Acabava de beber o segundo copo de «whisky». Bebeu-o quase sem saborear, de um trago.
Então, rodeado pelo intenso silêncio repentinamente formado à sua volta, estendeu a mão calosa, de palmas endurecidas pelo roçar das coronhas, e pegou na garrafa.
Encheu o terceiro copo. O gorgolejar da bebida ocupou todo o âmbito do «saloon». Os olhos dos presentes, revelando uma mescla de curiosidade e horror, seguiam os movimentos da mão, da garrafa e do licor opalino que enchia o recipiente de grosso vidro.
— Eles pararam, Lee — avisou alguém. — Não tardarão a entrar. •
Lee Dunham olhou o que acabava de falar por cima do ombro, friamente, e não replicou.
Os seus dedos não tremiam. Pareciam de aço. Levou o copo aos lábios e saboreou um sorvo. Continuava de costas para a porta, com todos os músculos tensos e a mão direita, aberta, colada ao coldre de coiro.
A coronha do revólver sobressaía bastante do coldre que estava preso à coxa por uma correia, e muito baixo. Tinha revestimentos de nácar cor-de-rosa. Uma novidade. Um capricho exótico, como diziam alguns.
Isso — a coronha — era tudo o que se podia ver da arma de seis tiros. Do famoso revólver de um homem «duro» não menos famoso. /
— Estão a aproximar-se — comentou outro. — Cautelosamente... oiço o ranger das tábuas do passeio. Eles matam-te, Dunham!
Sim. Queriam matá-lo.
Sabia que tinham duas poderosas razões par isso. Primeira: fazer justiça; segunda: obter os três mil dólares de recompensa. Duas boas e eloquentes razões. Mas — o pensamento fê-lo sorrir. Lee Dunham ainda podia dar-lhes muito trabalho antes de concretizarem o seu desejo.
E dar-lhes-ia.
Talvez não fosse o momento para se entregar a reflexões. A atenção, os cinco sentidos, deviam continuar pendentes dos que estavam lá fora e dos que o rodeavam. Todos, qualquer deles, podia sentir a tentação. Uma bala pelas costas bastaria para derrubá-lo.
Bebeu outro sorvo e sorriu de novo. Mentalmente formulou uma pergunta: quem seria o valente que sacaria o revólver para medi-lo com o de Lee Dunham?
O revólver... limpo, lubrificado, reluzente. Uma arma de antologia e que, sem dúvida, passaria à história. Como outras. Como a coleção de Billy the Kid ou os maravilhosos «ação simples» de Wild Bill Hickock.
No West Texas -- como diziam os de origem saxónica —, ou seja, o Oeste do Texas --- como pronunciavam os de sangue hispânico —, falar-se-ia muito e durante muitos anos, de Lee Dunham e do seu fiel companheiro de cilindro fixo, cano basculante e extrator de estrela. Uma espécie de glória negra da região. Um sopro de folclore vivo. Mas afadigavam-se para matá-lo. Coisas da vida! Ironias!
— Chegaram ao alpendre... Ao alpendre, — alvoroçou-se um rapazola imberbe: — Vão entrar de um momento para o outro!
— Isso não o inquieta, Bundy — pigarreou um velhote. — Lee Dunham não tem nervos!
Comentários. Advertências. Respirações opressas. Tensão.
Suor em algumas frontes. Zumbidos de moscas. Calor sufocante. O bafo das bebidas. Espectadores congregados, petrificados de ansiedade, esperando o prazer mórbido de vê-lo cair.
Eis tudo o que encerrava o «saloon» de Washington Moore.
Engoliu o «whisky», colocou o copo com ruído sobre o balcão, voltou-se lento, lentíssimo, pondo-se de frente para as meias portas de mola; depois, com voz rouca, ordenou:
— Deixem-me só. O que aí vem... é negócio meu. Rua toda a gente!
A glória negra da região acabava de falar. Cortante, seco e cru. No momento, ninguém obedeceu à ordem. Depois, decorridos uns segundos carregados de ansiedade, um dos clientes atirou meio dólar para cima do balcão para pagar a despesa, e saiu do estabelecimento.
O seu ato marcou a pauta e foi como sinal convencionado de antemão para que os outros imitassem o seu exemplo.
O velhote, resmungando, também empurrou os batentes e saiu para o exterior. Um par de bebedores, despejou os seus copos com pesados movimentos de cabeça. Rangeram as tábuas do alpendre. Outro indivíduo instalado no extremo oposto do balcão tomou o caminho da rua.
Bundy, o rapazola imberbe, permanecia quieto, observando o foragido com olhos fascinadores. Naquele olhar vibrava o respeito e a admiração.
— Vai-te embora, pequeno — disse Lee. — Não tarda que assobiem as balas.
— Vão... vão matá-lo, senhor?
— É o que eles querem.
— E o senhor?
Dunham sorriu sem emoção. A mão direita caída junto da coronha, parecia urna peça soldada ao coldre. Os dedos morenos possuíam algo de sinistro. Apesar de não ter movido nem um só, parecia que bastava um desejo para empunhar o «Colt», armá-lo e cuspir chumbo mortal.
— Tentarei impedi-lo — respondeu por fim. — Por isso convém que te afastes. Adeus.
— Adeus, «mister» Dunham. Se lhe serve para alguma coisa..., saiba que lhe desejo sorte.
— Obrigado, pequeno. Mas é melhor que te esqueças de mim. Como ídolo... sou uma desgraça.
Não. Bundy não acreditava em tal. Pelo contrário.
Venerava Lee Dunham, como todos os adolescentes da sua idade desde o Rio Concho às planícies de Gatesville. Era o homem do momento. O pistoleiro de mais fama. O «gun-man» rápido, a quem ninguém ganhava vantagem quando a mão, nervosa, voava para a coronha de folhas nacaradas. Um a um, jamais o faziam parar! Mas, pelo que ouvira, eram vários os adversários.
Saiu do sombrio «saloon» arrastando os pés, entristecido pela perspetiva de algo irreparável suceder ao seu favorito; com o desânimo a pesar-lhe sobre o corpo como uma lousa.
Dunham, virando-se um pouco para o taberneiro que permanecia imóvel no extremo final do balcão, deixou escapar pelo canto da boca:
— Você também, Wash. Afaste-se.
— Pensava fazê-lo — resmungou o obeso Washington Moore.
— Pois não pense mais. Quero morrer só. Sem testemunhas que não sejam os meus matadores.
— Bem, Lee. Posso ser-lhe útil em alguma coisa?
— Em nada... espere — acrescentou. — Quanto lhe devo pelo «whisky»?
— Não tem importância! desdenhou o taberneiro antes de se refugiar no interior da loja. — É por conta da casa. Se salvar a pele..., então lhe apresentarei a fatura.
— Creio que nunca o fará. Anote no livro de perdas.
— Anotado.
Moore desapareceu no interior. Andou até ao fundo, acomodou-se ao lado dos grossos barris de roble onde armazenava o licor adulterado que destilava grosseiramente e dispôs-se a enrolar, com calma, um cigarro.
Era mais que certo que matavam Dunham. Conhecia os homens do xerife Costell. Gente rápida e valente. Suspirou.
— Um punhado de serradura apagará as marcas do seu sangue murmurou com trágico cómica resignação.
Dunham, por seu lado, ao ficar só, eliminou dos lábios o sorriso trocista. Chegara o momento. Ninguém como ele para compreendê-lo. Pressentia-o. Acabara-se a vida aventurosa e dura. Em breve sentiria pela última vez o cheiro acre da pólvora.
Veio-lhe uma intensa tentação de beber. Mais um trago. Outro copo de «whisky» para humedecer a boca ressequida e empurrar para o fundo do estômago os restos de pó engolido durante a prolongada fuga.
Mas não. Renunciou a beber. Urna estúpida distração seria suficiente para privá-lo do derradeiro prazer que ainda lhe restava. Ao menos, era um consolo saber que não iria sozinho para o outro inundo.
Lá fora, na rua, congregava-se gente. Homens, mulheres, até crianças tinham acorrido ao espetáculo. Não queriam perder, mesmo de longe, o aparatoso final da morte de Dunham. Todos sabiam o que ocorrera.
O cavalo de Lee partira uma pata ao vadear o arroio do Osso Esburgado. Sem montada, um homem estava perdido naquelas terras. Agora toda a população desocupada de Winchell estava reunida ali, em frente do «Moore Saloon». Até urna boa parte dos habitantes ocupados abandonara as suas tarefas. Em cinquenta anos não voltaria a repetir-se uma representação gratuita corno aquela.
Bundy pestanejou ao receber a forte reverberação solar em pleno rosto. Viu uma massa silenciosa, expectante, congregada ali, como o barro sujo dos rios quando aperta a estiagem.
A mão de alguém' agarrou-o pelo cotovelo. Na camisa do homem cintilava uma placa de comissário. Outras quatro placas esperavam instruções. Cinco tipos armados até aos dentes para caçar Lee Dunham!
— Há mais alguém lá dentro? — perguntou o comissário Speed.
— Não — respondeu Bundy suavemente. — Está só. Entrem quando quiserem..., se se atrevem. Mas aviso-os de uma coisa...
— Bem, rapaz. Não me interessam as tuas advertências. Vai esconder-te em qualquer lado.
— Ainda não o apanharam! — avisou Bundy.
— Quase já está na rede. Aposta o que quiseres.
Speed, franzido as sobrancelhas, voltou-se para os seus quatro ajudantes, deitando-lhes um olhar de avaliação.
Os delegados esperavam que ele falasse. De certo modo, divertia-os saberem-se alvo de todos os olhares. Pela primeira vez sentiam-se importantes na sua mediocridade. Temiam Dunham. Apesar disso, fazendo das tripas coração e repetindo que o número anula quase sempre a qualidade, sentiam-se dispostos a cometer a heroicidade.
— É nosso — asseverou Speed, sacando os revólveres. — Cairá ao primeiro tiro. Washington Moore já deve ter corrido a meter-se em algum buraco. É pena que a taberna não tenha uma entrada nas traseiras. Temos de atacar de frente. Por isso, recomendo uma coisa: rapidez!
— Sim, Speed — afirmou um, que embalava maternalmente nos braços uma carabina «Express 44». — Todos à uma!
— Isso mesmo — confirmou Speed. — Tu, Garroway, entrarás comigo. Pela porta. Entraremos de roldão. De acordo?
— De acordo.
— Raymond e Miller saltarão pelas janelas. Escolham a que lhes agradar.
— Bem — aprovou o ossudo Raymond.
— Dodge esperará na rua. Quando ouvir os tiros, entrará. Entendido?
Dodge corou. Era um cobarde, mas julgou-se na obrigação de mostrar o contrário... com palavras.
— Por que é que hei-de esperar? Gostava de tomar parte ativa no ataque.
— Depois — manteve Speed. — Ultimamente... treme-te muito o dedo. Com tipos como Dunham não se pode ter tremuras.
Dodge protestou:
— Mas...
— Assunto arrumado. Vamos! Cada um para o seu posto. Eu darei o sinal com a mão.
Lee Dunham humedecia os lábios com a ponta da língua. O calor era sufocante. Asfixiava-o. A taberna de Moore, caldeada pelo forte sol texano, parecia uma panela gigantesca onde estivesse a cozer o condenado. Beber! Corno sentia desejos de um gole de «whisky»!
Conteve-se. Reprimiu a ânsia de agarrar a garrafa e deleitar-se com um pródigo sorvo. A mão tinha o seu lugar reservado e não devia afastar-se, por nada do mundo, da famosa coronha. Mantinha os olhos fixos, cravados nos batentes da porta.
Já tinham deixado de oscilar por causa da saída de Bundy. Sacaria quando eles entrassem, nunca antes. A mão, ao contacto com a coronha, começa a suar, e o revólver deve empunhar-se com firmeza, sem que resvale.
Os olhos, de súbito, desviaram-se da porta. Havia duas janelas no «saloon». O assalto seria à carga. A partir de então, olhou inquietamente, vigiando sem cessar as janelas e a entrada.
A espera tornava-se esgotante, exaustiva. E que silêncio tão imenso! Teriam morrido todos os habitantes de Winchell? Talvez.
Dir-se-ia que nada respirava. Nem restavam suspiros de vento. Nem estalidos nas tábuas do alpendre. Mas Speed e os seus continuavam por mais tempo a tortura de esperar!
Lee não sabia que então — naquele instante — o comissário Speed agitara a mão e distendera os músculos das pernas. Quatro homens vertiginosos moveram-se em uníssono. Dodge, sentindo-se ridículo, mordeu os lábios trémulos. Em todos os peitos, palpitando com força de furacão, vibrou uma terrível palavra.
— Agora!
Lee, sem se afastar do balcão para apresentar pela centésima vez a prova impoluta da sua coragem suicida, lançou a mão direita para baixo ligeira como um esvoaçar de pomba. O revólver de cano brunido relampagueou entre os dedos e apontou — que exibição incrível — para todos os lados por igual. Uma extração inverosímil! Um «saque» típico e exclusivo de Lee Dunham. Inigualável!
Os batentes abriram-se violentissimamente e chocaram com a parede, enquanto Speed e Garroway irrompiam na taberna como bólides humanos. A diferença de luz reinante no local cegou-os momentaneamente. Foi essa a única vantagem de Lee!
Confundindo-se com o estrépito do furioso assalto, os vidros das janelas saltaram feitos em estilhas. Raymond caiu de pé e cambaleou. Miller teve menos sorte, porque embateu com uma das mesas e tombou de bruços no chão.
Lá fora, excitadíssima, uma gritaria clamorosa atroou Winchell até aos alicerces.
Speed foi o primeiro a disparar. Fê-lo atabalhoadamente, sem gozar de uma visão clara do seu adversário. Os dois revólveres chamejaram-lhe nas mãos e causaram estragos bestiais nas prateleiras de Wash Moore, onde uma dúzia de garrafas rebentou, espargindo jorros de licor que se precipitaram em cascata atrás do balcão.
Dunham, frio como uma pedra de gelo, fez fogo de altura do quadril. Garroway abraçou-se a si mesmo, soltou um grito atroz e retrocedeu, com a morte pintada no semblante, até ao alpendre. A gritaria exterior aumentou ao verem-no cambalear, dar uma meia volta estúpida e cair na poeira da rua. Para ninguém constituiu segredo a sua morte fulminante.
Raymond apontou ao foragido a sua carabina «Express 44» e começou a premir o gatilho e a acionar a alavanca, criando um fogo de repetição ensurdecedor. As balas, grunhindo como seres vivos, cruzaram o «saloon» em todas as direções e libertaram densas nuvens de pólvora que invadiram o recinto.
Nessa altura, Lee Dunham tinha já disparado a sua segunda e última bala.
Recebeu-a Miller em plena testa, porque o comissário Speed teve especial cuidado em abrigar-se debaixo das mesas, ao ver que Garroway era recambiado para a rua. Miller, naturalmente, nem teve tempo para exalar um queixume. O projétil saiu-lhe pela nuca, com força suficiente para ir cravar-se ia parede.
Aos selvagens tiros da carabina uniram-se os disparos que Speed agora começara a fazer. Um novelo encolhido, suspirante, suportava imperterritamente a chuva de chumbo que o perfurava sem piedade. Esse novelo era Lee Dunham, o homem mau e rápido do Texas.
Tinha seis balas alojadas no peito... mas o seu coração obstinava-se em não deixar de bater.
Subitamente, quebrando-se toda a resistência, a mão que segurava o «Colt» afrouxou a pressão dos dedos. O luxuoso revólver tombou no chão, rebolando. Estava tão cuidado, tão limpo, que refulgia como uma jóia. Os braços de Lee, pendentes junto do corpo, bailavam sob os beijos do chumbo.
— Basta! — gritou Speed. — Já tem a sua conta.
Depois de uns segundos de estranho silêncio, um choque surdo e pesado assinalou o final da luta. Lee Du-nham, caído como um fardo, de cara contra o chão, tinha expirado. Desde então, podia ser considerado como uma personagem lendária. Nada mais. Os seus restos em breve apodreceriam numa vala comum.
O comissário, limpando com a manga da camisa o suor que lhe perlava a fronte, voltou-o de rosto para cima. Estava morto. Definitivamente um cadáver. Mas mesmo em tão macabras circunstâncias, Dunham conservava o privilégio de impor respeito. Talvez isso se devesse ao sorriso crispado e trocista que imprimia um ricto peculiar aos seus lábios.
— Garroway e Miller — murmurou Raymond, recarregando distraidamente o depósito da sua «Express».
— Lamento-o. Era um preço necessário, Ray. Sabia-o. Podíamos ter sido tu ou eu; mas desta vez tivemos sorte.
Uns passos precipitados soaram atrás deles. Speed não se voltou, porque adivinhavam de quem se tratava sem lugar a dúvidas. Desdenhosamente, com asco e ressentimento, disse à guisa de saudação:
— Entra Dodge. A fera já não pode morder.
E depois, sempre ignorando deliberadamente o recém--chegado, apanhou o revólver de Dunham e meteu-o, pelo cano, no cinturão. Bem podia tê-lo deixado onde estava em vez de conservá-lo como recordação.
O destino tinha reservado muitas coisas para o revólver de coronha de nácar cor-de-rosa.
Então, rodeado pelo intenso silêncio repentinamente formado à sua volta, estendeu a mão calosa, de palmas endurecidas pelo roçar das coronhas, e pegou na garrafa.
Encheu o terceiro copo. O gorgolejar da bebida ocupou todo o âmbito do «saloon». Os olhos dos presentes, revelando uma mescla de curiosidade e horror, seguiam os movimentos da mão, da garrafa e do licor opalino que enchia o recipiente de grosso vidro.
— Eles pararam, Lee — avisou alguém. — Não tardarão a entrar. •
Lee Dunham olhou o que acabava de falar por cima do ombro, friamente, e não replicou.
Os seus dedos não tremiam. Pareciam de aço. Levou o copo aos lábios e saboreou um sorvo. Continuava de costas para a porta, com todos os músculos tensos e a mão direita, aberta, colada ao coldre de coiro.
A coronha do revólver sobressaía bastante do coldre que estava preso à coxa por uma correia, e muito baixo. Tinha revestimentos de nácar cor-de-rosa. Uma novidade. Um capricho exótico, como diziam alguns.
Isso — a coronha — era tudo o que se podia ver da arma de seis tiros. Do famoso revólver de um homem «duro» não menos famoso. /
— Estão a aproximar-se — comentou outro. — Cautelosamente... oiço o ranger das tábuas do passeio. Eles matam-te, Dunham!
Sim. Queriam matá-lo.
Sabia que tinham duas poderosas razões par isso. Primeira: fazer justiça; segunda: obter os três mil dólares de recompensa. Duas boas e eloquentes razões. Mas — o pensamento fê-lo sorrir. Lee Dunham ainda podia dar-lhes muito trabalho antes de concretizarem o seu desejo.
E dar-lhes-ia.
Talvez não fosse o momento para se entregar a reflexões. A atenção, os cinco sentidos, deviam continuar pendentes dos que estavam lá fora e dos que o rodeavam. Todos, qualquer deles, podia sentir a tentação. Uma bala pelas costas bastaria para derrubá-lo.
Bebeu outro sorvo e sorriu de novo. Mentalmente formulou uma pergunta: quem seria o valente que sacaria o revólver para medi-lo com o de Lee Dunham?
O revólver... limpo, lubrificado, reluzente. Uma arma de antologia e que, sem dúvida, passaria à história. Como outras. Como a coleção de Billy the Kid ou os maravilhosos «ação simples» de Wild Bill Hickock.
No West Texas -- como diziam os de origem saxónica —, ou seja, o Oeste do Texas --- como pronunciavam os de sangue hispânico —, falar-se-ia muito e durante muitos anos, de Lee Dunham e do seu fiel companheiro de cilindro fixo, cano basculante e extrator de estrela. Uma espécie de glória negra da região. Um sopro de folclore vivo. Mas afadigavam-se para matá-lo. Coisas da vida! Ironias!
— Chegaram ao alpendre... Ao alpendre, — alvoroçou-se um rapazola imberbe: — Vão entrar de um momento para o outro!
— Isso não o inquieta, Bundy — pigarreou um velhote. — Lee Dunham não tem nervos!
Comentários. Advertências. Respirações opressas. Tensão.
Suor em algumas frontes. Zumbidos de moscas. Calor sufocante. O bafo das bebidas. Espectadores congregados, petrificados de ansiedade, esperando o prazer mórbido de vê-lo cair.
Eis tudo o que encerrava o «saloon» de Washington Moore.
Engoliu o «whisky», colocou o copo com ruído sobre o balcão, voltou-se lento, lentíssimo, pondo-se de frente para as meias portas de mola; depois, com voz rouca, ordenou:
— Deixem-me só. O que aí vem... é negócio meu. Rua toda a gente!
A glória negra da região acabava de falar. Cortante, seco e cru. No momento, ninguém obedeceu à ordem. Depois, decorridos uns segundos carregados de ansiedade, um dos clientes atirou meio dólar para cima do balcão para pagar a despesa, e saiu do estabelecimento.
O seu ato marcou a pauta e foi como sinal convencionado de antemão para que os outros imitassem o seu exemplo.
O velhote, resmungando, também empurrou os batentes e saiu para o exterior. Um par de bebedores, despejou os seus copos com pesados movimentos de cabeça. Rangeram as tábuas do alpendre. Outro indivíduo instalado no extremo oposto do balcão tomou o caminho da rua.
Bundy, o rapazola imberbe, permanecia quieto, observando o foragido com olhos fascinadores. Naquele olhar vibrava o respeito e a admiração.
— Vai-te embora, pequeno — disse Lee. — Não tarda que assobiem as balas.
— Vão... vão matá-lo, senhor?
— É o que eles querem.
— E o senhor?
Dunham sorriu sem emoção. A mão direita caída junto da coronha, parecia urna peça soldada ao coldre. Os dedos morenos possuíam algo de sinistro. Apesar de não ter movido nem um só, parecia que bastava um desejo para empunhar o «Colt», armá-lo e cuspir chumbo mortal.
— Tentarei impedi-lo — respondeu por fim. — Por isso convém que te afastes. Adeus.
— Adeus, «mister» Dunham. Se lhe serve para alguma coisa..., saiba que lhe desejo sorte.
— Obrigado, pequeno. Mas é melhor que te esqueças de mim. Como ídolo... sou uma desgraça.
Não. Bundy não acreditava em tal. Pelo contrário.
Venerava Lee Dunham, como todos os adolescentes da sua idade desde o Rio Concho às planícies de Gatesville. Era o homem do momento. O pistoleiro de mais fama. O «gun-man» rápido, a quem ninguém ganhava vantagem quando a mão, nervosa, voava para a coronha de folhas nacaradas. Um a um, jamais o faziam parar! Mas, pelo que ouvira, eram vários os adversários.
Saiu do sombrio «saloon» arrastando os pés, entristecido pela perspetiva de algo irreparável suceder ao seu favorito; com o desânimo a pesar-lhe sobre o corpo como uma lousa.
Dunham, virando-se um pouco para o taberneiro que permanecia imóvel no extremo final do balcão, deixou escapar pelo canto da boca:
— Você também, Wash. Afaste-se.
— Pensava fazê-lo — resmungou o obeso Washington Moore.
— Pois não pense mais. Quero morrer só. Sem testemunhas que não sejam os meus matadores.
— Bem, Lee. Posso ser-lhe útil em alguma coisa?
— Em nada... espere — acrescentou. — Quanto lhe devo pelo «whisky»?
— Não tem importância! desdenhou o taberneiro antes de se refugiar no interior da loja. — É por conta da casa. Se salvar a pele..., então lhe apresentarei a fatura.
— Creio que nunca o fará. Anote no livro de perdas.
— Anotado.
Moore desapareceu no interior. Andou até ao fundo, acomodou-se ao lado dos grossos barris de roble onde armazenava o licor adulterado que destilava grosseiramente e dispôs-se a enrolar, com calma, um cigarro.
Era mais que certo que matavam Dunham. Conhecia os homens do xerife Costell. Gente rápida e valente. Suspirou.
— Um punhado de serradura apagará as marcas do seu sangue murmurou com trágico cómica resignação.
Dunham, por seu lado, ao ficar só, eliminou dos lábios o sorriso trocista. Chegara o momento. Ninguém como ele para compreendê-lo. Pressentia-o. Acabara-se a vida aventurosa e dura. Em breve sentiria pela última vez o cheiro acre da pólvora.
Veio-lhe uma intensa tentação de beber. Mais um trago. Outro copo de «whisky» para humedecer a boca ressequida e empurrar para o fundo do estômago os restos de pó engolido durante a prolongada fuga.
Mas não. Renunciou a beber. Urna estúpida distração seria suficiente para privá-lo do derradeiro prazer que ainda lhe restava. Ao menos, era um consolo saber que não iria sozinho para o outro inundo.
Lá fora, na rua, congregava-se gente. Homens, mulheres, até crianças tinham acorrido ao espetáculo. Não queriam perder, mesmo de longe, o aparatoso final da morte de Dunham. Todos sabiam o que ocorrera.
O cavalo de Lee partira uma pata ao vadear o arroio do Osso Esburgado. Sem montada, um homem estava perdido naquelas terras. Agora toda a população desocupada de Winchell estava reunida ali, em frente do «Moore Saloon». Até urna boa parte dos habitantes ocupados abandonara as suas tarefas. Em cinquenta anos não voltaria a repetir-se uma representação gratuita corno aquela.
Bundy pestanejou ao receber a forte reverberação solar em pleno rosto. Viu uma massa silenciosa, expectante, congregada ali, como o barro sujo dos rios quando aperta a estiagem.
A mão de alguém' agarrou-o pelo cotovelo. Na camisa do homem cintilava uma placa de comissário. Outras quatro placas esperavam instruções. Cinco tipos armados até aos dentes para caçar Lee Dunham!
— Há mais alguém lá dentro? — perguntou o comissário Speed.
— Não — respondeu Bundy suavemente. — Está só. Entrem quando quiserem..., se se atrevem. Mas aviso-os de uma coisa...
— Bem, rapaz. Não me interessam as tuas advertências. Vai esconder-te em qualquer lado.
— Ainda não o apanharam! — avisou Bundy.
— Quase já está na rede. Aposta o que quiseres.
Speed, franzido as sobrancelhas, voltou-se para os seus quatro ajudantes, deitando-lhes um olhar de avaliação.
Os delegados esperavam que ele falasse. De certo modo, divertia-os saberem-se alvo de todos os olhares. Pela primeira vez sentiam-se importantes na sua mediocridade. Temiam Dunham. Apesar disso, fazendo das tripas coração e repetindo que o número anula quase sempre a qualidade, sentiam-se dispostos a cometer a heroicidade.
— É nosso — asseverou Speed, sacando os revólveres. — Cairá ao primeiro tiro. Washington Moore já deve ter corrido a meter-se em algum buraco. É pena que a taberna não tenha uma entrada nas traseiras. Temos de atacar de frente. Por isso, recomendo uma coisa: rapidez!
— Sim, Speed — afirmou um, que embalava maternalmente nos braços uma carabina «Express 44». — Todos à uma!
— Isso mesmo — confirmou Speed. — Tu, Garroway, entrarás comigo. Pela porta. Entraremos de roldão. De acordo?
— De acordo.
— Raymond e Miller saltarão pelas janelas. Escolham a que lhes agradar.
— Bem — aprovou o ossudo Raymond.
— Dodge esperará na rua. Quando ouvir os tiros, entrará. Entendido?
Dodge corou. Era um cobarde, mas julgou-se na obrigação de mostrar o contrário... com palavras.
— Por que é que hei-de esperar? Gostava de tomar parte ativa no ataque.
— Depois — manteve Speed. — Ultimamente... treme-te muito o dedo. Com tipos como Dunham não se pode ter tremuras.
Dodge protestou:
— Mas...
— Assunto arrumado. Vamos! Cada um para o seu posto. Eu darei o sinal com a mão.
Lee Dunham humedecia os lábios com a ponta da língua. O calor era sufocante. Asfixiava-o. A taberna de Moore, caldeada pelo forte sol texano, parecia uma panela gigantesca onde estivesse a cozer o condenado. Beber! Corno sentia desejos de um gole de «whisky»!
Conteve-se. Reprimiu a ânsia de agarrar a garrafa e deleitar-se com um pródigo sorvo. A mão tinha o seu lugar reservado e não devia afastar-se, por nada do mundo, da famosa coronha. Mantinha os olhos fixos, cravados nos batentes da porta.
Já tinham deixado de oscilar por causa da saída de Bundy. Sacaria quando eles entrassem, nunca antes. A mão, ao contacto com a coronha, começa a suar, e o revólver deve empunhar-se com firmeza, sem que resvale.
Os olhos, de súbito, desviaram-se da porta. Havia duas janelas no «saloon». O assalto seria à carga. A partir de então, olhou inquietamente, vigiando sem cessar as janelas e a entrada.
A espera tornava-se esgotante, exaustiva. E que silêncio tão imenso! Teriam morrido todos os habitantes de Winchell? Talvez.
Dir-se-ia que nada respirava. Nem restavam suspiros de vento. Nem estalidos nas tábuas do alpendre. Mas Speed e os seus continuavam por mais tempo a tortura de esperar!
Lee não sabia que então — naquele instante — o comissário Speed agitara a mão e distendera os músculos das pernas. Quatro homens vertiginosos moveram-se em uníssono. Dodge, sentindo-se ridículo, mordeu os lábios trémulos. Em todos os peitos, palpitando com força de furacão, vibrou uma terrível palavra.
— Agora!
Lee, sem se afastar do balcão para apresentar pela centésima vez a prova impoluta da sua coragem suicida, lançou a mão direita para baixo ligeira como um esvoaçar de pomba. O revólver de cano brunido relampagueou entre os dedos e apontou — que exibição incrível — para todos os lados por igual. Uma extração inverosímil! Um «saque» típico e exclusivo de Lee Dunham. Inigualável!
Os batentes abriram-se violentissimamente e chocaram com a parede, enquanto Speed e Garroway irrompiam na taberna como bólides humanos. A diferença de luz reinante no local cegou-os momentaneamente. Foi essa a única vantagem de Lee!
Confundindo-se com o estrépito do furioso assalto, os vidros das janelas saltaram feitos em estilhas. Raymond caiu de pé e cambaleou. Miller teve menos sorte, porque embateu com uma das mesas e tombou de bruços no chão.
Lá fora, excitadíssima, uma gritaria clamorosa atroou Winchell até aos alicerces.
Speed foi o primeiro a disparar. Fê-lo atabalhoadamente, sem gozar de uma visão clara do seu adversário. Os dois revólveres chamejaram-lhe nas mãos e causaram estragos bestiais nas prateleiras de Wash Moore, onde uma dúzia de garrafas rebentou, espargindo jorros de licor que se precipitaram em cascata atrás do balcão.
Dunham, frio como uma pedra de gelo, fez fogo de altura do quadril. Garroway abraçou-se a si mesmo, soltou um grito atroz e retrocedeu, com a morte pintada no semblante, até ao alpendre. A gritaria exterior aumentou ao verem-no cambalear, dar uma meia volta estúpida e cair na poeira da rua. Para ninguém constituiu segredo a sua morte fulminante.
Raymond apontou ao foragido a sua carabina «Express 44» e começou a premir o gatilho e a acionar a alavanca, criando um fogo de repetição ensurdecedor. As balas, grunhindo como seres vivos, cruzaram o «saloon» em todas as direções e libertaram densas nuvens de pólvora que invadiram o recinto.
Nessa altura, Lee Dunham tinha já disparado a sua segunda e última bala.
Recebeu-a Miller em plena testa, porque o comissário Speed teve especial cuidado em abrigar-se debaixo das mesas, ao ver que Garroway era recambiado para a rua. Miller, naturalmente, nem teve tempo para exalar um queixume. O projétil saiu-lhe pela nuca, com força suficiente para ir cravar-se ia parede.
Aos selvagens tiros da carabina uniram-se os disparos que Speed agora começara a fazer. Um novelo encolhido, suspirante, suportava imperterritamente a chuva de chumbo que o perfurava sem piedade. Esse novelo era Lee Dunham, o homem mau e rápido do Texas.
Tinha seis balas alojadas no peito... mas o seu coração obstinava-se em não deixar de bater.
Subitamente, quebrando-se toda a resistência, a mão que segurava o «Colt» afrouxou a pressão dos dedos. O luxuoso revólver tombou no chão, rebolando. Estava tão cuidado, tão limpo, que refulgia como uma jóia. Os braços de Lee, pendentes junto do corpo, bailavam sob os beijos do chumbo.
— Basta! — gritou Speed. — Já tem a sua conta.
Depois de uns segundos de estranho silêncio, um choque surdo e pesado assinalou o final da luta. Lee Du-nham, caído como um fardo, de cara contra o chão, tinha expirado. Desde então, podia ser considerado como uma personagem lendária. Nada mais. Os seus restos em breve apodreceriam numa vala comum.
O comissário, limpando com a manga da camisa o suor que lhe perlava a fronte, voltou-o de rosto para cima. Estava morto. Definitivamente um cadáver. Mas mesmo em tão macabras circunstâncias, Dunham conservava o privilégio de impor respeito. Talvez isso se devesse ao sorriso crispado e trocista que imprimia um ricto peculiar aos seus lábios.
— Garroway e Miller — murmurou Raymond, recarregando distraidamente o depósito da sua «Express».
— Lamento-o. Era um preço necessário, Ray. Sabia-o. Podíamos ter sido tu ou eu; mas desta vez tivemos sorte.
Uns passos precipitados soaram atrás deles. Speed não se voltou, porque adivinhavam de quem se tratava sem lugar a dúvidas. Desdenhosamente, com asco e ressentimento, disse à guisa de saudação:
— Entra Dodge. A fera já não pode morder.
E depois, sempre ignorando deliberadamente o recém--chegado, apanhou o revólver de Dunham e meteu-o, pelo cano, no cinturão. Bem podia tê-lo deixado onde estava em vez de conservá-lo como recordação.
O destino tinha reservado muitas coisas para o revólver de coronha de nácar cor-de-rosa.
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