domingo, 13 de novembro de 2016

CLF074. CAP IV. Tanta fealdade

Ao descer do carro das provisões, onde fizera a última etapa da sua viagem, cansado e alagado em suor e coberto de pó, Duncan Rudger estava moído de dar tombos, pelo que os indígenas chamavam pradaria e a ele mais parecera um enorme deserto. Sentiu-se feliz de ter chegado ao que pomposamente chamavam Forte Wallace, e que na realidade não passava de um aglomerado de sujas cabanas, rodeadas por tosca paliçada de troncos mal tratados e por desbastar.
Apressadamente, dirigiu-se para um alpendre de madeira em frente de uma loja e que era sustentado por alguns postes de madeira. Não é que ali estivesse mais fresco, mas pelo menos, estava a coberto dos ardentes raios solares.
Deteve-se ali, com um suspiro de alívio, e espantando algumas moscas com uma sapatada, contemplou o seu fato todo enrugado e coberto de pó.
Estava abatido, e isto não contribuía para levantar o seu estado moral, especialmente, ao contemplar o deplorável conjunto de baixas cabanas e choças de tábuas, que dentro e fora da paliçada formavam o que se chamava Forte Wallace. Jamais tinha visto tamanho desamparo, tanto primitivismo e tanta fealdade!
Nos palanques, viam-se cavalos fracos, cobertos de pó e, igualmente, pareciam andrajosos os homens que vagueavam a vista, prodigiosamente cobertos de cabelos e mascando tabaco sem cessar.
Todos aqueles homens o olhavam de um modo descarado, fixo e sem a menor dissimulação.
Um tipo muito alto e delgado, de compridas pernas, levou a sua desfaçatez ao ponto de se aproximar até poucas jardas, apoiando--se num dos postes que sustinham o alpendre, contemplando-o de cima abaixo.
Rudger sentiu-se aborrecido. Inevitavelmente a viagem de carro não tinha contribuído para melhorar o seu aspeto, mas de todos os modos, o daquele sujeito, era muito pior. Umas enormes botas com esporas, um pesado revólver sobre a perna, tão baixo como nunca tinha visto, talvez porque o cinturão repleto de balas era demasiado grande; uma suja camisa de flanela azul, e um amplo chapéu que caracterizava os homens daquela região. Todo ele coberto de pó.
Aborrecido, ainda mais, por esta observação descarada, de que estava ser alvo, Rudger deitou o chapéu agressivamente para trás e enfrentou decididamente o agreste indivíduo.
Este era jovem, certamente tinha menos de trinta anos, e ao contrário do que parecia mais corrente, a sua fraca cara aparecia completamente barbeada e de tez bronzeada pela ação do sol, e um par de olhos claros, intensamente azuis, brilhavam formando curioso contraste.
— Quer que dê a volta, «monsieur», para que possa contemplar-me melhor? — perguntou asperamente.
Os olhos azul pálido do outro interromperam a minuciosa inspeção sobre o vestuário afrancesado de Duncan, e os olhares dos dois homens encontraram-se. Um momento depois, o rosto bronzeado do homem da fronteira iluminou-se, e mostrou a sua magnífica dentadura num amplo sorriso.
— Agradecia-lhe muito, «M'siú» disse de forma desconcertante, com voz lenta e arrastada, imitando grotescamente o «monsieur» de Rudger.
Não havia agressividade ou troça no tom nem na expressão do desconhecido, o qual, com a sua inesperada resposta deixou desconcertado o jogador.
— Porque me olha dessa maneira? — perguntou por fim, menos agressivo.
— Não é a você, mas sim ao seu trajo — replicou o outro calmamente. — Não há por aqui nada que se lhe compare.
Duncan encontrou-se mais desconcertado do que nunca.
— Sim! — grunhiu, porque na realidade não sabia o que dizer.
— Você e eu somos pouco mais ou menos da mesma estatura continuou o outro com a sua voz arrastada e calma, — e se quisesse vender-me o seu fato ou ao menos emprestar--mo, a fim de amanhã assistir ao baile do batalhão, estou certo de que Abby não deixaria de dizer-me sim desta vez. Diabos! Creio que ao ver-me, caía de costas.
Duncan olhou o calmeirão com mais receio ainda, mas apesar de toda a sua desconfiança, não conseguiu descobrir a mais leve indicação de que estivesse troçando dele.
— De acordo -- disse, todavia ainda receoso. — Vendo-lho.
Os olhos azuis pareceram dilatar-se, e o brilho deles refletiam uma satisfação e júbilo completamente infantis.
— Quanto? — perguntou ao mesmo tempo que metia a mão no bolso, donde tirou um pequeno maço de notas.
Com a sua perícia de jogador, Duncan calculou, numa pequena olhadela, o dinheiro que poderia ter, e disse uma quantia um pouco superior.
Viu como a alegria saía dos olhos azuis.
— Pois... tanto? — murmurou o calmeirão.
— Não tem o suficiente?
— Não.
Duncan pareceu refletir durante uns momentos, se bem que fosse pura comédia, pois já tinha traçado completamente o seu plano de ação.
— Chamo-me Duncan Rudger — disse. — E você como se chama?
— Travis Cameron.
— Pois bem, «monsieur» Cameron; talvez haja outra forma de fazermos negócio.
Os olhos claros de Travis olharam-no com novo interesse e esperança.
— Qual?
— Quero alistar-me em... «Os Exploradores de Forsyth». Creio que é assim que se chamam. Pode você ajudar-me a consegui-lo?
Travis Cameron abriu a boca e os olhos com assombro.
— Tenho uma carta para o comandante Forsyth, e julgo que me admitirá — continuou Duncan, — mas não queria dar-lhe a impressão de que sou um novato inútil. Compreende a minha ideia? Desejaria apresentar-me a ele com a roupa própria e o equipamento necessário, assim como que tendo uma ideia do que me espera. Em troca da sua ajuda, ofereço--lhe o meu fato. Que me diz?
Cameron recostou-se no poste e puxando por uma bolsa de tabaco, ofereceu-a ao forasteiro, antes de habilmente fazer o seu cigarro.
— Creio que prefiro ficar sem o fato — disse, por fim. — Quando mato um homem, gosto de o fazer de frente e dando-lhe uma oportunidade.
Rudger olhou-o sem compreender.
— Sabe o que duraria você nos voluntários? — perguntou Cameron, ao mesmo tempo que fazia um gesto e dava um estalinho com os dedos de forma expressiva.
— Ainda que assim fosse, não seria sua a culpa. Não lhe peço que me ajude a alistar--me, mas sim, a adquirir as coisas que me são úteis. Qualquer comerciante se poria imediatamente à minha disposição, mas temo que me fizesse comprar mais coisas do que preciso, e ainda estou certo de que me cobraria tudo como do melhor, embora não o fosse. Já vê que não tem que sentir escrúpulos.
Travis sacudiu a cabeça, mas cedeu.
— De acordo — disse. — Tem dinheiro?
— Não se preocupe com isso.
— Muito bem. Começamos agora?
— Porquê, esperar?
Estava-se só a meio da manhã, pelo que havia tempo para tudo. Cameron guiou Duncan aos lugares adequados, onde comprou uma pele de anta, um amplo chapéu, botas com enormes esporas, um fuzil «Sharp» de sete tiros, e um enorme revólver «Colt» do máximo calibre, com coldre e respetivo cinturão.
Ao cingir o cinturão, Duncan notou que este estava muito largo. Pelos vistos era a razão por que toda a gente levava a arma caída de lado. Só faziam cinturões para homens gordos.
«De qualquer modo pensou — um sapateiro pode arranjá-lo».
— Aperte-o um par de furos mais largo. Assim, o revólver está muito alto e se tivesse necessidade de sacá-lo rapidamente perderia um tempo precioso.
Duncan olhou com assombro o seu companheiro. Estava-lhe dizendo que alargasse ainda mais o cinturão? Olhou-o incrédulo.
— Sim, mais baixo — insistiu Cameron. — Essas correias deve atá-las aos músculos das pernas, e já vê, como o tem posto agora, não é possível fazê-lo.
Em silêncio, Duncan fez o que lhe diziam.
— Espero que, pelo menos, saberá disparar — grunhiu Travis.
Abandonaram o armazém, mas as surpresas ainda não tinham terminado para Rudger. Considerava-se um cavaleiro excelente e estava certo de reconhecer um puro-sangue ao primeiro golpe de vista. Por outro lado, tinha lido e ouvido inúmeros relatos sobre os corcéis da pradaria; mas no curral onde Cameron o levou, só havia cavalos fracos e vencidos, todos desferrados, marcados nas ancas e nas patas com caprichosos enfeites alfabéticos, e tão ignorantes da água e sabão, como a maioria dos homens da fronteira, que tinha visto até ali.
Cameron sem dúvida, pareceu considerar aqueles cavalos como normais. Meneou a cabeça quando Duncan escolheu o de melhor aspeto: um alazão tostado.
— Que defeito tem? — perguntou Rudger cada vez mais desgostoso.
— Veja-lhe os cascos.
Escolheu outro, com o mesmo resultado e, ainda um terceiro.
— Muito bem — resmungou, contendo dificilmente o seu mau humor quando Cameron lhe fez ver o defeito do último dos cavalos, que ele considerava o mais aceitável entre a meia centena que havia no curral. — Porque não o escolhe você mesmo?
Travis devia já tê-lo feito, pois, sem a menor vacilação, se dirigiu a um baio que estava ao fundo e deu-lhe umas palmadas.
— Este — disse.
O animal não era nenhuma estampa, nem tão-pouco parecia prometer muito.
Duncan abria já a boca para protestar, quando se fixou no gesto de desgosto do dono do curral.
— De acordo. Quanto?
— Cento e cinquenta dólares — grunhiu o dono. — Leva um bom cavalo, amigo!
Mas Cameron não se mostrou de acordo com o preço, até que, finalmente, foram incluídos a sela e as rédeas.
— Se vai permanecer muito tempo por aqui, não traga mais ninguém a comprar-me cavalos.
— Pensarei nisso — replicou Travis
— Agora, alojamento e comida — disse o seu companheiro, depois de saírem do curral.
                                                                              *
Duncan não tinha querido ir ao baile, mas Travis insistiu de tal maneira que não teve outro remédio senão aceitar. E com as suas botas, traje de pele, grossa camisa de flanela e revólver no cinto, acompanhou o elegante Cameron até ao enorme barracão donde brotava luz por todos os seus buracos e rendilhados, assim como um enorme bulício.
Apenas acabavam de entrar quando se ouviu um enorme alarido e caiu-lhes em cima um grupo de homens que riam ruidosamente.
— Abby, Abby! Anda cá — começaram a gritar. — Travis vem casar-se.
Abrindo caminho entre aqueles homens toscos e ruidosos, apareceu uma linda rapariga morena, de roliças curvas e formas, que ficou parada a olhar com assombro para o elegante Cameron.
— Tray! — exclamou.
Duncan recordou-se então do que lhe dissera o seu amigo ao pedir-lhe o seu traje, e pareceu-lhe efetivamente, que a jovem Ia cair de costas. Mas em lugar disso, lançou-se nos seus braços com um grito, beijando-o na presença de toda aquela gente, que rompeu em gritos e aplausos.
Quando por fim cessou todo aquele ensurdecedor alarido, o suficiente para que se pudesse ouvir alguma coisa dita em berros, Duncan Rudger teve outra surpresa ao ouvir Travis pedir naquele mesmo tom, à jovem, que casasse com ele.
— Mas... Claro! — disse ela. — Como vo eu negar-me? Em toda fronteira não haver outro noivo tão atraente e elegante como t-t
Novos gritos e aplausos, até que de repente como um terramoto, começaram a dar palma e a bater com os pés, seguindo o ritmo qu marcava um violino e uma concertina.
De súbito, Duncan sentiu-se agarrado pelos ombros e obrigado a dar uma volta.
— És um cavalheiro --- gritou alguém, antes que pudesse protestar. — Os cavalheiros para aquele lado; as damas para este. Escolham os pares para a valsa.
Houve grande movimento de um lado par: o outro, em preparação. Os homens faziam vénias a uns e a outros, brincando, troçando dos formalismos dos bailes, ofereciam o braço ou aceitavam com divertida timidez.
Rudger ficou atordoado, sem saber o que fazer, até que Travis veio em seu auxílio con Abby, de braço dado.
— Vamos, ponha-se deste lado — gritou deixando a jovem e levando-o para a frente
— Porquê? — perguntou Duncan, sem perceber nada daquilo.
— Somos cavalheiros. As damas são todos aqueles que têm um remendo nas calças.
Como em todas as reuniões da sociedade, Rudger comprovou que ali também se encontrava o sexo fraco em minoria. Ainda que, verdadeiras mulheres, nem sequer meia dúzia houvesse.
Toda gente dançava vigorosamente, pisando a saltando com toda a sua alma. Tornava-se fatigante e surpreendente, mas Duncan acabou por se divertir apesar da «dama» que lhe coube em sorte, ser um sujeito corpulento e barbudo que cheirava a suor e a «whisky».
A buliçosa e sã alegria que ali reinava, contagiou-o. Vendo Travis e Abby girar loucamente, rindo e olhando-se nos olhos, Duncan surpreendeu-se, com dolorosa nostalgia, a lembrar-se de Kitty. Estava certo de que ela, apesar do luxo e preconceitos sociais de que estava rodeada desde o seu nascimento, teria desfrutado ali, um certo bem-estar, tanto ou mais como o que estava experimentando a jovem e morena noiva de Travis.
Era curioso, que de tantas mulheres a quem tinha feito namoro, apenas se recordasse de Kitty. Ainda que, pensando nisso, dava conta que de todas as que tinha conhecido, só ela era suficientemente jovem, alegre e simples, para se destacar entre aquela gente humilde da fronteira.
Os pares eram ruidosos, de bom humor e dados a troças pesadas. Nem sequer faltava o «mau» que passeava de um lado para o outro, com o cinto cheio de armas. Mas ninguém lhe ligava importância.
Numa das raras pausas feitas pelo violino e concertina, que faziam parar os pares, para tomarem um trago, e quando Rudger se aproximava de urna espécie de balcão, feito com urna comprida mesa, junto do qual, Cameron gritava, agitando urna garrafa de «whisky», viu como um desses «maus» lhe dava deliberadamente um empurrão, e o olhava fixamente.
Duncan parou alarmado, perguntando a si próprio o que ia acontecer então, pois tinha lido alguns relatos sobre a facilidade com que se matavam os homens da fronteira a troco de qualquer ninharia.
Travis, que tinha um cigarro ao canto da boca e os fósforos na mão, pelos vistos, disposto a acendê-lo, inesperadamente despejou o «whisky» por cima do valentão e, sem a menor pressa ou emoção, sempre com o mesmo sorriso nos lábios, acendeu o fósforo pegando o fogo ao «whisky» derramado.
Ora, o «whisky» não é mais do que álcool, de modo que as roupas do indivíduo começaram a arder imediatamente.
— Cuidado! Um homem a arder! — gritou Travis. — Apagai essas chamas! Apagai!
Os homens não só acudiram ao grito de Travis com regozijo, como apagaram o fogo com muito mais violência do que a necessária, expulsando do barracão o quezilento indivíduo que não voltou a ser visto.

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