Numa aldeia de tão reduzidas dimensões como Eden as notícias não demoravam a espalhar-se. As boas e as más. Correm velozmente elevadas pelo vento e logo chegam aos ouvidos do principal interessado.
Fay demorou-se quase meia hora no seu quarto. Esforçou-se por disfarçar os sinais deixados pelo pranto. Não queria, por nada deste mundo, que Hardy notasse a tormenta mortal que gravitava suspensa sobre o seu espírito.
É claro que tencionava dizer-lho. Naturalmente que o faria. Seria um instante supremo, esmagador e indiscritível. Falaria, mas ainda não. Precisava de se munir de coragem antes de dar o grande passo. E tinha rogado a Deus com intenso fervor que a livrasse da lancinante prova.
Quando saiu do quarto e desceu ao andar térreo para se juntar ao marido, ficou petrificada de ansiedade ao escutar o murmúrio de vozes abafadas. Hardy falava com alguém sem elevar o timbre da voz!
Não esperava visitas. Nem as desejava em tão espinhosos instantes. Tentada esteve a retirar-se rapidamente e evitar assim a tortura moral de estar a suportar a insulsa conversa de qualquer vizinho que se tornaria dolorosa para o seu apoquentado espírito. Uma força superior à dos seus próprios desejos reteve-a, no entanto, no último patamar das escadas. Sabia que não estava certo escutar às escondidas e a sua consciência censurava-lho. Mas prestando atenção e contendo o alento ainda chegou a tempo de captar a despedida.
— Obrigado, Ben — dizia o esposo. — Obrigado do coração. Nestes casos é melhor estar prevenido.
— Não tens de quê, Hardy. Julguei meu dever vir comunicar-te..., ainda que, bem sabe, muito me custe ser o portador de tão más novas. Diz-lho a ela com tato e, por favor, faz caso do meu conselho.
— Não posso. Seria uma cobardia inqualificável que me humilharia até ao fim dos meus dias. O meu lugar é em Eden, junto dela. Tentar uma fuga desnorteada não adiantava muito com esses desalmados. Além do que talvez contribuísse para malograr, com plena consciência dos meus atos, o filho que Fay e eu esperamos para dentro de um mês.
— Mas... é a tua vida que está em jogo!
— Não insistas, Ben. Há outras vidas, além da minha. Obrigado mais uma vez.
Penetrantes e invisíveis punhais cravaram-se em Fay, rasgando-lhe atrozmente a carne, quando Ben Landigton saiu de casa dos Fortune.
Ainda que desejasse acabar de descer os últimos degraus, compreendeu que só mediante um poderoso esforço físico conseguiria desembaraçar-se da imobilidade estatuária que dominava todas as fibras do seu ser. Por fim, num arranque iniciado com decisão, conseguiu vencer os indefiníveis fios que a retinham.
Hardy que voltava da sala de visitas ergueu vivamente a cabeça ao achar-se em face dela.
— Fay... — murmurou.
— Era Ben Lendigton?
— Sim. Veio dizer-me que...
— Já sei.
— Ouviste a conversa? Lamento que tenha sido tão brusca a notícia.
Os dois, muito quietos, olhavam-se com irresistível fixidez. Era o momento temido. Sem máscaras, sem fingimentos, ambos, com a cara, verificaram que o seu problema íntimo se convertera num segredo conhecido de todos.
O belo rosto da mulher cobriu-se instantaneamente de mortal palidez. Não disse nada. Nem confirmou -nem negou a pergunta de Hardy. As suas claras pupilas, brilhantes de ansiedade, começaram a empanar-se com as lágrimas de uma intensa dor.
— Querido... — suspirou.
— Sabia-lo, não é verdade?
— Sim — replicou lamentosamente. — O encarregado da diligência trouxe a notícia.
— Não tiveste coragem para me dizer?
— Tive medo. Um medo infernal, Hardy. Isto pode ser o fim da nossa felicidade.
— Ainda não chegaram a Eden.
— Mas chegarão.
— E depois? — Hardy formulou a pergunta com raiva. — Aqui estaremos a esperá-los.
— Não!
Ela protestou com um grito, de olhos dilatados, os lábios trémulos. Durante uma fração de segundo, vacilante, parecia que um dardo fatal acabava de trespassá-la. A sua palidez cerúlea assustava. Cambaleou e Hardy, rápido, teve de agarrá-la pelos ombros, receando que ela caísse no chão.
— Fujamos — rogou ela em voz transida. — Fujamos daqui, Hardy.
— Para onde? Oh, isso é impossível! Não chegaríamos nem a quinze milhas de distância... pelo deserto dentro! Que • conseguiríamos com isso? Nada, exceto perder a última possibilidade a nosso favor. Na planície acossar-nos-iam como cães a uma lebre. Coser-me-iam com tiros e tu... tu...
Fay chorava abraçada ao homem que era toda a sua vida. Aquelas palavras ditas rudemente acabavam de quebrar o derradeiro pilar da sua resistência.
Já não podia mais. Declarava-se vencida, exausta de argumentos com que rebater a firmeza acerada do marido. Conhecia-o de sobra. Hardy Fortune jamais voltaria as costas aos implacáveis ébrios da vingança!
— Raciocina — acrescentou ele. -- Tomei a minha decisão, a única que existe. Aqui, na aldeia, lutaremos num terreno que eu conheço e eles não. Existem mil maneiras de lhe fazer frente! O teu estado atual não permite valentia... meter-te num carro e fustigar os cavalos a galope seria a mais absurda das tentativas. Não — o seu tom tornou-se inapelável. — Fico em Eden. E tu também. Levar-te-ei para casa do doutor Calbert... até que amaine a tempestade. Eu conheço o modo de jogar com Jed utilizando as suas próprias cartas.
— Violência — sussurrou Fay. — É esse o jogo?
— É. Violência é a única coisa capaz de os fazer parar. A linguagem que aprenderam desde pequenos. Não há outra porta onde bater, por que nem sequer temos xerife. Cada qual tem de solucionar os seus próprios problemas. É assim que sucede desde há muito e eu não posso alterar a tradição. Se vêm em som de guerra, terão guerra.
— Mas... são quatro homens! Quatro feras daninhas cuja única profissão consiste em manejar as armas. — Bem sei, Fay. Cavalgámos juntos durante alguns anos difíceis de olvidar.
— Não permitirei, que cometas uma loucura semelhante!
— Pela primeira vez desde que nos conhecemos... o teu ponto de vista e o meu diferem notavelmente — respondeu rouco e lento. — Deixa-me atuar. Conheço o sistema. Não vão apanhar-me de mãos nos bolsos, nem... assustado. Agora há que lutar por algo mais importante que uma presa, umas cabeças de gado ou uma vida. Tu e o pequeno serão a minha bandeira e o meu credo. Não posso perder.
— Eles matam-te... matam-te...!
— Afasta essa ideia lúgubre. Eles sabem a espécie de inimigo que eu sou. É essa a razão por que vêm em grupo, em bando... confiam no número. Mas temem--me! Será interessante ver o que acontece quando cair o primeiro.
— E se és tu o primeiro?
— Sê-lo-ia no deserto; não em Eden. Aposta pelo teu campeão.
— Não quero apostar. Não me resigno a consentir num crime ante os meus próprios olhos! — Fay agia como tomada de um ataque histérico, roçando o paroxismo da demência. — Tu prometeste não voltar a usar armas de fogo. Se faltas à tua promessa eu pensarei que...
— Fay. Domina os nervos! Ou és incapaz de assimilar a verdade? Bansson e os seus sofreram cinco anos de reclusão. Durante todo esse tempo só uma coisa lhes alegrou a existência: acabar- comigo! Mas agora já não se trata só de mim. Há vocês dois! Crês que me encanta a perspetiva? Nada! Quando prometi abandonar os revólveres, fiz ainda mais do que isso: vendi-os. É verdade ou não?
— Sim, mas...
— Então porque censuras a minha atitude? Não pode haver outra, Fay. Mantive fielmente a promessa desde que nos casámos. Não há em nossa casa outras armas além de uma velha faca de mato. Mas eles vão entrar em Eden dentro de pouco tempo. Ben disse-me uma coisa que tu deves saber se ouviste o encarregado da diligência. Viram--nos por alturas de Ballinger! Mesmo supondo que a diligência foi mais rápida do que eles, não é de admitir que tenha grande vantagem. Devem estar a cair! Compreendes o que significa? Dentro em pouco..., amanhã o máximo... tê-los-emos cá! De que serviria fugir? Que benefício tiraria mantendo a minha atitude pacifista? Sei bem que fiz uma promessa. Agora vou quebrá-la. Pensa de mim o que quiseres! Preciso de um revólver antes de te instalar em casa do doutor Calbert.
A resolução e energia de Hardy contribuíram para serenar a mulher porque a sua cortante resposta significou um rude choque emocional. Os nervos, como sob a ação de um rápido sedativo, acalmaram-se; e transformaram toda a angústia em lágrimas.
Chorou. Chorou muito e profundamente, abraçada ao esposo. Depois, resignada, ainda que não convencida, aceitou com submissão a bárbara e aparentemente exclusiva linha de conduta.
Meia hora depois, levando um pequeno embrulho com o imprescindível, os Fortune encaminhavam-se para o domicílio do doutor Calbert, sendo alvo obrigado de todos os olhares. Os habitantes de Eden, ainda que procurassem disfarçá-lo, conheciam bem a fatalidade daquela sentença selvagem que pesava sobre Hardy Fortune.
intimamente condoíam-se deles. Lamentavam o transe por que tinham de passar sem apelo possível. Não obstante, como bem sabia a própria Fay, nada podiam esperar deles além da inútil compaixão. De nada valeria tentar achar refúgio nos seus corações. Seriam estéreis os esforços ao apelar para a sua amizade. Nada os convenceria a adjuvá-los. Automaticamente, desde que se espalhara a notícia, os Fortune tinham ficado sós.
Jed Bansson, sem dúvida, contara com essa eventualidade e talvez o divertisse extraordinariamente imaginar Hardy mendigando auxílio de porta em porta. Mas Hardy não mendigou.
Considerava-se bastante homem para responder pelos seus próprios atos e levá-los aos últimos extremos se fosse preciso. A esposa e o filho que estava para vir eram os únicos pontos débeis na sua sólida fortaleza moral. Por isso se apressara em pô-los a salvo.
O doutor Calbert, um ancião de cabelos branquíssimos e olhar bondoso, não precisou de ouvir meia dúzia de palavras para entender em que se baseava o pedido. A esposa do médico, tão velha como ele e de temperamento essencialmente maternal, acolheu Fay com carinho.
— Cumpra o senhor o que considera um dever, «mister» Fortune — disse. — A sua esposa fica sob a minha proteção.
— Obrigado — replicou ele, resumindo na simples expressão todo um complexo mundo de sensações e angústias.
A despedida foi breve.
Fay olhou-o chorosa e tentou improvisar um sorris valente.
Não o conseguiu senão de modo parcial, porque nem sentia desejos de rir nem se considerava com coragem para dar ânimo ao homem que, sem grande esforço de imaginação, via já ensanguentado e trespassado pelas balas criminosas de Bansson, Regan e Pretty.
— Tem cuidado conseguiu dizer, suplicante. — E sê prudente.
— Descansa, querida.
— Se não basta por mim, fá-lo pelo men...
— Fá-lo-ei pelos dois — crispou com força as mãos na aba do chapéu que mantinha pendente. — Adeus, Fay, concluiu. — Virei buscar-te quando tudo tiver passado.
— Adeus... minha vida.
Sim. Foi esta a despedida. Os Calbert, mudos, assistiram à luta de paixões que rugia no seu íntimo e que em vão tentavam impedir de transparecer nos olhos.
Quando saiu para a rua, preocupado, dirigiu os seus passos para a loja do omnímodo «mister» Wooden.
Precisava de um revólver, um cinturão-cartucheira e munições. Sabia que a batalha ia ser dura. Depois escreveria a nota que ia deixar à porta de sua casa.
Jed Bansson, quando aparecesse por Eden, iria diretamente ao seu encontro, porque — coisa muito própria dele — devia ter-se informado amplamente antes de empreender o cruel caminho da vingança. Se tinha algum plano previsto, alguma diretriz de conduta preconcebida, a nota deitaria por terra, de certo modo, os seus bem urdidos propósitos. As pessoas viam-no passar e procuravam, com a inabilidade própria dos assustados, desviar os olhos da sua cara. Mesmo alguns amigos mudavam de rumo ou improvisavam absurdas distrações para evitar que Hardy sentisse a tentação de chamá-los.
Hardy, no entanto, não chamou ninguém. Respondeu aos receios com o desprezo e aos tímidos sorrisos de algumas mulheres amigas de Fay com a indiferença.
Sabia que estava só. Só. Toda a extensão de Eden seria o seu campo de batalha. Durante a luta não daria nem pediria quartel. Era como se voltasse aos velhos tempos da fronteira. Ao passado negro e turbulento. Assim o quisera o destino.
Fay demorou-se quase meia hora no seu quarto. Esforçou-se por disfarçar os sinais deixados pelo pranto. Não queria, por nada deste mundo, que Hardy notasse a tormenta mortal que gravitava suspensa sobre o seu espírito.
É claro que tencionava dizer-lho. Naturalmente que o faria. Seria um instante supremo, esmagador e indiscritível. Falaria, mas ainda não. Precisava de se munir de coragem antes de dar o grande passo. E tinha rogado a Deus com intenso fervor que a livrasse da lancinante prova.
Quando saiu do quarto e desceu ao andar térreo para se juntar ao marido, ficou petrificada de ansiedade ao escutar o murmúrio de vozes abafadas. Hardy falava com alguém sem elevar o timbre da voz!
Não esperava visitas. Nem as desejava em tão espinhosos instantes. Tentada esteve a retirar-se rapidamente e evitar assim a tortura moral de estar a suportar a insulsa conversa de qualquer vizinho que se tornaria dolorosa para o seu apoquentado espírito. Uma força superior à dos seus próprios desejos reteve-a, no entanto, no último patamar das escadas. Sabia que não estava certo escutar às escondidas e a sua consciência censurava-lho. Mas prestando atenção e contendo o alento ainda chegou a tempo de captar a despedida.
— Obrigado, Ben — dizia o esposo. — Obrigado do coração. Nestes casos é melhor estar prevenido.
— Não tens de quê, Hardy. Julguei meu dever vir comunicar-te..., ainda que, bem sabe, muito me custe ser o portador de tão más novas. Diz-lho a ela com tato e, por favor, faz caso do meu conselho.
— Não posso. Seria uma cobardia inqualificável que me humilharia até ao fim dos meus dias. O meu lugar é em Eden, junto dela. Tentar uma fuga desnorteada não adiantava muito com esses desalmados. Além do que talvez contribuísse para malograr, com plena consciência dos meus atos, o filho que Fay e eu esperamos para dentro de um mês.
— Mas... é a tua vida que está em jogo!
— Não insistas, Ben. Há outras vidas, além da minha. Obrigado mais uma vez.
Penetrantes e invisíveis punhais cravaram-se em Fay, rasgando-lhe atrozmente a carne, quando Ben Landigton saiu de casa dos Fortune.
Ainda que desejasse acabar de descer os últimos degraus, compreendeu que só mediante um poderoso esforço físico conseguiria desembaraçar-se da imobilidade estatuária que dominava todas as fibras do seu ser. Por fim, num arranque iniciado com decisão, conseguiu vencer os indefiníveis fios que a retinham.
Hardy que voltava da sala de visitas ergueu vivamente a cabeça ao achar-se em face dela.
— Fay... — murmurou.
— Era Ben Lendigton?
— Sim. Veio dizer-me que...
— Já sei.
— Ouviste a conversa? Lamento que tenha sido tão brusca a notícia.
Os dois, muito quietos, olhavam-se com irresistível fixidez. Era o momento temido. Sem máscaras, sem fingimentos, ambos, com a cara, verificaram que o seu problema íntimo se convertera num segredo conhecido de todos.
O belo rosto da mulher cobriu-se instantaneamente de mortal palidez. Não disse nada. Nem confirmou -nem negou a pergunta de Hardy. As suas claras pupilas, brilhantes de ansiedade, começaram a empanar-se com as lágrimas de uma intensa dor.
— Querido... — suspirou.
— Sabia-lo, não é verdade?
— Sim — replicou lamentosamente. — O encarregado da diligência trouxe a notícia.
— Não tiveste coragem para me dizer?
— Tive medo. Um medo infernal, Hardy. Isto pode ser o fim da nossa felicidade.
— Ainda não chegaram a Eden.
— Mas chegarão.
— E depois? — Hardy formulou a pergunta com raiva. — Aqui estaremos a esperá-los.
— Não!
Ela protestou com um grito, de olhos dilatados, os lábios trémulos. Durante uma fração de segundo, vacilante, parecia que um dardo fatal acabava de trespassá-la. A sua palidez cerúlea assustava. Cambaleou e Hardy, rápido, teve de agarrá-la pelos ombros, receando que ela caísse no chão.
— Fujamos — rogou ela em voz transida. — Fujamos daqui, Hardy.
— Para onde? Oh, isso é impossível! Não chegaríamos nem a quinze milhas de distância... pelo deserto dentro! Que • conseguiríamos com isso? Nada, exceto perder a última possibilidade a nosso favor. Na planície acossar-nos-iam como cães a uma lebre. Coser-me-iam com tiros e tu... tu...
Fay chorava abraçada ao homem que era toda a sua vida. Aquelas palavras ditas rudemente acabavam de quebrar o derradeiro pilar da sua resistência.
Já não podia mais. Declarava-se vencida, exausta de argumentos com que rebater a firmeza acerada do marido. Conhecia-o de sobra. Hardy Fortune jamais voltaria as costas aos implacáveis ébrios da vingança!
— Raciocina — acrescentou ele. -- Tomei a minha decisão, a única que existe. Aqui, na aldeia, lutaremos num terreno que eu conheço e eles não. Existem mil maneiras de lhe fazer frente! O teu estado atual não permite valentia... meter-te num carro e fustigar os cavalos a galope seria a mais absurda das tentativas. Não — o seu tom tornou-se inapelável. — Fico em Eden. E tu também. Levar-te-ei para casa do doutor Calbert... até que amaine a tempestade. Eu conheço o modo de jogar com Jed utilizando as suas próprias cartas.
— Violência — sussurrou Fay. — É esse o jogo?
— É. Violência é a única coisa capaz de os fazer parar. A linguagem que aprenderam desde pequenos. Não há outra porta onde bater, por que nem sequer temos xerife. Cada qual tem de solucionar os seus próprios problemas. É assim que sucede desde há muito e eu não posso alterar a tradição. Se vêm em som de guerra, terão guerra.
— Mas... são quatro homens! Quatro feras daninhas cuja única profissão consiste em manejar as armas. — Bem sei, Fay. Cavalgámos juntos durante alguns anos difíceis de olvidar.
— Não permitirei, que cometas uma loucura semelhante!
— Pela primeira vez desde que nos conhecemos... o teu ponto de vista e o meu diferem notavelmente — respondeu rouco e lento. — Deixa-me atuar. Conheço o sistema. Não vão apanhar-me de mãos nos bolsos, nem... assustado. Agora há que lutar por algo mais importante que uma presa, umas cabeças de gado ou uma vida. Tu e o pequeno serão a minha bandeira e o meu credo. Não posso perder.
— Eles matam-te... matam-te...!
— Afasta essa ideia lúgubre. Eles sabem a espécie de inimigo que eu sou. É essa a razão por que vêm em grupo, em bando... confiam no número. Mas temem--me! Será interessante ver o que acontece quando cair o primeiro.
— E se és tu o primeiro?
— Sê-lo-ia no deserto; não em Eden. Aposta pelo teu campeão.
— Não quero apostar. Não me resigno a consentir num crime ante os meus próprios olhos! — Fay agia como tomada de um ataque histérico, roçando o paroxismo da demência. — Tu prometeste não voltar a usar armas de fogo. Se faltas à tua promessa eu pensarei que...
— Fay. Domina os nervos! Ou és incapaz de assimilar a verdade? Bansson e os seus sofreram cinco anos de reclusão. Durante todo esse tempo só uma coisa lhes alegrou a existência: acabar- comigo! Mas agora já não se trata só de mim. Há vocês dois! Crês que me encanta a perspetiva? Nada! Quando prometi abandonar os revólveres, fiz ainda mais do que isso: vendi-os. É verdade ou não?
— Sim, mas...
— Então porque censuras a minha atitude? Não pode haver outra, Fay. Mantive fielmente a promessa desde que nos casámos. Não há em nossa casa outras armas além de uma velha faca de mato. Mas eles vão entrar em Eden dentro de pouco tempo. Ben disse-me uma coisa que tu deves saber se ouviste o encarregado da diligência. Viram--nos por alturas de Ballinger! Mesmo supondo que a diligência foi mais rápida do que eles, não é de admitir que tenha grande vantagem. Devem estar a cair! Compreendes o que significa? Dentro em pouco..., amanhã o máximo... tê-los-emos cá! De que serviria fugir? Que benefício tiraria mantendo a minha atitude pacifista? Sei bem que fiz uma promessa. Agora vou quebrá-la. Pensa de mim o que quiseres! Preciso de um revólver antes de te instalar em casa do doutor Calbert.
A resolução e energia de Hardy contribuíram para serenar a mulher porque a sua cortante resposta significou um rude choque emocional. Os nervos, como sob a ação de um rápido sedativo, acalmaram-se; e transformaram toda a angústia em lágrimas.
Chorou. Chorou muito e profundamente, abraçada ao esposo. Depois, resignada, ainda que não convencida, aceitou com submissão a bárbara e aparentemente exclusiva linha de conduta.
Meia hora depois, levando um pequeno embrulho com o imprescindível, os Fortune encaminhavam-se para o domicílio do doutor Calbert, sendo alvo obrigado de todos os olhares. Os habitantes de Eden, ainda que procurassem disfarçá-lo, conheciam bem a fatalidade daquela sentença selvagem que pesava sobre Hardy Fortune.
intimamente condoíam-se deles. Lamentavam o transe por que tinham de passar sem apelo possível. Não obstante, como bem sabia a própria Fay, nada podiam esperar deles além da inútil compaixão. De nada valeria tentar achar refúgio nos seus corações. Seriam estéreis os esforços ao apelar para a sua amizade. Nada os convenceria a adjuvá-los. Automaticamente, desde que se espalhara a notícia, os Fortune tinham ficado sós.
Jed Bansson, sem dúvida, contara com essa eventualidade e talvez o divertisse extraordinariamente imaginar Hardy mendigando auxílio de porta em porta. Mas Hardy não mendigou.
Considerava-se bastante homem para responder pelos seus próprios atos e levá-los aos últimos extremos se fosse preciso. A esposa e o filho que estava para vir eram os únicos pontos débeis na sua sólida fortaleza moral. Por isso se apressara em pô-los a salvo.
O doutor Calbert, um ancião de cabelos branquíssimos e olhar bondoso, não precisou de ouvir meia dúzia de palavras para entender em que se baseava o pedido. A esposa do médico, tão velha como ele e de temperamento essencialmente maternal, acolheu Fay com carinho.
— Cumpra o senhor o que considera um dever, «mister» Fortune — disse. — A sua esposa fica sob a minha proteção.
— Obrigado — replicou ele, resumindo na simples expressão todo um complexo mundo de sensações e angústias.
A despedida foi breve.
Fay olhou-o chorosa e tentou improvisar um sorris valente.
Não o conseguiu senão de modo parcial, porque nem sentia desejos de rir nem se considerava com coragem para dar ânimo ao homem que, sem grande esforço de imaginação, via já ensanguentado e trespassado pelas balas criminosas de Bansson, Regan e Pretty.
— Tem cuidado conseguiu dizer, suplicante. — E sê prudente.
— Descansa, querida.
— Se não basta por mim, fá-lo pelo men...
— Fá-lo-ei pelos dois — crispou com força as mãos na aba do chapéu que mantinha pendente. — Adeus, Fay, concluiu. — Virei buscar-te quando tudo tiver passado.
— Adeus... minha vida.
Sim. Foi esta a despedida. Os Calbert, mudos, assistiram à luta de paixões que rugia no seu íntimo e que em vão tentavam impedir de transparecer nos olhos.
Quando saiu para a rua, preocupado, dirigiu os seus passos para a loja do omnímodo «mister» Wooden.
Precisava de um revólver, um cinturão-cartucheira e munições. Sabia que a batalha ia ser dura. Depois escreveria a nota que ia deixar à porta de sua casa.
Jed Bansson, quando aparecesse por Eden, iria diretamente ao seu encontro, porque — coisa muito própria dele — devia ter-se informado amplamente antes de empreender o cruel caminho da vingança. Se tinha algum plano previsto, alguma diretriz de conduta preconcebida, a nota deitaria por terra, de certo modo, os seus bem urdidos propósitos. As pessoas viam-no passar e procuravam, com a inabilidade própria dos assustados, desviar os olhos da sua cara. Mesmo alguns amigos mudavam de rumo ou improvisavam absurdas distrações para evitar que Hardy sentisse a tentação de chamá-los.
Hardy, no entanto, não chamou ninguém. Respondeu aos receios com o desprezo e aos tímidos sorrisos de algumas mulheres amigas de Fay com a indiferença.
Sabia que estava só. Só. Toda a extensão de Eden seria o seu campo de batalha. Durante a luta não daria nem pediria quartel. Era como se voltasse aos velhos tempos da fronteira. Ao passado negro e turbulento. Assim o quisera o destino.
Sem comentários:
Enviar um comentário