sábado, 12 de novembro de 2016

CLF074. CAP III. Duelo e fuga a Nova Orleans

Duncan saltou como um gato. Rápido, sem ter feito o menor gesto ou movimento que denunciasse a sua intenção até ao momento em que se lançou felinamente contra o desprevenido Etienne, que estava muito longe de supor o que se passava na mente de Duncan.
O jovem sofreu um sobressalto, mas antes que se desse conta do sucedido, e, que além disso, tinha uma arma na mão, já Rudger o alcançara com um soco nos queixos, desviando-o e prostrando-o no chão, de bruços, ao mesmo tempo que arrancava a arma da mão do seu agressor.
Sem se preocupar mais com Etienne, Duncan girou rapidamente ao mesmo tempo que volteava a arma para a empunhar devidamente, no momento exato em que André, de «Colt» em ação, saía a correr, em socorro do irmão.
Com a precipitada angústia de quem sabe que um segundo pode ser a diferença entre a vida e a morte, e, sem perda de tempo para apontar, Duncan disparou sobre André, que atingido, girou como um peão e em seguida se estatelou no chão, como um saco.
No meio dos disparos, o jogador ouviu um grito que saía do interior da casa, e pouco depois viu aparecer Catherine.
Ela olhou-o por momentos com pavor e, soluçando, caiu de joelhos junto do irmão.
Como uma enorme pedra, caiu sobre Duncan a certeza de a ter perdido. Vivesse ou não André, ao disparar contra ele tinha posto um ponto final nas suas tão pouco fáceis relações com Kitty, que de futuro, seriam impossíveis.
Com os braços caídos, e a cabeça inclinada para o peito, dirigiu-se para o curral, onde ficara recolhido o seu cavalo. Ninguém tentou impedir a sua fuga. Os dois irmãos debruçados sobre o irmão mais velho, tentavam reanimá-lo. Assim os viu Rudger, já, sobre a sela, voltando a cabeça para eles, ao mesmo tempo que esporeando o cavalo, se afastava em direção de Nova Orleans.
Deixando-se levar pelos nervos, o único gesto de protesto que fez, foi lançar para longe a pistola que empunhava.
Compreendia que permanecer em Nova Orleans, seria já completamente impossível. Teria que fugir como um criminoso, pois o dinheiro dos Marigny era uma força muito poderosa, e se isso não bastasse, o juiz Tempest, um político, que ditava as leis do Estado e cujas decisões na Câmara ninguém se atrevia a desafiar, era íntimo amigo dos Marigny.
Para mais, tinha que contar com René, seu filho, que o influenciaria quanto possível para ver destroçado o seu rival. Por outro lado, pensou na sua reputação, que não o ajudava nada.
Armas, cartas e mulheres. Eram estes os três elementos principais da vida de Duncan Rudger. As três coisas que lhe haviam proporcionado êxitos, mas que lhe haviam criado uma reputação, se bem que nunca o houvessem preocupado, como é frequente nos jovens, mas que de futuro teriam imensa influência na opinião pública se se deixasse apanhar nas engrenagens da Lei, que o juiz Tempest representava.
Com o rosto sério e pensativo, atravessou a névoa que se levantara nas margens do rio. A sua cara, impassível, parecia de gelo, perfeitamente controlável como uma mesa de jogo; mas também podia perder a rigidez e aparecer cálida e encantadora, com os olhos pardos, alegres e um sorriso brilhante. As suas maneiras eram agradáveis e a sua educação bastante esmerada; de modo que muitos homens e mulheres estariam dispostos a perdoar-lhe os seus erros. Porém, desta vez, compreendia que não podia confiar nisso.
Enquanto conduzia o seu cavalo a trote, até à cidade, a névoa começou a dissipar-se, permitindo-lhe distinguir as ruas e as casas. Toda a sua vida tinha decorrido ali, os seus antepassados tinham chegado a Nova Orleans com Bienville, numa época em que a sua família chegou a ser rica, até que seu pai se arruinou com o pânico bancário de 37, quando ele acabava de nascer.
Desde o primeiro momento teve, pois, contra si, o pertencer a uma família distinta mas que não tinha um centavo, e que subsistia graças Unicamente à pensão de sua mãe.
Tinha somente dezassete anos quando ela morreu, mas já então, era suficientemente orgulhoso para não viver da quase caridade, com uma família que só sentia desprezo pela memória do autor dos seus dias, e que não o recordavam a não ser para o escarnecer.
Soube defender-se bem na existência alegre, irresponsável e dedicada ao jogo de um jovem da moda. O vício, a libertinagem e as mulheres, constituíam para ele as únicas coisas importantes. Mas nada disto, nem sequer a recordação da deliciosa e doce Catherine, o impedia de considerar a situação com um frio realismo. Toda a família Marigny e o próprio juiz Tempest eram agora seus inimigos mortais. A polícia e a justiça estavam ao serviço dos poderosos. Pensava que Nova Orleans era a mais agradável das cidades e compreendia com tristeza que tinha de a abandonar.
Nem sequer podia voltar ao seu apartamento. Era muito possível que algum dos Marigny ali estivesse à sua espera, e preferiu não correr esse risco. Afortunadamente, levava sempre consigo grandes quantidades de dinheiro, como a maioria dos jogadores e, naquela ocasião, havia a acrescentar os quinhentos dólares que ganhara na tonta aposta a que o arrastara René Tempest, mas mesmo assim, não seria fácil escapar.
A forma de o fazer era o que mais o preocupava de momento. Sabia que os seus inimigos não desprezariam meios nem dinheiro para se vingarem, e que o fio telegráfico levaria a ordem de prisão muito mais rapidamente do que ele poderia deslocar-se, ainda que fosse a cavalo, de diligência ou por via fluvial.
Foi ao lembrar-se do barco como meio de transporte que se recordou do capitão Wilson, e, imediatamente as suas esperanças renasceram.
Entretanto, chegara a Nova Orleans onde foi devolver o cavalo ao estábulo que o alugara.
Ainda não havia dado meia dúzia de passos, quando deu de caras com René Tempest.
— Pensei que ao saíres do «Carraud» irias ao estábulo mais próximo e não me enganei — disse simplesmente, por cumprimento.
Duncan olhou-o com surpresa. Estava certo de que os Marigny não lhe tinham participado a escapadela com Kitty, mas não encontrava outra explicação para a presença do jovem ali, esperando-o, sem dúvida, durante toda a noite, a julgar pelo seu aspeto.
— E posso saber porque me procuras? — perguntou friamente.
— Para te matar replicou René.
Duncan fez uma careta e sorriu.
— É uma mania que mais ou menos sempre tens tido observou. — Porque te deram tão de repente essas pressas?
À claridade cinzenta daquele amanhecer, Duncan viu perfeitamente como escureciam os olhos do jovem.
— Sabe-lo bem grunhiu Tempest.
-- Se o soubesse, não to perguntaria.
— Não vou dar-te explicações, Duncan. Tenho ali o carro, esperando. Não percamos mais tempo. Os Marigny estão procurando-te e podem aparecer de um momento para o outro.
De modo que René já o sabia. Não podia compreender como, mas sabia. Fez um gesto de resignação e impaciência.
-- E que pensas fazer?
— Já te disse. Matar-te!
— Muito dramático, como sempre. Queres matar-me. Mas de que modo? Estou desarmado.
— Jacques Fabre espera no outro carro, e trouxemos as pistolas de meu pai.
— Um duelo?
— Estás um pouco fraco de compreensão esta manhã. Um duelo, com efeito.
— Tudo me parece ridículo. Ao desafiares--me para um duelo, com toda a cerimónia própria destes casos, era coisa da época dos nossos pais. Isso já não se usa. Não sei porque me hei-de prestar a essa fantochada, que te tem obcecado desde não sei quando, e sem que da minha parte houvesse qualquer provocação.
Tempest ficou a olhá-lo, muito sério.
— Não tem porquê — disse claramente. — Nem porque aguentar isto, tão-pouco... — e ato contínuo, deu-lhe uma bofetada.
Duncan crispou os punhos, mas o seu rosto manteve-se frio e sereno.
— Muito bem, René — disse pausadamente. - Acabas de me convencer.
— Vamos?
— Quando o queiras.
Encaminharam-se para o local onde os dois caros estacionavam.
*
Fazia frio, mas Duncan até àquele momento ainda o não havia sentido. O nevoeiro parecia ali mais espesso e tudo carecia de claridade, como as figuras de uma paisagem de sonho.
O jogador aceitou a pistola que lhe dava Jacques Fabre e experimentou-a, estudando-a com atenção.
— Uma boa peça — admitiu. — Atirará bem?
— Evitarei atirar-te à cabeça, para que as tuas admiradoras possam dar-te o beijo de despedida sem sentir horror disse Tempest com os dentes cerrados, demonstrando, assim, o rancor que o consumia.
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— Obrigado! — disse Duncan, secamente. Seguidamente, dirigiu-se com lentidão para o lugar marcado.
— Vocês conhecem as condições, cavalheiros disse Fabre bastante nervoso e assustado, para não citar o ridículo da tragédia de toda aquela cerimónia. Ao contar até três, dispararão um só tiro. Se nenhum ficar ferido, podem voltar a carregar as pistolas e disparar de novo, ou seguem o caminho mais razoável, considerando-se satisfeitos. Estão prontos, cavalheiros?
— Sim! — disse René. — Sim! — repetiu.
— Sim! — concordou Duncan, com serenidade e sangue-frio.
— Um! — gritou Fabre.
Os dois duelistas levantaram as suas pisto-lhas, apontando cuidadosamente.
Duncan apontou alto ao ombro direito do seu inimigo. Não tinha nenhum desejo de o matar, mas conhecia a determinação de René, não podia disparar para o ar nem feri-lo demasiado leve. Se um disparo não bastasse, o jovem Tempest não pararia até acabar com ele ou ficar fora de combate.
— Dois!
Os dois engatilharam as suas armas que produziram um seco ruído perfeitamente audível no meio do silêncio que se seguiu, à voz' do juiz do duelo.
— Tr...! — começou Fabre, mas o resto da palavra foi abafada pelo ruído das detonações.
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Empurrado pela bala, René fez um estranho e violento giro, deu uns passos vacilantes, e caiu de bruços, sustendo-se com o braço esquerdo.
Com uma exclamação, Jacques Fabre correu para o ferido, inclinando-se sobre ele.
Rudger também se aproximou, embora mais lentamente.
— Como está? — perguntou.
O juiz do duelo levantou a cabeça e volveu para ele a sua cara pálida como a de um morto.
— Agradeço-lhe que não tenha atirado a matar — disse. — Foi muito generoso, de contrário, ter-me-ia arranjado uma situação deveras difícil.
— Porque se prestou então a esta fantochada? — ripostou Duncan.
— Não podia negar-me. Devia a... Mas isto não faz sentido. Deve escapar a toda a pressa. Leve o meu carro e parta. Eu ocupar-me-ei de René.
Duncan concordou em silêncio, e voltando para junto dos coches, deixou a pistola no carro de Tempest, antes de subir para o outro.
— Para a cidade — ordenou ao cocheiro.
Endireitou as bandas da jaqueta preta que tinha voltado para não oferecer a René a brancura da sua camisa como alvo, e recostou-se no assento.
Agora o juiz Tempest não precisava que os Marigny o instigassem nem tão-pouco a pressão do filho. Quando soubesse cio ocorrido, lançaria atrás dele toda a polícia de Nova Orleans, e se caísse em seu poder, acabaria irremediavelmente por ser enforcado.
Os seus pensamentos foram fazendo o resumo da causa da sua incómoda situação e criticou-se por não ter acabado aquela aventura há mais tempo. Na verdade, Kitty era muito bonita; sempre o tinha dito. Perigosamente bonita. Mas até ao extremo de que merecesse a pena converter-se num proscrito, e para mais a troco, realmente, de nada... Ele, um homem experimentado, tinha-se portado como um estúpido colegial.
— Pára aqui! -- disse ao cocheiro, ao dar conta de que já tinha entrado na cidade.
Saltou do carro despedindo-se com um gesto, e tão rápido o perdeu de vista, dirigiu-se para as docas, a pé. Era uma caminhada comprida, mas se tomava um carro, a polícia não tardaria em averiguá-lo, e conhecer o meio que tinha empregado para escapar, sendo-lhes fácil localizá-lo, desse modo.
Atravessou em passos ligeiros uma série de ruas mal pavimentadas. A água caída na noite anterior tinha-as convertido num lamaçal. Ao passar por uma, o cheiro daquelas ruas porcas chegou-lhe ao nariz. Ao voltar a cabeça, viu um cão morto pelo menos há três dias.
Não se surpreendeu, pois já estava acostumado. O sol ía alto e a neblina da manhã já se havia desvanecido. As ruas eram estreitas que mais pareciam carreiros, e ia sendo pior conforme avançava para a parte baixa da cidade. Aqui e ali havia enormes buracos.
As casas chegavam até à, beira da rua, e careciam de umbrais, e até de qualquer forma de fachada. Não obstante, já muitas delas tinham janelas corridas que sobressaíam do alto, chamadas galerias, ricamente adornadas com ferros forjados. Podia-se passar facilmente da intimidade da vivenda para o bulício da rua.
Finalmente, chegou lá abaixo, e dali passou aos molhes. O barulho e a animação neles era extraordinária, mas foi-lhe fácil distinguir entre os cargueiros de negras chaminés, um barco de pás, o qual estava pronto a sair, a julgar pela quantidade de fumo que lançava.
Era o «Sea Gull» e ao verificá-lo, sentiu um grande alívio, ainda que fosse de curta duração, pois que imediatamente se lembrou de que algum dos Marigny estaria à, sua espera. A sua amizade com o capitão Wilson era bastante conhecida, e por outra parte, era bastante lógico acreditarem que tentasse escapar com a jovem, e para isso nenhum meio melhor do que o barco.
Havia muita gente no cais despedindo-se dos que partiam, o que tornava difícil localizar alguém determinado, pelo que não se quis arriscar. De todos os modos, ali tinha que haver alguém conhecido, e se o viam subir para o «Sea Guil», haveria um destacamento da polícia onde o barco fizesse a próxima escala.
O problema estava em como embarcar sem ser notado. E tinha que o fazer quanto antes, pois o barco estava a ponto de largar.
Todo o mundo, passageiros, amigos e familiares dos que partiam, simples curiosos e inclusive, boa parte da tripulação, gritava, movia-se ou formava grupos junto ao cais e, compreendendo que dificilmente haveria alguém do outro lado, Duncan decidiu tentar a sua sorte.
Meio dólar bastou para que um carregador negro o levasse por entre os barcos atracados ou esperando vez, até ao costado do «Sea Gull».
Um oficial estava gritando para que se afastassem as embarcações que rodeavam o vapor.
Duncan notou com toda a clareza como se erguia subitamente, e no mesmo instante lhe fazia sinais para se aproximar. Quase imediatamente, inclinou-se, lançando-lhe um cabo.
Com a ajuda da corda, encontrou-se rapidamente na coberta.
— Vem só? — perguntou o oficial.
Duncan conhecia-o muito bem, pois era o segundo-oficial de bordo, mas nem sequer viu a mão que se lhe oferecia, completamente desconcertado pela pergunta. É que aquele também já conhecia a sua aventura com Catherine Marigny?
— Sim — respondeu, simplesmente.
-- Venha comigo.
Levou-o rapidamente para a coberta superior, tendo o evidente cuidado de o conduzir por onde não havia pessoas, e fê-lo entrar na câmara do capitão.
— Faça o favor de esperar aqui — disse. — O capitão virá imediatamente. Não saia nem chegue à porta, nem se deixe ver, poderia alguém conhecê-lo.
Ao ficar só, Rudger moveu-se impaciente pela pequena câmara. Se era do domínio público que tinha passado a noite com Kitty, a reputação da jovem estava completamente destroçada.
Assim, bastou-lhe um momento de reflexão para ver que deste modo não resolveria nada em ficar. Se André Marigny tivesse morrido ou sucumbisse ao ferimento — e a forma corno o vira cair fazia-lhe prever o pior — nem sequer poderia oferecer o seu nome como única reparação possível, e a forca premiaria um gesto tão inútil como imbecil, pois Duncan estava seguro de que os Marigny jamais o aceitariam de forma alguma.
Os seus negros pensamentos foram interrompidos pela entrada na pequena câmara de um homem que pareceu enchê-la com o seu corpo.
— Duncan! -- exclamou com a sua grossa voz. Maldito rapaz! Em que raio de enredos te meteste agora?
Apesar dos seus pensamentos, o jovem não foi capaz de deixar de sorrir.
— Nova Orleans pôs-se demasiado quente para mim — disse. — Tenho que ir-me embora. E de modo que ninguém saiba como, nem para onde.
— Sim. Já imaginava alguma coisa assim. Marigny esteve aqui com um dos seus filhos e tive que dar-lhe a minha palavra de honra de que não estavas a bordo. Não sei se me acreditou ou não, mas deixou o rapaz junto ã passarela. Ainda ali está agora.
— Parece que tive uma grande ideia em entrar pela porta de trás. — resmungou Duncan Rudger.
— Muito acertada, por certo. Alguém te viu subir?
— Que eu saiba, não.
— Até onde queres ir?
— O mais longe que me possas levar. Dei um tiro no jovem Tempest, e não creio que o pai me agradeça.
— Já me admirava que só fugisses desses cães aduladores dos Marigny. Têm muito dinheiro, mas pouco mais. Com exceção da filha, claro. Ela, sim, é alguém. Por certo, que ao ver o pai, julguei que tinhas tido o sentido suficiente para a levar.
Rudger preferiu não falar naquilo.
-- Até onde me poderás levar, Wilson? — perguntou.
O capitão olhou-o, deu um grunhido e encolheu os ombros.
— Até Kansas City. Convém-te?
-- Serve! Nem esperava ser tão afortunado.
— Afortunado? É um corno! Kansas é um inferno. As matanças feitas por esse carniceiro de Chivington, pôs em pé de guerra todos os Cheyennes, que desde há três anos correm toda a fronteira em loucas andanças.
— Recordo-me de ter lido alguma coisa sobre esse tal Chivington, mas muito vagamente.
— Um maldito cão raivoso, coronel do 2.° de Cavalaria do Colorado, durante a Guerra da Secessão, e pregador metodista na vida civil. Em Novembro de 64, atacou a aldeia cheyenne de Moketavata, que se tinha mostrado sempre amigo do homem branco. Foi uma matança onde morreram quase trezentos índios, mulheres e crianças, nuns dois terços. As atrocidades cometidas por Chivington e os seus homens, não têm nada a invejar às cometidas pelos selvagens. Entre outras coisas ouvi contar o seguinte...
Fez uma pausa para se lembrar, antes de acrescentar:
— Segundo testemunha o comandante Anthony, entre outras cenas vergonhosas, teve lugar a seguinte: Viu sair de uma cabana um pequenino índio que não teria mais de três anos e que, chorando, ia seguir o caminho, inteiramente nu e com passitos vacilantes, porque tinham fugido os seus. Era um espetáculo capaz de comover até um lobo, mas não inspirou a menor compaixão aos soldados que se dedicavam a saquear a aldeia. Um deles disparou contra o diminuto fugitivo sem lhe acertar. Depois outro fez o mesmo, com o mesmo resultado, até que um terceiro, fazendo mofa da má pontaria dos seus companheiros lhe acertou. A inocente criatura caiu moribunda.
— Mal posso acreditar — murmurou Duncan, boquiaberto.
— Todavia, os Cheyennes não nos perdoaram aquilo, e tem-nos custado muito sangue. Uma infinidade de homens, mulheres e crianças estão pagando com as suas vidas aquela inclassificável matança.
— E Chivington?
— O Governo repudiou-o, depois de examinar aquela ação, indemnizando, no ano seguinte a tribo de Moketavata, Brack Kette (Caldeira Negra) em inglês. Segundo determinou a comissão examinadora, esse ato apenas teve rival comparado com as atrocidades cometidas depois pelos índios. Mulheres fugitivas, levando as mãos ao céu pedindo compaixão, crianças indefesas, foram assassinadas, e depois entre francas gargalhadas, foram escalpela dos, fora mutilados homens, a tal ponto, que os selvagens do interior da Africa, teriam corado de vergonha.
— Creio que não respondeu à minha pergunta. Será que esse Chivington não foi castigado pelo seu crime?
— Não. Regressou a Ohio ao terminar a guerra civil, fundou um jornal e, há pouco tempo, apresentou-se às eleições como deputado; mas a Oposição fez vir a lume o seu maligno proceder contra os Cheyennes e teve que retirar a sua candidatura, coberto ridículo. Não se voltou a saber mais nada a seu respeito.
— Incrível.
— De todos os modos, não te vai mal que as coisas estejam mexidas na fronteira. O juiz Tempest tem o braço comprido e é possível que chegue até ao mais afastado recanto da nação.
— Sim, é verdade. Mas se as coisas estão tão mal, talvez ninguém pense numa reclamação feita de tão longe.
O barbudo capitão Wilson grunhiu.
— Conheço o capitão George A. Forsyth —disse — e sei que está formando um batalhão de voluntários para combater os índios. Talvez fosse conveniente afastares-te durante algum tempo do mundo civilizado. Para mais, não creio que te fizessem regressar, se te alistasses. Que te parece? Se quiseres, posso dar-te uma carta de recomendação, para o comandante.
— Pensarei nisso — disse, preocupado.
— Há tempo — riu o capitão. — Que toma-mos entretanto? «Whisky» de centeio ou escocês, «brandy», aguardente, Porto, Xerez?...
— Havendo «brandy»... — disse Duncan. Wilson desatou a rir. — Saiu à luz do dia o orgulho pátrio.
O jovem não fez caso.
— Brindemos por essa dama bela e inconstante que é Nova Orleans.
Wilson encheu os copos, levando por sua vez, o seu à boca.
— Por Nova Orleans — suspirou. — A velha e boa Nova Orleans.

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