quinta-feira, 10 de novembro de 2016

CLF074. CAP I. Encontro romântico atrasado por uma aposta

O «Saloon Carraud» estava tão concorrido com sempre, pois era ali que costumava praticar o manejo das armas a juventude elegante de Nova Orleans, se bem que naquele momento todos os assistentes estivessem quietos e encostados às paredes de tiro, olhando como fascinados o pequeno pêndulo que balanceava de um grosso painel.
Todos os ali presentes sabiam quão era difícil acertar, pois os melhores de entre eles praticavam o exercício com escasso êxito. Mas o que Duncan Rudger se propunha fazer era cortar o fio, que mal se via, e salvo alguma exceção, em opinião de todos, tal coisa entrava no campo dos impossíveis.
Claro que o podia tentar, e que alguém o conseguisse não era caso para tanta expectativa, mas por outro lado, Duncan era considerado como o melhor atirador que frequentava o «saloon», e por outro lado, tinha havido uma aposta de 500 dólares entre Duncan e o jovem Tempest, que lhe disputava a supremacia como atirador.
No meio do assombro geral, Duncan, voltou-se sorridente para o seu rival.
— De verdade, não queres tu experimentar primeiro? — perguntou.
A sua figura era alta e esbelta, e ainda que sem jaqueta, não alterava em nada a sua natural elegância.
— Não — disse Tempest, um jovem magro e distinto. Sei muito bem que só por sorte se pode cortar o fio com um só tiro a oito passos de distância. E não acredito na sorte.
— Talvez seja possível — concordou Duncan, jovialmente. — Mas pelo menos farei a prova.
— Tens fama de afortunado, Duncan. Vejamos o que há de verdadeiro nisso.
Como única profissão aceitável que restava em Nova Orleans a um jovem de elevada posição social cujo pai se tinha suicidado em plena ruína, era a de jogador, Rudger confiava na sorte, ainda que colocasse todo o seu saber para a ajudar.
Jamais fazia batota, mas valia-se de todas as vantagens que lhe proporcionava a sua inteligência, pelo que a breve pausa conseguida era um ardil para o balancear do pêndulo fosse mais lento. Não era muito, mas era alguma coisa.
— Muito bem — disse. — Vejamos.
Na volta do pêndulo, por um instante, o chumbo e o cordel permaneceram imóveis, no momento exato de iniciar o movimento na direção contrária. Ouviu-se o disparo, a bala cortou o fio e o peso caiu. No mesmo instante ouviu-se uma cerrada ovação, se bem que muitos dos presentes estivessem paralisados pelo assombro, como testemunhava a atónita expressão dos seus rostos.
Tempest não fez nem uma coisa nem outra, só apertou os lábios num gesto de despeito e contrariedade.
— Sorte! — exclamou. — Não poderia repeti-lo.
— Provavelmente não -- admitiu Duncan sorridente. — Mas tão-pouco tenho necessidade de o tentar. Perdeste, René.
— Algum dia grunhiu René Tempest enquanto tirava a carteira — encontrarei motivo para comprovar se és tão hábil disparando contra um homem, que te aponte um revólver.
— Um duelo, René?
— Exatamente.
— Isso já está muito em desuso brincou Duncan com toda a calma.
— É essa a tua resposta? — perguntou o outro jovem, enquanto lhe entregava a importância apostada, brilhando os olhos negros de excitação.
Duncan guardou o dinheiro, vestindo em seguida a jaqueta que outro jovem lhe estendia.
— Uma resposta a quê, meu querido amigo? — inquiriu então sossegadamente. Não vi que tivesse havido urna pergunta.
Rudger também estava certo de que mais tarde ou mais cedo teria que acabar por se enfrentar com aquele jovem, pois havia entre eles uma rivalidade muito mais profunda que um simples antagonismo de dois atiradores; mas se bem que não o temesse em absoluto, o resultado do encontro, sim, sabia muito bem que as consequências seriam funestas para ele em qualquer dos casos, e a prudência aconselhava-o a evitá-lo enquanto fosse possível.
René Tempest não soube que responder. Ainda que burlado, não tinha nenhum motivo que justificasse diante dos presentes um desafio, e se bem que todos sabiam perfeitamente porque o fazia, a versão oficial seria a de que não soube perder, o que não lhe convinha.
— Por agora és tu quem tem os triunfos — grunhiu. — Aproveita a sorte enquanto a tens, que talvez não dure muito.
— A sorte é caprichosa. Sempre se disse - concordou Duncan. — E agora, senhores, peço--lhes que me desculpem. Tenho que me ir.
Despedindo-se dos amigos, abandonou o «saloon» depois de recolher o seu chapéu e ao sair para a rua, viu que o tempo ameaçava tormenta. Há três dias que estava assim, mas se até agora não lhe importava, neste momento temeu que estalasse o temporal.
Com um gesto preocupado tirou o relógio de oiro e viu que eram sete horas, e imediatamente começou a andar depressa. Aquela estúpida aposta no «Carraud» lançada por Tempest, tinha-o atrasado e o tempo era pouco.
Poderia ter-se valido de um carro de aluguer, com o qual lhe bastariam uns minutos para chegar ao lugar do encontro, mas havia que contar com a possibilidade de que ela se tivesse adiantado, e em tal caso que o cocheiro a reconhecesse. A notícia correria por toda a cidade, o qual poria fim aos seus encontros o que seria uma fonte de desgostos para ela, e provocaria inevitavelmente um encontro com René Tempest. Por todas estas considerações preferiu alugar um cavalo, ainda que perdesse tempo a dirigir-se ao estábulo e esperar que lhe selassem o animal.
Havia um próximo do «Teatro d'Orleanês», em Orleanês Street, entre Bourbon e Roal. O empregado crioulo conhecia-o e arranjar-lhe-ia num momento o que desejava. Um magnífico alazão de fina estampa, bem alimentado, com o que levou muito pouco tempo a sair da cidade.
Ao internar-se num pequeno bosque, Dum-can viu imediatamente o coche e a esbelta silhueta que saiu dele para ir ao seu encontro.
— Duncam — ouviu-a lamentar-se ao mesmo tempo que ele desmontava. — Estou à uma eternidade esperando, e já, julgava que não
Sabia como acabar com as suas reprovações, e agarrando-a nos seus braços, beijou-a nos lábios com calor e paixão.
— Tempest entreteve-me no «Carraud» —explicou depois. E acrescentou sorrindo: --- Esse teu apaixonado está sedento do meu sangue.
-- Duncan! — alarmou-se ela.
— Oh, não te preocupes! O desafio desta vez ficou reduzido a um simples exercício de tiro ao alvo. Confiava que a exibição de pontaria esfriaria um pouco as suas ânsias de bater-se, mas não foi assim. Claro que não lhe reprovo isso. Trata-se de me roubar o teu carinho...
— Que farias? — sussurrou ela.
— Matava-o! — afirmou Duncan, convicto.
Os olhos da jovem brilharam de júbilo.
— Isso era o que eu esperava que dissesses! declarou ela.
Duncan olhou-a e o seu sorriso foi urna lástima apesar de todos os seus esforços.
— Sem dúvida — murmurou. — Julgo que procederias acertadamente casando-te com o René. É o que deseja a tua família; é o melhor de Nova Orleans e não me parece mau rapaz, e para mais está apaixonado por ti. Poderias amá-lo, se quisesses.
— Não. Não podia amá-lo e tu sabes --- calou-se e ele pôde ver grossas lágrimas atrás das suas pestanas. Depois prosseguiu em voz baixa e um pouco rouca por reprimida paixão: —Duncan, sim, sim, não me amas, foi somente um jogo mais para ti e já estás cansado, diz--mo claramente. Eu... — e rompeu em soluços.
Duncan estreitou-a contra si e fê-la descansar no seu peito.
— Kitty — murmurou. — Kitty.
De repente, com fúria, Catherine agarrou--lhe os braços.
— Não é possível — disse. — Eu não renunciarei a ti. Se de verdade me amas, caso-me contigo ainda que se oponha toda a minha família. Ainda que tenhamos que fugir...
Duncan moveu a cabeça como a tentar aclarar os seus pensamentos.
— Isso temos que pensar um pouco.
— Porquê? — perguntou Kitty, com a voz tensa e insistente. — Eu amo-te. Não existem leis contra o amor. Não é um crime. Permite-se que se casem as pessoas que se amam.
— Não basta só amarem-se, Kitty. Eu... Bem, a tua família tem razão ao considerar--me um indesejável. Não posso sustentar-te. Não já com as comodidades e luxos a que estás habituada, mas nem sequer decentemente.
— Duncan — murmurou a jovem com a voz tremendo pelas lágrimas, estás tentando dizer-me que me não amas?
— Isso não... — disse o jogador franzindo o cenho — mas
— Mas o quê, Duncan?
— Não posso arrastar-te para a vida que levo. Quanto tempo julgas que a sofrerias sem me odiar? Tu és como urna rica porcelana, formosa e frágil e que precisa do suporte apropriado. Uma grande casa com amplas janelas. Duas dezenas de negros que te sirvam. Um coche para te levar à igreja. Vestidos ricos, as melhores sedas, com a suavidade digna de acariciar a tua pele. Dinheiro para os teus caprichos, enfim, tudo o mais que pode desejar o teu coração.
Catherine passou os braços pelo seu pescoço, e levantando-se na ponta dos pés, beijou-o nos lábios.
— Tonto? -- murmurou. — O dinheiro não compra o amor. Vamos dar um passeio. Está-mos muito próximo e pode passar alguém. Duncan olhou para o céu ameaçador e franziu o nariz.
— Terno que não seja prudente. Está ameaçando tormenta e...
Ela agarrou-o por um braço e encaminhou--se para o coche.
— Disseram-me uma infinidade de vezes que eras um sem-vergonha e um oportunista — disse com um sorriso que desdizia a crueldade da frase, dita carinhosamente e com jovialidade.
Rudger apanhou as rédeas do alazão, e atou-o à parte detrás do carro. Depois voltou-se para a jovem e fez uma divertida reverência.
— Temo que tenham exagerado os meus pobres méritos perante ti, querida — disse enquanto a ajudava a subir para o carro.
Ela sorriu-lhe.
-- Oh, não — opôs-se. — Creio, antes pelo contrário, que os reduziram em grande parte. Quem me informou teve sempre muito em conta a castidade da minha inocência de donzela, e suavizou muito as tuas aventuras.
Havia riso na voz dela e Duncan fez uma careta. Depois apanhou as rédeas e fez trotar o garanhão.
— Não me parece que a minha reprovada vida te preocupe muito — comentou com certa surpresa.
— Para ser sincera encanta-me a tua malandrice... como coisa passada — lançou-lhe um olhar fulminante antes de acrescentar: - Mas arrancava-te os olhos se soubesse que atualizavas algumas dessas aventuras.
Agora foi Duncan quem riu e o fez de vontade. Conduziu pelo caminho junto ao rio, afastando-se para o norte de Nova Orleans. Um pouco mais adiante viram uma casa com especto de abandono.
— Não era esta a quinta de recreio dos Sompayrac? — perguntou Kitty.
— Era.
-- Morreram ali, não é verdade?
— Na Primavera passada. Febre-amarela.
--- Que espantoso!
Quando a casa ficou para trás, oculta entre as rochas, a jovem soltou um suspiro de alívio.
— Horroriza-me essa doença — murmurou.
— Tens muita razão. Mudemos de assunto.
Ela encostou-se ao seu ombro, e Duncan observou as harmoniosas linhas do seu rosto. O rebelde narizinho; a boca, grande e generosa como uma chama escarlate sobre o fogo, de tom levemente mais pálido do que o dos seus cabelos, e os olhos grandes de um escuro violeta, muito abertos corno alguns pensamentos, e adornados por compridíssimas pestanas. Kitty era muito bonita, mas os olhos constituíam o maior dos seus encantos. Eram únicos! Nunca vira outros tão belos.
Porque não me fazes mimos, Duncan! --- pediu mimada.
— Hum! — fez ele. -- Não tento.
— Tonto.
O jovem inclinou-se dando-lhe um rápido beijo.
— Espera só que encontre um lugar onde possa parar o carro fora do caminho e a coberto dos olhares indiscretos, e já verás.

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