segunda-feira, 14 de novembro de 2016

CLF074. CAP V. Os exploradores de Forsyth

A sala era simples e vazia, mas o comandante George A. Forsyth não precisava de decorações. Rudger já o tinha visto na noite anterior no baile, mas agora observou-o mais detalhadamente, enquanto o comandante lia a carta do capitão Wilson. Havia algo de majestoso na figura do militar, nas marcas do seu rosto que expressavam inteligência e força.
Finalmente Forsyth levantou a vista do papel elevando-o para os olhos pardos do jogador.
-- Aprecio sinceramente o capitão Wilson — disse gravemente, mas temo não poder satisfazê-lo neste momento.
Rudger ficou atónito. Na realidade não tinha o menor desejo de ingressar nos «Exploradores», e não estava muito certo de proceder com cabeça, alistando-se. Talvez por isso mesmo, não lhe tivesse passado pela cabeça que não o alistassem.
— Na realidade — disse muito aprumado —creio que mereço uma explicação, «monsieur».
Um riso cínico fê-lo voltar a cabeça para o homem alto e magro que tinha entrado no gabinete do comandante. A primeira vista, não achou simpático o tenente John Semple, mas a sua intervenção tornou-o odioso. Tinha uma grande cabeça e cabelo encaracolado que já começava a tornar-se ralo e muito emaranhado. Era forte e usava enormes patilhas.
O comandante não pareceu ouvir o insultante riso do oficial.
— Não tenho nada contra você, senhor Rudger, e repito-lhe que gostaria de atender o capitão Wilson; mas há mais voluntários que lugares vagos. Homens que conhecem as planícies, excelentes caçadores, competentes em seguir uma pista emaranhada, gente azeda e má, tostada pelos raios solares e desejosos de se vingarem nos índios, que mataram as suas famílias e arrasaram as suas casas. Dá conta? Se se considera capacitado para substituir um desses veteranos?...
— Há certa diferença entre entender-se com um guerreiro Cheyenne ou uma jovem crioula. — voltou a sorrir Semple, desagradavelmente.
Rudger dirigiu-lhe um duro olhar.
— Não lhe ocorreu nunca pensar — disse com voz clara e reprimida— que eu possa fazer alguma coisa que você faz... e fazê-lo melhor?
Semple fez uma careta.
— Se por acaso se tratar de uma figura elegante...
— Trata-se de disparar. Contra você ou contra o alvo. Como prefere?
— Advirto-o — sorriu Forsyth — que é um dos nossos melhores atiradores.
— É um desafio, «monsieur». Se este... cavalheiro — fez uma pausa bastante prolongada para que resultasse insultante — é um bom atirador, dos melhores como acaba de dizer, julgo que se o vencer terei ganho o lugar que solicito.
Forsyth olhou para o ruivo.
— Que dizes a isto, John?
Semple fez uma careta depreciativa.
— Este pássaro não serve para explorador; carece de qualidades necessárias — disse sem rodeios.
Mas acrescentou depois de uma breve pausa:
— Ainda que de todos os modos nos possamos arriscar. Se o seu desafio não passa de uma fanfarronada...
— Bem. Forsyth pôs-se de pé e saiu detrás da secretária.
— Vamos lá para fora, cavalheiros.
 Saíram juntos da cabana, dirigindo-se para o terreno de provas, situado fora da paliçada. Era ali também onde se faziam os exercícios de tiro, e onde se encontravam uns postes cravados no solo, alguns dos quais tinham tábuas a fazer cruz para segurar os alvos.
— Que te parece, John? — perguntou o comandante.
O alto, magro e ruivo tenente apanhou umas pedras do solo e chegando até um dos postes colocou três em cada um dos braços da cruz, medindo depois a distância de quinze passos.
— Venha aqui, Rudger.
O jovem aproximou-se sem pressas.
-- Ponha-se aqui a meu lado e saque o revólver. A ordem do comandante dispararemos cada um contra as pedras do braço que lhe corresponde. Vamos a ver quem emprega menos tempo e menos disparos para fazer desaparecer as pedrinhas. O que atingir a madeira, para as fazer cair, perde.
Ante aquela classe de prova, Duncan sorriu divertido. Tinha experimentado no dia anterior o revólver, verificando ser uma excelente arma, e acertar naquele alvo significava para ele um jogo de crianças. Pondo-se em posição desfundou a arma.
— Muito bem — disse. -- Quando queira. Comece, meu comandante. Dê a ordem.
Forsyth olhou os dois homens, e depois o alvo.
-- Prontos? — perguntou.
Os dois atiradores levantaram as armas, apontando., Todos aqueles preparativos tinham chamado a atenção e começaram a aparecer alguns homens.
— Sim -- disse Semple.
— Pronto — respondeu Rudger.
— Fogo!
Duncan disparou abafando a voz com aquela rapidez que o fizera adiantar-se a Tempest, e a pedra mais próxima do poste voou feita em bocados. Depois atirou duas vezes mais, sem pressas, com segurança, surdo ao estrondo das 'explosões que davam. Ao acertar na última pedra, olhou para o outro lado da cruz e chegou a tempo de ver como desaparecia a última. Uma cerrada ovação premiou a pontaria daqueles soberbos atiradores. A concorrência era agora maior, e continuavam a chegar homens de todos os lados.
— Três alvos cada um e outros tantos disparos, ainda que o senhor Rudger tenha obtido alguma vantagem por atirar mais rapidamente — disse Forsyth.—Parece-me demasiado pequena para decidir a questão. Querem provar outra vez? Alguma coisa mais longe, talvez?
 -- Perdão — interveio Duncan — mas isto parece-me um jogo de crianças. É demasiado simples.
Tal afirmação produziu excitados comentários entre os espectadores. O comandante olhou para Rudger franzindo as sobrancelhas.
— Que propõe você? — perguntou secamente, aborrecido sem dúvida por aquela fanfarronada.
O jovem não se intimidou.
— «Monsieur» Semple escolheu o seu alvo. Permite-me que escolha eu agora o meu?
— Muito bem. É justo.
Rudger voltou-se para os espectadores.
— Alguém tem um cordel? — perguntou.
Ofereceram-lhe vários tendo escolhido entre todos o mais fino. Em seguida tirou do seu cinturão um cartucho e extraiu com os dentes a bala de chumbo. Notava a expectativa com que era observado por quantos ali estavam, mas sem se intimidar com isso.
Com um punhal de caça que também tinha comprado dois dias antes, fez um pequeno vinco para segurar o cordel, que amarrou também com os dentes de modo que não fugisse. Atou então a outra extremidade a um dos braços do poste, e deu à bala um pequeno balanço.
— Isto é um desafio a todo aquele que queira tentar — disse sorrindo trocista.
Depois contou oito passos.
— Vamos?— perguntou ao ruivo oficial dos exploradores.
Semple olhou-o fixamente.
— Você é mais que um fanfarrão — grunhiu.
-- Não quer tentar? — troçou o jovem. — Não vai mais além que aquele joguinho das pedras?
— Que asneira é esta? Não se pode acertar nessa bala em movimento.
— Não se trata de acertar na bala — replicou Duncan com calma. — Têm que cortar o cordel.
— Impossível!
Duncan deixou de lhe prestar atenção e voltou-se para o comandante Forsyth. — Você disse que os seus exploradores eram todos excelentes atiradores, «Monsieur» Forsyth. Não há nenhum capaz de aceitar este desafio?
O calmeirão do Travis destacou-se então de entre a multidão, e olhou para Duncan com os seus olhos azuis sempre sorridentes.
— Pelo menos farei a prova sorriu.
Rudger tinha feito com a bota um traço no poeirento solo, e o seu amigo foi colocar-se ali, desafundou o revólver e depois de fazer a pontaria seguindo a oscilação da bala, fez fogo, O chumbo continuou o seu movimento de pêndulo sem a mais leve alteração. De novo Cameron fez fogo. De novo errou. E três vezes mais, até gastar as munições.
— Abanei um pouco — riu.
— Basta de palermices! — gritou Semple mal humorado. — Agora toca-lhe a você fazer de bobo, Rudger.
Ao cortar o fio de um só e certeiro disparo, Duncan pensou no que teria dito René Tempest se o tivesse presenciado. Insistiria ainda em que não era mais do que sorte?
— Diabos! — grunhiu Travis. — E eu que duvidava que soubesse disparar!
Os homens da fronteira, para quem disparar bem era uma qualidade essencial, acolheram a façanha em silêncio, que depois se converteu num surdo rumor de excitados comentários.
— Vamos — disse Forsyth. — Regressemos ao gabinete...
Quando entraram na desmantelada sala a que o comandante chamava o seu gabinete, este voltou a sentar-se e encarou o forasteiro.
— Está bem, senhor Rudger — disse. — Se persiste em ingressar nos «exploradores» admitirei o seu pedido. Não posso perder um homem que atira como você.
Duncan vacilou. Não tinha o menor desejo de converter-se em explorador. A vida desta gente era dura e perigosa e ele tinha outras aspirações. Mas agora já não podia voltar atrás. Muito menos vendo o sorriso de desprezo de Semple.
— Há mais alguma formalidade que deva cumprir? — perguntou.
— O tenente se encarregará disso.
— Imediatamente! — concordou este sorrindo de um modo pouco tranquilizador.
Duncan olhou-o durante um momento e perguntou a si próprio se não estaria fazendo asneira, mas acabou por encolher ligeiramente os ombros. Não se ia deixar assustar por um sujeito como aquele.
— Obrigado, comandante — disse.
— Não tem que agradecer. Teria preferido não o ter admitido.
*
Enquanto cavalgava até Smoky Hill River, distante corrente de água que corria a noroeste donde estava estabelecido o acampamento de exploradores para vigiar os índios, Duncan maldizia amargamente a sua sorte.
Uma assombrosa imensidade de circunstâncias o tinham feito vítima. Evocou com nostalgia Nova Orleans, os cafés, os combates de galos, as mesas de jogo, as pistas de corridas, o Teatro da ópera Francês, o «Saloon Carraud»...
E pensou nos alegres companheiros e encantadoras damas que tinha conhecido lá. Era quase incrível que em poucos dias um membro da sociedade elegante como ele se tivesse transformado num nómada vestido de pele na fronteira e condenado a uma servidão que começava a ser-lhe terrivelmente odiosa.
A paisagem que se estendia diante dos três cavaleiros era da mais monótona; muito breve deixaram para trás todo o sinal da vida humana e só viam a imensa pradaria.
— Que se passa, companheiro? Tem uma cara que parece uma múmia.
Duncan olhou para Travis que cavalgava a seu lado e fez uma careta.
— Um pouco de receio — sorriu.
Semple que ia à frente, deve ter ouvido porque no momento voltou-se na sela mostrando a sua cínica cara.
— Medo, Rudger? Julgou ver alguma pluma detrás de qualquer arbusto?
O jovem sentiu os nervos crisparem-se. Aquele tipo tornava-se cada vez mais insuportável.
— Pareceu-me que lhe saía do bolso — replicou secamente. — Afinal era uma galinha.
O sorriso cínico do oficial converteu-se num gesto duro, e os opalinos olhos adquiriram uma feroz expressão ao mesmo tempo que as suas pupilas adquiriam o brilho de punhais.
— Que quer dizer?
Semple aproximou o cavalo.
— Diga-o claramente — grunhiu.— Diga-o, se tem coragem.
— Estou de serviço e você é meu superior — replicou Duncan de forma respeitosa e tensa.— Não lhe darei a oportunidade que está procurando; mas algum dia vou cuspir-lhe na cara e dizer-lhe claramente tudo o que penso de você.
— Esperarei — concordou Semple roucamente. — Esperarei com impaciência.
Picou esporas e manteve-se afastado durante todo o resto da jornada.
— Que diabos se passa contigo e com ele? — perguntou Travis quando o tenente já estava bastante afastado.
— Devias era perguntar-lhe a ele, o que tem contra mim. Já o viste. Ao que me parece não lhe sou simpático.
Cameron permaneceu em silêncio durante bastante tempo, como refletindo sobre o que lhe tinha dito o companheiro.
— A sua mulher fugiu com um tipo da cidade — disse de repente. — Talvez seja por isso.
Duncan olhou-o um pouco surpreendido.
— E que tenho eu a ver com isso?
Cameron encolheu os ombros.
— Não sei. É possível que tu, por seres também da cidade, lhe desagrades. Ou talvez as tuas maneiras e forma de falar lhe lembrem o tipo.
— Pois está bem! — disse Duncan.
 Aquela noite passaram-na numa cabana de troncos de um índio chamado Long Ear (Orelha Comprida).
Duncan tinha esperado com ansiedade o momento do seu primeiro encontro com um pele-vermelha; mas este exemplar constituiu uma completa deceção. Era civilizado. Vestia uma camisa velha sem botões; a fralda de fora, e uma espécie de calças que não se conhecia a cor, e o sujo chapéu com algumas penas.
Enquanto a sua gorda e pingona «squaw» cozinhava a comida, o homem permanecia sentado no alpendre olhando distraído com expressão de estúpido. Naquele asqueroso indivíduo não havia nada de nobreza e dignidade de que tinha ouvido falar, nem sequer a feroz pintura.
A ceia consistiu de carne, e o seu aspeto bastou para fazer esquecer a Rudger que estava faminto; ao descobrir uma mosca no seu prato acabou por ficar sem comer. Mas havia café. No entanto também esta esperança se desvaneceu quando o índio, numa amostra de deferência procedeu à limpeza dos copos com o sujo trapo que tinha no meio das pernas.
Duncan não bebeu o café e sentiu-se contente por continuar a viagem no dia seguinte quando desceram até ao vale com árvores raquíticas, em cujo fundo se via uma desgarrada neve.
— O rio Smoky Hill — disse Travis. — Está gelado?
Em breve distinguiram entre as árvores uma mancha cinzenta que não era neve nem fumo, mas sim a lona manchada de várias tendas juntas. O acampamento dos exploradores.

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