram a falar até o colocarem na velha cama de coinfecção caseira.
Os rapazitos, que revoluteavam em torno num borboletear de curiosidade, foram afugentados por Maria. Ela, eficiente e pressurosa — porque uma mãe carregada de filhos nunca perde a serenidade e se curtiu em tarefas que abarcam todo o caseiro caleidoscópio de prementes necessidades —, acendeu o lume, pôs a ferver um grande caldeiro com água e dispôs tiras de pano branquíssimo que ia rasgando de um lençol. Água esterilizada e ligaduras. Constituíam cinquenta por cento da primária assepsia operatória. Os outros cinquenta — na opinião de Maria — conseguiram-se acendendo uma velinha ao pé de uma imagem da Virgem, talhada em vermelha madeira de cedro.
Peter, fumando um cigarro, contemplava a próxima perspetiva do deserto, árido, enorme, devorador como umas fauces malignas.
Eles, na sua pobreza, tinham ajudado mais de um viajante perdido na imensidão estéril. Link Grinter não fora o único a receber cuidados das mãos ásperas mas carinhosas de Maria, a mestiça.
Sim. A esposa de Peter era mestiça. Por isso viviam ali. Longe das povoações e afastados da sociedade. Extraindo à terra dura parcas colheitas de milho e centeio. Tal como renegados.
Os seus filhos ainda não conheciam Eden, a aldeia mais próxima, distante umas quinze milhas — porque quando tinham que efetuar compras de sementes ou vendas de frutos, o próprio Peter se ocupava disso.
— A água está pronta, Peter — anunciou Maria. —Começamos?
Chamava-lhe, indistintamente, Peter ou Pedro. Maria jamais poderia esquecer a sua ascendência hispânica. Tinha imensas saudades do México natal. Mas compreendia que a sua obrigação era estar junto do marido, onde quer que fosse.
— Sim. Traz as facas para abrir. E a garrafa de aguardente. Cuidado, Pedro. As lâminas estão ao rubro.
— Diz aos pequenos que não venham para aqui. Não é espetáculo para eles.
— Já pus o Tomás em chefe do bando. Dando poderes a um, deixam-nos logo em paz.
— Não sei o que faria sem ti neste mundo complicado.
Ela agradeceu a lisonja com um leve franzir de lábios. Como pessoa prática no ofício, Maria despiu a camisa a Link. As cicatrizes, completamente ulceradas, infundiam pânico. O pulso batia muito debilmente, apagando-se. Ardia em febre.
As condições físicas não aconselhavam a intervenção e o casal, de um modo tão rudimentar como intuitivo, presumia que as chagas absorveriam qualquer tipo de germes patogénicos. No entanto, como Peter observou com acerto, não existia outra opção.
— Não vai durar muito, Maria — disse. — Estes chumbos estão a matá-lo a toda a velocidade. Extraí-los é o único remédio. Se suportar a operação, talvez se salve.
— Confiemos em Deus. Confiemos n'Ele. Vamos.
A afiada faca praticou uma punção, por onde brotou um jorro de líquido amarelo-esverdeado. A aguardente atuou como desinfetante, e as ligaduras de Maria — pobres compressas daquela não menos pobre sala de operações — estancaram o sangue.
Peter Brown sondou, remexeu, e usou os dedos como pinças. As duas balas, depois de impaciente manobrar, foram extraídas do seu alojamento orgânico. Os lábios Link não deixaram escapar nem um gemido. O seu esta de completa inconsciência constituía a melhor das anestesias.
Naquela noite, Maria velou-o sem lamentações. Os pequenos dormiam. Aquela mulher possuía o dom maravilhoso de se multiplicar à vontade sem descurar nenhum detalhe. Peter, inquieto, fumava, deitado ao fresco do deserto, no alpendre da casita, sobre a manta multicor, de tecido índio. As horas pareciam ter-se detido. A espera acabou por abater-lhes o ânimo.
Quando amanheceu, Grinter continuava pálido, sem sentidos, e consumido por uma febre elevada.
— Morre — repetiu ela com o fatalismo esmagador dos convencidos.
Puseram-lhe panos molhados na testa. Fizeram-lhe uma sangria. Inútil. A febre não desceu. Link, cadavérico continuava com as pálpebras cerradas e o coração batendo com força. Consumia-se em crispações silenciosas, como o toco final de uma vela de sebo.
Dois dias e duas noites durou a agonia. A família Brown, do primeiro ao último dos seus membros, viveu pendente do desconhecido. Jamais souberam o seu nome. Por fim, sempre em silêncio, começou a adquirir rigidez e o seu corpo perdeu calor, esfriando, até ficar gelado de todo.
O vagabundo Grinter morreu tão ignorado como vivera.
Na sepultura aberta perto do casebre só houve uma cruz tosca, confecionada por Maria com dois paus torcidos. Não inscreveram nenhum nome. O coldre com o revólver de coronha cor-de-rosa foi tudo quanto restou do forasteiro.
E como os Brown eram uma família pobre, necessitada e esfomeada, Peter compreendeu que nada ganharia se guardasse essas duas coisas como recordação.
Na semana seguinte, na sua viagem a Eden para vender os sacos de centeio no armazém geral «Strafford», iria visitar «mister» Wooden, o prestamista e trataria de conseguir alguns dólares. Os pequenos gastavam mais do que Peter conseguia tirar das suas mirradas colheitas.
O revólver de Lee Dunham trazia a desgraça aos seus possuidores. Mas modificar-se-ia alguma vez aquela má estrela para conceder, ao menos, uma pálida centelha de felicidade? Talvez.
Em Eden, dias mais tarde, um homem bom iria precisar daquele revólver para vender caro a vida.
Suportou uma semana a cavalo. Subiu pela pradaria até Doole, onde adquiriu provisões. Chegou a Millersview. Cavalgou, à beira da morte, para Paint Rock.
Tudo isso a marchas forçadas, sem repousar, infligindo-se um tratamento brutal para estancar a hemorragia, e sentindo, como animados de vida, o peso dos dois chumbos incrustados nas costas.
A cura aprendera-a com um velho rato do deserto que conduzia carroças pela Rota do Oregão. Não era muito ortodoxa nem representava um medicamento eficaz. Mas servia para casos de urgência como o seu.
Quando chegasse a Paint Rock, fora do alcance dos xerifes da comarca, entregar-se-ia nas mãos de um médico e este extrairia as balas. Tinha dinheiro, e com dinheiro... não se conseguem as coisas mais impossíveis? Há médicos de poucos escrúpulos e acostumados a fechar a boca, se lhes pagarem bem.
Só, confiando exclusivamente nas suas forças, foi recordando as palavras do «trailman» Loving. Parecia-lhe escutar a sua voz rascante, penosa, repetindo as instruções entre cuspidela e cuspidela de tabaco de mascar.
«— Ouve bem isto, filho. Nós, os que viajamos pelo deserto, devemos aprender a desembaraçar-nos sem ajuda de ninguém. Gostas de cirandar por aí, não? Pois não tenho nada a opor. Viverás muitos anos se te afizeres à ideia de que não existe mais ninguém no mundo senão tu... Não é preciso grande talento, filho. Só um pouco de habilidade. Segue o exemplo dos animais. Eles sabem... tratam-se das suas doenças sem remédios e sem médico. Entendes-me?»
— Sim, Loving — replicava ele.
«— Pois é. O pior das feridas de bala não é o chumbo em si. Há outras duas coisas fatais: a hemorragia e a infeção. Qualquer pessoa pode tirar-te a bala com a ponta de uma faca, desinfetando-a ao fogo. Isso é simples, mas o sangue? Se sai muito um tipo pode ficar seco em meia hora. Primeiro é preciso parar o jorro. Como? Com isto!» — e mostrava uma cápsula do seu longo «sharps» mata-búfalos, capaz de trespassar um bisonte de lado a lado. — «Presta atenção, filho».
— Diga.
«— Aí vai. Pega-se no cartucho e tira-se o projétil do invólucro. Uma vez separado, empregas a pólvora para cobrir a ferida. Em certas ocasiões, sangra tanto que são precisas várias cargas de pólvora... Quando o ferimento está bem coberto de pólvora, aplica-lhe um fósforo. Grande invento os fósforos: basta esfregar! Bom. Custa um bocado. Cheira a carne de vitela chamuscada. E é a nossa carne, filho! Mas que mais pode pedir-se? Assim, a ferida transforma-se num bife grelhado... e não sai nem urna pinga de sangue! Com respeito à infeção, conheces as oito ervas comanches que evitam a formação de pus? Eu ensino-te...»
Naquele deserto salino não havia ervas comanches de nenhuma espécie, porque as manifestações vegetais escasseavam assombrosamente, e reduziam-se a murchas plantas vasculares da família das cactáceas.
Para atalhar a hemorragia e não acabar exangue, Link despojou-se da camisa. Utilizando uma pedra, esmagou alguns cartuchos e formou_ um regular montinho de pólvora. Com ela regou a dorida espádua.
Ato contínuo, aplicou um fósforo, berrou de dor ao sentir-se assar vivo, o irritante cheiro a carne queimada nublou-lhe a razão... e perdeu os sentidos.
Um tratamento selvagem, completamente bárbaro. Mas, quando recuperou os sentidos, verificou que as dores tinham cessado e que se encontrava muitíssimo melhor. O simiesco Loving dissera a verdade. Todavia — é bom explicá-lo — o mal ficara no interior. Dentro da ferida cujos bordos tinham sido fechados com pólvora e fogo.
Meio recomposto da sua prostração de chumbo, cavalgou até Doole onde se abasteceu. As pessoas olhavam com estranheza o seu primoroso revólver. Aquela coronha... esteve tentado a desfazer-se da arma. No entanto, ainda que fosse estúpido, devia confessar que lhe ganhara estima.
Nunca encontrara um instrumento para matar com um acabamento tão perfeito. Agora o «Colt» fazia parte de si próprio. Perdê-lo seria como se lhe arrancassem um dedo, uma orelha, o nariz...
De Doole seguiu para Millersview. Ali o perigo era muito maior. Viu cartazes com a sua descrição pregados em algumas paredes!
Os avisos da Lei cavariam a sua desgraça ao menor descuido. Voltava a sentir-se mal, extremamente fraco. Mas empreendeu o caminho para a distante Paint Rock. Só nessa cidade poderia considerar-se completamente a salvo.
Durante a cavalgada desmaiou duas vezes. Dois avisos certos sobre a gravidade do seu estado. Não lhes deu atenção. O primeiro foi breve. O segundo demasiado prolongado para pressagiar senão funestas consequências.
No entanto, não havia remédio. Tarde demais para assustar-se e pensar em retroceder. O deserto estendia-se, dominador, pelos quatro pontos cardiais.
Ardiam-lhe os castigados olhos. Sabia que tinha febre. Os lábios gretados, a pele a escaldar, o olhar lânguido, sem luz, davam-lhe ao rosto uma expressão de completo abatimento.
Ainda que nunca chegasse a inteirar-se disso, Link Grinter perdeu a partida por obstinar-se em prosseguir na fuga. Em Millersview — não obstante o risco de ser detido — desprezara a salvação. Necessitava de cuidados médicos; nada de bruxarias bestiais de carroceiro. Continuando a viagem, lavrou a sua desgraça e assinou a inexorável sentença de morte. Se pudesse contemplar-se a um espelho, não daria pela sua pele nem cinco cêntimos falsos.
Além disso, sem reparar, desviou-se da rota. Deixou a direção noroeste. Por aquele caminho nunca alcançaria Paint Rock. Nunca.
O terceiro desmaio, o verdadeiramente perigoso, atacou-o a um anoitecer. As estrelas, lutando contra o pôr do sol, esforçavam-se por brilhar sobre a abóboda impressionante do firmamento. Uma dor forte, lancinante, perfurou-lhe a cabeça. Uma dor interna, recôndita, mil vezes pior que a física. Não pôde manter o equilíbrio... e resvalou da sela.
A cem metros de distância, talvez por um desses prodígios da natureza que mais parecem milagres, corria um regato de pequeno caudal. Os sinais da humidade entraram pelos dilatados olhos do alazão que iniciou um trote rápido, acicatado pela promessa líquida que atuava como um íman sobre o seu sedento ser.
Link, caído no chão, ouviu o retumbar do galope e gritou roucamente. O saco do dinheiro estava nos alforges. Fugia com o animal. Fugia.
Não conseguiu mover-se de onde estava. Nem sequer sacar o revólver. Caiu a noite. No escuro as suas dores recrudesceram. Teve medo. Um pânico irracional e louco. As trevas horrorizavam-no. O cavalo não voltou para o seu lado. Uma vez acalmada a sede, livre do cavaleiro, pôs-se a correr para onde o levava a vontade, mordiscou uns rebentos raquíticos que cresciam junto às margens do arroio... e perdeu-se no deserto.
Quando nasceu o sol, Link Grinter desistiu dos seus inúteis esforços para mover-se. Tudo lhe era indiferente! Entre névoas, baçamente, verificava que não continuava a cavalo. Que o animal tinha fugido... levando os maços de notas!
Mal respirava. O calor que tombava do céu e o daquele chão de forno consumiam-no. Dinheiro? Bah!... Para que queria o dinheiro no deserto? Só Paz. Uma morte tranquila e sem dor.
As costas eram uma autêntica brasa. Uma chaga candente e insuportável. Anoiteceu outra vez antes de que no seu dorido cérebro entrasse a evidência. O vagabundo admitiu então, dominado por brumas mentais, que se acabara o seu errar por sendas ignotas. Que chegara ao final da viagem. O sol calcinaria os seus ossos e os corvos debicariam o seu cadáver. A ideia já não o aterrorizou. Morrer era uma libertação, entre tantas torturas.
///
O homenzinho miúdo, de cara de rato e fato miserável, cavalgava em pelo uma égua velha, esquálida, com o desenho das costelas marcando-lhe o esqueleto em pronunciado relevo. Peter Brown estranhou ver o alvoroçado bando de corvos. Ato contínuo meteu calcanhares à égua.
O trote cansado do animal afugentou as aves de rapina e revelou aos olhos do cavaleiro o vulto que alterava a lisura do deserto. Desmontou e aproximou-se do cadáver. Sem escrúpulos, colou-lhe o ouvido ao peito. Sorriu, mostrando os dentes amarelos e desiguais.
Link ainda vivia. Talvez guardasse no coração urna reserva inesgotável de energias. Peter Brown viu-lhe as costas de pele esticada pela carne esponjosa. Viu as bicadas dos corvos. A inflamação purulenta. E a gangrena.
Apesar disso, não consentiu em deixar morrer o desconhecido.
Carregou-o na égua e levou-o até ao regato. Humedeceu-lhe a testa, fê-lo beber água e esperou em vão que ressuscitasse do letargo.
O ferido queimava como o rescaldo de uma fogueira. Era, na verdade, um rescaldo do fogo vivo e crepitante de antanho. Resolvido a salvá-lo ou pelo menos a tentá-lo, voltou a atravessá-lo na égua que tomou o caminho do seu rancho.
Maria e os sete pequenos — mais esfarrapados do que o pai — fizeram-lhe uma receção de boas-vindas, cheia de gritos e risos. Era sempre assim no seu regresso.
Pouco a pouco, assim que foram atentando, na figura oscilante que pendia da sela, a euforia decresceu. Maria, consciente do seu duplo dever de esposa e mãe, ordenou aos pequenos que se retirassem. Quando Peter parou a égua em frente do casebre de adobe que constituía o seu humilde rancho, estavam sós, frente a frente, com um moribundo entre eles.
— Encontrei-o a duas milhas daqui — explicou o marido.
— Morto?
— Pouco lhe falta.
— Faremos por ele o que for necessário — resolveu a mulher. — É o que tu queres, Peter. Tens alma de samaritano. Conhece-lo?
— Não. Deve ter vindo de longe. Mas não encontrei o cavalo. Sem dúvida, trotou ao longo do ribeiro e extraviou-se.
— Que tem?
— Dois tiros nas costas — disse Peter, indicando com um gesto que o ajudasse a descê-lo do cavalo. — É o primeiro que recolhemos nestas condições. O sol, a sede e o pó fizeram o resto. A ferida cicatrizou. Creio que deve ter utilizado o fogo para cicatrizá-la... Contudo, continua infetada por dentro.
— Gangrena?
Brown fez que sim. Não voltaram a falar até o colocarem na velha cama de coinfecção caseira.
Os rapazitos, que revoluteavam em torno num borboletear de curiosidade, foram afugentados por Maria. Ela, eficiente e pressurosa — porque uma mãe carregada de filhos nunca perde a serenidade e se curtiu em tarefas que abarcam todo o caseiro caleidoscópio de prementes necessidades —, acendeu o lume, pôs a ferver um grande caldeiro com água e dispôs tiras de pano branquíssimo que ia rasgando de um lençol. Água esterilizada e ligaduras. Constituíam cinquenta por cento da primária assepsia operatória. Os outros cinquenta — na opinião de Maria — conseguiram-se acendendo uma velinha ao pé de uma imagem da Virgem, talhada em vermelha madeira de cedro.
Peter, fumando um cigarro, contemplava a próxima perspetiva do deserto, árido, enorme, devorador como umas fauces malignas.
Eles, na sua pobreza, tinham ajudado mais de um viajante perdido na imensidão estéril. Link Grinter não fora o único a receber cuidados das mãos ásperas mas carinhosas de Maria, a mestiça.
Sim. A esposa de Peter era mestiça. Por isso viviam ali. Longe das povoações e afastados da sociedade. Extraindo à terra dura parcas colheitas de milho e centeio. Tal como renegados.
Os seus filhos ainda não conheciam Eden, a aldeia mais próxima, distante umas quinze milhas — porque quando tinham que efetuar compras de sementes ou vendas de frutos, o próprio Peter se ocupava disso.
— A água está pronta, Peter — anunciou Maria. —Começamos?
Chamava-lhe, indistintamente, Peter ou Pedro. Maria jamais poderia esquecer a sua ascendência hispânica. Tinha imensas saudades do México natal. Mas compreendia que a sua obrigação era estar junto do marido, onde quer que fosse.
— Sim. Traz as facas para abrir. E a garrafa de aguardente. Cuidado, Pedro. As lâminas estão ao rubro.
— Diz aos pequenos que não venham para aqui. Não é espetáculo para eles.
— Já pus o Tomás em chefe do bando. Dando poderes a um, deixam-nos logo em paz.
— Não sei o que faria sem ti neste mundo complicado.
Ela agradeceu a lisonja com um leve franzir de lábios. Como pessoa prática no ofício, Maria despiu a camisa a Link. As cicatrizes, completamente ulceradas, infundiam pânico. O pulso batia muito debilmente, apagando-se. Ardia em febre.
As condições físicas não aconselhavam a intervenção e o casal, de um modo tão rudimentar como intuitivo, presumia que as chagas absorveriam qualquer tipo de germes patogénicos. No entanto, como Peter observou com acerto, não existia outra opção.
— Não vai durar muito, Maria — disse. — Estes chumbos estão a matá-lo a toda a velocidade. Extraí-los é o único remédio. Se suportar a operação, talvez se salve.
— Confiemos em Deus. Confiemos n'Ele. Vamos.
A afiada faca praticou uma punção, por onde brotou um jorro de líquido amarelo-esverdeado. A aguardente atuou como desinfetante, e as ligaduras de Maria — pobres compressas daquela não menos pobre sala de operações — estancaram o sangue.
Peter Brown sondou, remexeu, e usou os dedos como pinças. As duas balas, depois de impaciente manobrar, foram extraídas do seu alojamento orgânico. Os lábios Link não deixaram escapar nem um gemido. O seu esta de completa inconsciência constituía a melhor das anestesias.
Naquela noite, Maria velou-o sem lamentações. Os pequenos dormiam. Aquela mulher possuía o dom maravilhoso de se multiplicar à vontade sem descurar nenhum detalhe. Peter, inquieto, fumava, deitado ao fresco do deserto, no alpendre da casita, sobre a manta multicor, de tecido índio. As horas pareciam ter-se detido. A espera acabou por abater-lhes o ânimo.
Quando amanheceu, Grinter continuava pálido, sem sentidos, e consumido por uma febre elevada.
— Morre — repetiu ela com o fatalismo esmagador dos convencidos.
Puseram-lhe panos molhados na testa. Fizeram-lhe uma sangria. Inútil. A febre não desceu. Link, cadavérico continuava com as pálpebras cerradas e o coração batendo com força. Consumia-se em crispações silenciosas, como o toco final de uma vela de sebo.
Dois dias e duas noites durou a agonia. A família Brown, do primeiro ao último dos seus membros, viveu pendente do desconhecido. Jamais souberam o seu nome. Por fim, sempre em silêncio, começou a adquirir rigidez e o seu corpo perdeu calor, esfriando, até ficar gelado de todo.
O vagabundo Grinter morreu tão ignorado como vivera.
Na sepultura aberta perto do casebre só houve uma cruz tosca, confecionada por Maria com dois paus torcidos. Não inscreveram nenhum nome. O coldre com o revólver de coronha cor-de-rosa foi tudo quanto restou do forasteiro.
E como os Brown eram uma família pobre, necessitada e esfomeada, Peter compreendeu que nada ganharia se guardasse essas duas coisas como recordação.
Na semana seguinte, na sua viagem a Eden para vender os sacos de centeio no armazém geral «Strafford», iria visitar «mister» Wooden, o prestamista e trataria de conseguir alguns dólares. Os pequenos gastavam mais do que Peter conseguia tirar das suas mirradas colheitas.
O revólver de Lee Dunham trazia a desgraça aos seus possuidores. Mas modificar-se-ia alguma vez aquela má estrela para conceder, ao menos, uma pálida centelha de felicidade? Talvez.
Em Eden, dias mais tarde, um homem bom iria precisar daquele revólver para vender caro a vida.
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