terça-feira, 15 de novembro de 2016

CLF074. CAP VI. Primeiro embate com índios selvagens

Sem gastar palavras, o tenente Semple fez uma rápida descrição das coisas a Duncan, e conduziu-o até à parte superior do acampamento. Enquanto o cruzava notou que o posto, ainda que pitoresco, tinha um ar pouco militar, com as suas tendas distribuídas caprichosamente e o solo cheio de utensílios e armas.
Seguindo o tenente entrou numa tenda um pouco maior que as demais. No seu interior, em frente de uma rústica mesa, estava sentado um homem excessivamente magro, de rosto chupado e coberto por uma barba ríspida e enegrecida; os seus olhos eram cinzem-tos de um tom pouco comum, mas de certa maneira cautelosos.
-- Capitão Henely — disse Semple — aqui tem Rudger.
Durante um instante o olhar do capitão pousou em Duncan com certa expressão de resignação, como se a chegada do novo explorador fosse um peso.
— O tenente Semple já me falou de você. Porque se alistou nos exploradores?
Duncan precisou de uns momentos para dominar a sua irritação. Não estava acostumado a que o tratassem daquele modo, e evidentemente era injusto que o julgasse arbitrariamente um sujeito que não sabia nada dele.
— Digamos que necessitava da hospitalidade e simpatia com que me acolheram para levantar o meu descaído espírito — respondeu desabrido.
O capitão não se alterou.
— O peculiar sentido de humor de cada um não é bastante para ser digno de ingressa] neste corpo, senhor — manifestou-se friamente.
— Não o duvido. E evidentemente não sãs tão pouco qualidades indispensáveis a educação e a cortesia. Já notei isso, «monsieur».
Henely pareceu passar por alto a observação sem o mais ligeiro franzir de sobrancelhas.
— «Monsieur»... desde este momento em diante, Rudger, deixará de chamar-me «mon sieur». Você forma parte dos «Exploradores dl Kansas» e deverá dizer «senhor» ao dirigir-se aos seus superiores. Entendido? Se tem outros costumes afrancezados renuncie a eles. Lembre-se que já não está em Nova Orleans. Não tolero melindres nem ressentimentos em nenhum homem. Tomamo-nos a sério, senhor; você fará o necessário para colocar-se ao nossa nível. Está claro isto?
— Devo entender que tenho de renunciar ao asseio e à educação... senhor? — perguntou secamente o jovem.
As espessas sobrancelhas do capitão uniram-se numa linha tormentosa.
— Você é difícil, Rudger — grunhiu.
Mas o jovem estava irritado e farto de toda aquela gente que se permitia desprezá-lo só porque ele pertencia à fronteira.
— Porque se não é isso que entendo por me colocar ao vosso nível — prosseguiu friamente — estou disposto a enfrentar-me com qualquer homem ao revólver, espingarda, espada, sabre ou punhal. A medir-me com quem quiser como cavaleiro. A realizar qualquer exercício. Em poucas palavras... senhor, estou disposto a demonstrar que a minha capacidade e valor equivale pelo menos a qualquer dos seus homens.
O capitão aguardou com rosto grave que Duncan acabasse de falar.
— Essas são grandes palavras, Rudger — disse então. — Terá ocasião de as demonstrar.
— Não é outra coisa o que desejo.
— Bem. Tudo o que pedimos aos exploradores é lealdade, coragem e integridade absoluta. Pagar-lhe-emos quarenta dólares mensais... quando o podermos conseguir. Por esse soldo esperamos que cumpra os seus deveres, pondo de lado qualquer questão pessoal. Em troca disto, além do soldo miserável e problemático, receberá você muito pouca gratidão. Se morre Pagar-lhe-emos dois metros de terra em qualquer lugar ignorado, sem nenhuma pedra nem nenhuma classe de monumento; a única lembrança de você será um breve apontamento nos nossos registos.
Henely fez uma pausa como esperando que o recruta tivesse algum comentário a fazer, mas não foi assim, e continuou:
— Esta companhia perdeu quinze homens nos últimos dois meses. Isto lhe dará uma ideia do que o espera. E finalmente, se acha que este modo de vida dos «exploradores» é demasiado duro para você, poderá apresentar a sua demissão... ao cumprir um ano, se é que continua com vida ainda.
Rudger ficou inexpressivo. Compreendia que começar a sua vida como explorador desfrutando a inimizade do tenente e tendo provado a cólera do capitão era uma grande coisa, mas já nada o podia evitar. Tudo muito agradável de qualquer ponto que se visse.
Mas continuava furioso. Se até àquele momento se tinha deixado levar pelas adversas circunstâncias que o conduziram até àquele situação em que se encontrava, tudo ia mudar Tinha que demonstrar àqueles ursos que um homem da cidade podia adaptar-se perfeitamente ao seu ambiente, e incluso superá-la em qualquer missão.
— Nada mais, Rudger. Pode retirar-se.
— As suas ordens, senhor.
*
Os dias que se sucederam não foram muito agradáveis para Duncan Rudger, se bem que o adestramento de explorador era mais fácil do que ao princípio julgou.
Uma coisa foi admitida desde o primeiro momento; que o novo homem era o melhor atirador do destacamento. Além disso, a vida distava muito de ser agradável para ele.
A comida era pobre e má, as tendas velhas e incómodas e a disciplina não se mantinha mais do que por vontade pessoal e incompreensível de cada explorador. O posto contava com cinquenta homens de aspeto rude e inculto, a maioria deles com barbas, queimados pelo sol e magros. Pouco cuidado no seu asseio pessoal.
O facto de Duncan se barbear todos os dias e tomar banho no rio cada vez que tinha ocasião, era motivo de troça e pesadas brincadeiras, e o jovem descobriu bem depressa que os seus companheiros tinham um sentido de humor deplorável.
Desagradáveis experiências se seguiram para o novato, mas aceitou-as sem protestar, apertando os dentes cada vez, com a firme disposição de resistir quanto fosse preciso.
Pouco se falava no posto do perigo; no entanto, o perigo era constante e a morte considerada como uma eventualidade próxima e provável. E andar a cavalo até ao esgotamento era coisa aceitável como muito natural.
Isto serviu a Duncan para descobrir que o seu baio tinha sido uma magnífica compra. Era dócil, veloz e extraordinariamente resistente e o seu aspeto também melhorou consideravelmente quando lhe proporcionou enormes cuidados. Bem ferrado, alimentado adequadamente, limpo e' tendo recebido os cuidados do tosquiador, tinha muito boa estampa e parecia orgulhoso dele, pois já não inclinava a cabeça da maneira que o fazia quando no curral de Fort Wallace.
O único amigo que tinha era Travis. Os demais pareciam divertir-se achincalhando-o e fazendo mais difícil a sua convivência com eles, talvez por solidariedade com o tenente Semple, que não ocultava a sua inimizade pelo novato.
Duncan surpreendia-se por vezes sorrindo amargamente ao imaginar o que pensariam os seus amigos dos cafés de Nova Orleans se o vissem a ele, o entendido em comidas e vinhos finos, o homem da vida refinada, de elegantes modas, a maioria das vezes sujo apesar dos seus esforços, com o rosto enegrecido pelo sol e intempéries, com o seu aspeto grosseiro e descuidado de um verdadeiro selvagem.
E não obtinha nenhuma satisfação na nova vida. Adaptou-se a ela, mas só graças a um fúria e a uma exasperada tenacidade. E entretanto foi-se desenrolando nele um crescente desdém e desgosto por aqueles homens da fronteira e tudo quanto se relacionava com a mesma. Especialmente pelo seu costume de cantarem baladas de grandeza, de formosura, ao futuro, à riqueza e tudo mais da sua nova terra. Pessoalmente só desejava a chegada do momento que pudesse escapar do Kansas.
Mas entretanto aplicou-se com fervor aprendendo tudo o que ignorava. E Travis o ajudou em tudo quanto pôde. Levou-o com ele quantas vezes saiu de patrulha, corrigiu as suas asneiras e mais de uma vez o salvou de alguma calamidade. Reiteradamente explicou ao seu aluno como encontrar um vau em lugar de se arriscar teimosamente por sítios onde seria arrastado para a morte. Deu-lhe com paciência pequenas lições como ler o terreno, como seguir uma pista, caçar, fazer comida no acampamento, acomodar a carga sobre o cavalo e coisas do estilo. E Duncan pôs tanto interesse, apesar do desgosto com que fazia aquilo, que um mês depois podia patrulhar sozinho.
Então no Verão de 1868, deu-se a ofensiva índia, que foi a mais sangrenta de toda a história daquele território. Em sessenta dias foram sacrificados cento e dezassete colonos brancos, e raptadas sete mulheres e levadas para o cativeiro. As incursões índias foram mais de vinte e cinco, e converteram o Oeste de Kansas num deserto.
Ao entardecer de um caloroso dia dos finais de junho, suado, cansado, coberto de pó e sedento, cavalgava entre nuvens de pó que levantava à sua passagem, pois havia semanas que não caia uma gota de chuva naquela região, quando descobriu uns montículos baixos que pareciam indicar a proximidade de um terreno húmido.
Duncan não precisou de dar esporas ao baio, pois, como o animal tivesse pressentido a água, avivou o passo por ele próprio.
O jovem tinha sorte. Assim o afirmavam quantos o conheciam, e ele estava de acordo. Inclusive, quando uma série de desfortuna das circunstâncias o converteram num proscrito, não duvidou dela, que o tirou com assombrosa facilidade do mortal perigo em que se encontrava. E agora uma vez mais, se lhe mostrou fiel.
Efetivamente, foi só por sorte que se salvou da emboscada. Ao chegar aos pequenos montes ia a passo entre eles, quando o seu cavalo fez um movimento estranho.
Duncan deteve-o imediatamente. Encontrava-se em terreno índio, longe do acampamento e de todo o «lugar habitado», pois o primeiro colono encontrava-se na mesma direção, mas quinze milhas mais longe, pelo que se o baio ficasse coxo ou sofresse qualquer acidente, a sua situação estaria muito comprometida.  
Saltando em terra, levantou a pata esquerda dianteira do animal, e uma olhadela bastou-lhe para ver que uma pedra afiada se tinha introduzido no casco do cavalo.
— Vá! — grunhiu. — Cadela de sorte esta! Precisamente agora, que ao que parece estávamos perto de água!
Com um relincho o animal tentou soltar a pata.
— Quieto! —  disse Duncan, tirando o seu punhal. — Doí-te?
O baio insistiu nos seus relinchos.
— Não te mexas agora.
Inclinando-se sobre o casco, tentou aflorar a pedra com a ponta do punhal. Era um trabalho delicado, pois ao menor descuido, podia ferir profundamente o animal.
Ainda que cuidadoso, os esforços de Rudger não foram suficientes para evitar ferir o cavalo, que soltou um relincho doloroso.
— Já está a sair disse, com carinho.
A pedra estava quase a sair, empurrada pela ponta afiada do punhal, quando Duncan ouviu um alarido que o fez levantar a cabeça rapidamente. Notou, então, que três cavaleiros selvagens, em desenfreada galopada, desciam de um dos montes, dirigindo-se ao seu encontro, levantando os rifles acima das suas emplumadas cabeças, em atitude bélica.
Duncan sofreu um sobressalto. Era a primeira vez que via índios selvagens, e isso impressionou-o grandemente. Tanto mais que cavalgavam gritando como demónios, no momento em que o seu cavalo estava praticamente inutilizado e para cúmulo, ao seu redor não existia sequer uma pedra ou árvore que lhe servisse de refúgio.
Largou a pata do baio e erguendo-se, quedou-se sem saber que atitude tomar, olhando em todas as direções procurando algo que lhe permitisse fazer frente, para se salvar. Mas infelizmente, nada havia.
Ali estava, no meio da pradaria, completamente plana sem mais vegetação que alguns arbustos e erva rasteira e seca.
Uns segundos mais e teria tido tempo de arrancar a pedra do casco do cavalo, mas já não tinha tempo para o fazer e, montar naquelas condições era o mesmo que inutilizar o pobre animal sem qualquer resultado.
O medo sacudiu-lhe os nervos como uma chicotada, estremecendo dos pés à cabeça, e por instantes dominou-o uma vontade enorme de voltar as costas e fugir aos peles-vermelhas. Mas isso seria um suicídio. Só podia fazer uma coisa, e essa era a de empunhar as armas e tentar conter a carga dos índios, mediante uma cortina de fogo. E não havia tempo a perder porque estavam quase em cima de si.
Desafundou o pesado rifle «Sharp» e metendo-o à cara com incrível rapidez, fez fogo.
Apesar de ser um grande atirador e o alvo grande e próximo, falhou!
Os índios aumentaram os seus gritos e as suas sujas cabeleiras esvoaçaram ainda mais ao vento, aproximando-se perigosamente do rosto-pálido. A espingarda automática, era todavia, muito pouco conhecida na fronteira e aqueles guerreiros não tinham tido nenhum contacto com ela.
Fazendo o possível por serenar, Duncan voltou de novo a disparar, apontando desta vez a um dos cavaleiros, ainda que lhe parecesse que tinha acertado nos três ao mesmo tempo. Embora soubesse que os índios se deixavam cair dos cavalos, ficando estirados no solo, jamais o tinha verificado, ainda que Travis lhe tivesse feito ver, que este era um dos seus truques preferidos.
A ação começava a sossegá-lo, e sem se deixar impressionar pelos peles-vermelhas. Nesse mesmo instante, um deles disparou o seu rifle tentando acertar-lhe. De pé firme e de peito descoberto, derrubou-o com um tiro na cabeça e, num alarde de soberbo atirador, quase sem fazer pontaria, fez saltar de forma fulminante o último dos seus inimigos, no momento em que este se descobria para atirar. O guerreiro caiu a alguns metros de distância, passando o cavalo, assustado, rente a Duncan.
O explorador baixou a arma, e contemplou os obscuros corpos caídos sobre a raquítica erva. Estava atordoado e por instantes pareceu não saber o que fazer. Começava a dar conta que acabava de sair triunfante do seu primeiro encontro com os índios, mas não estava convencido. Tudo tinha sido muito rápido.
Como o cavalo, assustado pelos disparos se tivesse afastado para um sítio além daquele onde os corpos estavam caídos, decidiu fazer um reconhecimento e avançou a pé, para eles, com o rifle pronto a disparar.
O último pele-vermelha que abatera estava muito próximo, caído de bruços, imóvel, e não se notava qualquer movimento, nem sequer a respiração. Devia estar morto.
Rudger para se certificar volteou-o com o pé, mas de repente, aquele corpo pesado e hirto, converteu-se num torvelinho de agilidade. Com a cabeça do índio encaixada no seu estômago, o inexperiente explorador caiu pesadamente de costas, batendo violentamente contra o solo sem poder fazer nada para amortecer a queda, que foi tão violenta que perdeu o rifle.
Enevoadamente, viu que o índio vinha sobre ele levantando algo metálico e ficando livre das pernas, num gesto de puro instinto, atirou para o lado com o seu inimigo dando--lhe um pontapé nas costelas.
Com um grito rouco, o selvagem voltou de novo à carga como se fosse de borracha, mas apesar de toda a sua rapidez, Duncan teve o tempo suficiente de sacar o revólver e disparar, apanhando o índio em cheio na cara, que caiu para trás dobrando-se pela cintura.
Muito a custo, soergueu-se sobre o cotovelo, contemplando as últimas convulsões do guerreiro índio.
Mas mais uma vez a Providência interveio a seu favor, pois se o índio tivesse caído noutra direção, ser-lhe-ia impossível constatar a silenciosa destreza de agilidade humana que lhe caía em cima.
Mais por instinto do que por vontade, Duncan levantou o revólver e disparou freneticamente, até esgotar as munições. Levado pelo impulso adquirido e possuído por uma fúria superior à agonia da morte, o bravo esteve lançando pontapés e golpes, saltando sobre a terra como um víbora sem cabeça, para depois ter um enorme estremecimento e ficar imóvel.
Rudger levantou-se olhando em volta para ver se havia mais inimigos, e depois carregou rapidamente o seu revólver, antes de examinar os índios para ver se estavam efetivamente mortos.
Impressionou-o o aspeto feroz e selvagem daqueles cadáveres seminus, e ainda que já tivesse visto as pinturas que cobriam o seu rosto, sofreu um sobressalto ao lembrar-se do que tinha ouvido dizer que significavam. Eram pinturas de guerra, e não podiam significar mais do que uma incursão dos índios.
Por momentos permaneceu imóvel, apanhado pela certeza de um ataque índio, mas seguidamente entrou numa febril pressa de se afastar dali. Tinha que voltar ao acampamento a toda a velocidade e dar o alarme.
A lembrança da pouca simpatia do capitão Henely e a decidida inimizade do tenente Semple, fê-lo parar uns minutos mais, para recolher os rifles dos índios e despojá-los dos seus mocassins, para que não pudessem duvidar da autenticidade de seu relato, e em seguida foi em busca do cavalo.
— Lamento muito, companheiro — disse ao animal enquanto usava o encerado para fazer um embrulho com os seus troféus e os amarrava atrás da sela, — mas terás de suportar um pouco mais sem beber.
Levantou a pata do animal e teve uma grata surpresa ao ver que a afiada pedra tinha acabado por sair.
De um salto subiu para a sela e sem perder um momento partiu a todo o galope em direção do acampamento sentindo-se muito satisfeito porque o animal parecia não acusar a ferida na pata.

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