sexta-feira, 11 de novembro de 2016

CLF074. CAP II. Convite ao pecado

Antes de sentirem o vento ouviram-no agitar as folhas das árvores, e imediatamente Duncan fez descrever ao cavalo um amplo círculo, voltando o coche em direção de Nova Orleans. Mas antes de o ter conseguido, começaram a cair as primeiras gotas, grandes corno moedas, que golpearam sonoramente contra a capota do carro.
— Maldição! — resmungou Duncan, sem poder conter-se. — Já a temos aqui.
Fustigou o cavalo. As primeiras gotas converteram-se em seguida em chuva torrencial que caía em líquidas cortinas.
O vento que aumentava também, de segundo para segundo, impulsionava a água para debaixo da alta capota do carro e em poucos minutos os seus ocupantes ficaram todos molhados até aos ossos.
Uma árvore caiu uns segundos depois de o carro ter passado. Escureceu de repente, fazendo-se prematuramente noite. Uma noite infernal que os trovões faziam estremecer e os relâmpagos cegavam.
Continuaram a correr. As rodas do carro levantavam grossas folhas amarelas. Davam loucos tombos, endireitavam-se e continuavam em frente. A chuva caia sobre eles impiedosamente.
«Não chegaremos nunca», pensou Duncan. De repente, à luz de um relâmpago viu a casa dos Sompayrac. A casa da peste, como era chamada. Mas não havia outra solução senão refugiarem-se ali.
Rudger meteu o carro pelo caminho particular com uma rápida volta, e conduziu-o até ao curral.
— Vamos! Temos que nos meter ali! — gritou Duncan saltando do carro e estendendo os braços para a jovem.
Kitty lançou-se para eles, e correram para o alpendre. Pela forma como o vento empurrava a chuva, o telhado do alpendre não lhes servia de nenhuma proteção.
Duncan experimentou a porta. Estava fechada, mas isso não o conteve. Era impossível ficarem ali fora.
Deu um pontapé na porta junto à fechadura com todo o impulso do seu peso. A porta cedeu com um estalo, que foi abafado pelo ruído de um trovão.
Dentro tudo estava seco, menos num canto onde havia uma goteira. Quando Duncan procurou os fósforos, viu que estavam tão molhados como ele. Mas tinha a certeza de que na cozinha os havia de encontrar, pois que nem os ladrões tinham a coragem de ali entrar.
— Temos de acender urna luz, Kitty —disse. -- Aguarda aqui enquanto vou ver se encontro com quê.
— Não, Dunc! — gritou ela no mesmo instante. — Não me deixes aqui sozinha! Tenho medo! Um medo espantoso!
— Vamos, mulher — tratou de tranquilizá-la. — Aqui não há perigo. •
— Deixa-me ir contigo suplicou ela com voz abafada.
— Está bem.
Procurou a sua mão na quase escuridão total que os envolvia, e juntos avançaram no meio das sombras até à cozinha.
Encontrou os fósforos e depois de acender um, descobriu um candeeiro.
Duncan levantou a torcida e acendeu-o. Ao colocar o vidro, a luz encheu toda a cozinha da velha casa.
Ao endireitar-se, olhou para Kitty. A jovem oferecia um aspeto deplorável; tremia como varas verdes e tinha os lábios arroxeados.
— Terás que tirar essa roupa molhada — disse. — Vou procurar outro candeeiro e ao mesmo tempo, verei se no andar de cima haverá alguma coisa que possas vestir.
Ela sacudiu a cabeça em sinal negativo.
— Não, querido — disse, ainda que os dentes batessem como castanholas. Creio que preferia morrer de frio que vestir qualquer coisa que pertencesse à pobre Magda Sompayrac.
-- Não pode ser. Assim é que morres efetivamente.
— Acende o lume.
— Fá-lo-ei imediatamente; pois de qualquer maneira tens de tirar essa roupa encharcada. Vou trazer-te uma manta para que te envolvas nela. Uma manta limpa, do armário. Estou certo de as encontrar, pois quando morreram os Sompayrac já o Inverno tinha passado e devem ter tirado da cama a roupa de agasalho. Parece-te bem?
— Tenho demasiado frio para manter excessivos escrúpulos — disse.
Com o candeeiro voltaram à sala de estar, onde Duncan acendeu o lume. Lá fora, a tormenta era como um dilúvio e não parecia dar sinais de abrandar tão depressa.
O jovem acendeu um artístico candeeiro.
— Fica aí, junto ao lume — disse.
— Não te demores — suplicou ela.
-- Voltarei de seguida — tranquilizou-a.
Atuou com rapidez, não só por medo de Kitty, mas também porque tremia de frio. Subiu, encontrando algumas mantas num armário, e tirou duas, apressando-se a regressar para junto da jovem.
— Tira a roupa enquanto eu o faço na cozinha. Chama-me quando tenhas acabado e apressa-te, pois eu também tenho grande necessidade de me aquecer ao fogo.
Uma vez despido, envolto na sua • manta, e com as roupas que acabava de tirar, a escorrer, e enquanto esperava a chamada de Kitty, deu uma vista de olhos ao aparador, encontrando com grande satisfação uma garrafa de «whisky» quase cheia. Apressou-se a beber um bom trago. O licor era excelente e no mesmo instante sentiu-se muito melhor. Então ouviu-se a voz da jovem que o chamava.
Voltou à sala segurando a manta o melhor que podia, com a garrafa de «whisky» numa mão e as roupas na outra, perfeitamente consciente de que o seu aspeto devia ser o mais grotesco, e com os olhos brilhantes de regozijo olhou para a jovem que por sua vez também o mirava. Sem se poder conter, desatou a rir. Depois, Duncan ficou sério
— Kitty — murmurou — se soubesses o que agora sinto, farias bem em fugir.
Ela olhou-o durante alguns momentos, sem medo algum, se bem que tivesse desaparecido dos seus olhos o regozijo que os fizera chispar durante os primeiros momentos.
— Não, Duncan. Não creio que agora, nem nunca, tenha de fugir de ti. Estou segura de que posso confiar no teu cavalheirismo. Sempre confiei em ti. Se não confiasse, nunca te teria amado tanto, como te amo.
— Sinto-me o menos cavalheiro que possas imaginar — disse.
Encolheu os ombros resignadamente, deixou a garrafa em cima da mesa e voltou-se de costas pondo-se a estender a sua roupa junto ao lume.
Uma vez acabada aquela operação, voltou--se de novo para a jovem, e fez uma careta. Via um pedaço • do ombro, um braço perfeitamente torneado e dobrado numa suave curva para segurar a manta cingida ao corpo, e o sangue ardeu-lhe nas veias.
— Está bem — disse pausadamente. — Se tu não queres, não terei outro remédio senão conformar-me.
Kitty ainda tinha frio. Os seus dentes batiam como castanholas.
Duncan apanhou de novo a garrafa e ofereceu-lha.
— Bebe um trago, que isto te reanimará.
Ela bebeu com certa precaução, mas mesmo assim o licor era forte e em circunstâncias normais tê-la-ia feito tossir e atrapalhar-se; mas nada disso aconteceu, se bem que ao devolver-lhe de novo a garrafa, sentisse as faces escaldarem-lhe e os olhos brilhantes.
— Encontras-te melhor? — perguntou ele.
— Oh, sim! — exclamou ela alegremente. -- Não sabe muito bem, mas reanima.
— Temos que nos acostumar a encontrar--lhe o sabor.
— De qualquer maneira isso não importa; a verdade é que me sinto melhor. Deixa-me beber mais um poucochinho.
Duncan, de novo lhe estendeu a garrafa e enquanto ela bebia outro trago, lançou ma vista de olhos para a roupa interior, estendida nas costas de uma cadeira junto da chaminé. Compreendia perfeitamente que debaixo da manta só estava... Kitty. Isto aumentou-lhe o fervor do seu sangue nas veias e dificultou--lhe a respiração. Lá fora, continuava a cair a chuva, torrencialmente.
— Parece-me que vai chover toda a noite — murmurou.
— Valha-me Deus! -- gemeu a jovem, ainda que com o rosto rosado e os olhos brilhantes. — O meu pai nos estará esperando pela manhã.
Duncan olhou-a nos olhos.
— E não servirá de nada tudo o que lhe dissermos — murmurou. — Não será?
— Não, Dunc.
— Porquê, Kitty? Aposto que de todos os modos vão pensar que...
— Porque não quero — interrompeu ao mesmo tempo que aumentava o rubor das suas faces, e desviou olhar. — Não; não está certo. Sim, quero-o. Mas não o farei.
— Porque não? — insistiu ele.
— Não é fácil explicar, querido, ainda que deverias compreendê-lo. Se não pudermos sair daqui em toda a noite, ninguém acreditará que realmente nada sucedeu; sei isso. Nem sequer o meu pai. Mas não importa. Eu sei que não minto.
Nervosa e agitada, a jovem agarrou de novo na garrafa de «whisky». Duncan fixou a garrafa e viu que havia sofrido um considerável desgaste. Sim, Kitty continuava a beber...
Mais de uma mulher havia dito que ele era um canalha sedutor. Mas não era verdade... Tinha os seus vícios e debilidades e como as mulheres lhe encontravam atrativos tinha angariado a sua fama de que não se sentia muito orgulhoso, mas jamais tomou alguma pela força; eram elas sempre, que se ofereciam.
— Então — murmurou, olhando para o lume — se é isso o que pensas, será melhor não beberes mais. Esse licor é muito forte e não estás acostumada.
Ela estava descalça e não a ouviu chegar, mas de repente, sentiu a sua aproximação. Dos cabelos molhados desprendia-se um suave perfume que lhe era característico.
— Obrigado, Duncan — murmurou ela, poisando uma mão no seu braço. — És encantador. Voltou-se com uma ponta de violência.
— Mais vale que te deites no sofá, Kitty —disse em voz suave. Estás mais cómoda e talvez possas dormir um pouco.
— Está bem, querido. Mas dá-me um beijo.
Duncan suspirou fundo, e depois mostrou os dentes muito brancos e brilhantes, num sorriso forçado.
— Já reparaste que sou um barril de pólvora e tu o rastilho? — disse tentando ser jovial, embora as suas palavras não obtivessem o desejado efeito. Mais vale que te mantenhas afastada se queres evitar a explosão.
— Sim, querido — concordou ela docilmente. — O que tu quiseres.
Foi até ao sofá e enquanto ele a olhava, deitou-se.
Durante um momento, e por mais cuidado que tivesse, a manta, ao levantar os pés abriu--se e deixou ver um bocado das pernas.
Duncan soltou um gemido e voltou-se apressadamente para o lume.
*
Amanhecia quando Duncan entrou na salita já completamente vestido, e indo até ao sofá, inclinou-se sobre a jovem, que ainda dormia e beijou-a nos lábios.
Ela abriu os olhos e sorriu.
— Bons-dias, querida! Já deixou de chover e está amanhecendo. São horas de marcharmos.
Ela voltou-se um pouco, e a manta que se havia soltado enquanto dormia, deixou a descoberto a deliciosa curva do seu pescoço, um ombro e parte dos seus seios juvenis.
Duncan beijou-a e levantou-se rapidamente. Havia passado o pior, mas não estava suficientemente seguro da sua vontade para resistir ao atrativo da jovem.
Então ouviu o ruído da porta, e voltando-se ficou a olhar para o revólver que lhe apontavam diretamente ao seu coração. Levantou os olhos e viu o rosto de André Marigny, onde se refletia a cólera assassina. Atrás dele aparecia também Etienne, o mais jovem dos irmãos de Kitty. Ninguém mais. Duncan teve a certeza de que o pai e o outro irmão estariam procurando por outro lado. Se os Margny pudessem evitar a divulgação do que pensavam ter sucedido, não hesitariam em matá-lo.
— Sabia que eras tu — disse André. — Mas desta vez enganaste-te, Rudger.
Kitty levantou-se de um salto, apertando a manta.
— Tu é que estás enganado, André gritou correndo para o irmão. — Duncan nem sequer me tocou. Surpreendeu-nos a tormenta quando... André, sem deixar de apontar ao peito do jogador, moveu a mão esquerda e deu de revés em Catherine em cheio na boca, com tal violência que a fez cair no chão.
Duncan apertou os punhos e os seus olhos pardos adquiriram a tonalidade granítica.
— Se não fosses seu irmão — murmurou sereno — matava-te por isto. Por isto, e pelo que estás pensando.
— Suponho que o farias — replicou André com um amargo sarcasmo, -- porque como todos os que se dedicam a roubar a honra dos outros, és muito hábil no uso de qualquer arma. Mas, ainda que não me possa comparar contigo, não falharei a esta distância, e és tu quem vai morrer.
Avançou uns passos e deu na irmã um pontapé nada suave com a biqueira da bota.
— Levanta-te, perdida — disse. -- Quantas vezes aconteceu isto?
Catherine, de um salto, pôs-se de pé, com os olhos chamejantes.
— Não sucedeu nada — gritou. — Nada do que estás a pensar. Mas és demasiado cretino e miserável para acreditar na decência e cavalheirismo dos demais.
André recuou até à cadeira onde estavam as suas roupas e agarrou-as com um safanão e lançou-lhas à cara.
— Veste-te — ordenou secamente. — És uma embusteira sem honra nem vergonha, mas não podes sair daqui como estás, porque toda a vergonha do teu ato cairia sobre o nosso nome. E quanto a ti acrescentou, cravando os seus enraivecidos olhos no jogador, — vais pagar caro o teu atrevimento. Um preço muito mais elevado do que te teriam pedido em casa de Madame Cloutier, ainda que duvide que tenhas recebido muito mais. Vamos!
Duncan não tinha a menor dúvida sobre os propósitos do irmão mais velho de Kitty. Por sua parte teria mostrado com toda a clareza as suas intensões, mas estava completamente desarmado e não podia tentar nada de momento. Sem dúvida tinha que o fazer.
Quando saíssem para o jardim, André crivá-lo-ia de chumbo. Estava certo disso.
Etienne continuava na porta, olhando tudo com olhos espantados. Tinha na mão uma pistola inglesa de dois canos, mas do modo pouco firme como a empunhava, se via que não tinha nenhum propósito de utilizá-la.
O jogador moveu-se para ele procurando não fitá-lo nem dar a menor impressão de se apressar. Ainda que as escassas possibilidades de salvação estivessem no jovem, não atuaria até estar a seu lado. Se pudesse apoderar-se daquela pistola...
Neste momento ajudou-o o domínio dos nervos adquirido nas mesas de jogo, já que se André percebesse os seus propósitos, não vacilaria em disparar pelas costas.
Mas estava a uns quatro passos de Etienne quando este recuou para lhe dar passagem, afastando-se para o lado.
Com os músculos tensos e os nervos a ponto de estalarem, Duncan sofreu um estremecimento que lhe percorreu toda a espinha e o deixou banhado em suor frio. Estava-se desvanecendo a sua derradeira esperança.
Ao sair, encontrou-se a dois passos de distância do jovem Marigny, e este ainda lhe apontava a pistola de dois canos. Não vacilou. Se tinha de morrer, ao menos que fosse a lutar. Mas nunca como uma rês que levam para o matadouro.

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