quarta-feira, 16 de março de 2022

CLT008.08 O primeiro beijo de Anabela

Enterrou novamente a culatra entre as sementes e pôs-se em guarda. Ainda tinha algumas balas nos seus revólveres e não se entregaria assim, como uma criança.

A porta abriu-se. Anabela trazia uma arma na mão, mas vinha sozinha. A sua atitude não era ameaçadora. Viu Ted, com as mãos nas ilhargas e adivinhou o seu pensamento. Sorriu, então.

—Trouxe-te um revólver carregado para estares prevenido, no caso de acontecer alguma coisa. Eu vi que não tinhas balas no cinto.

Ted soltou um suspiro de alívio. E envergonhou-se de si mesmo.

—Duas vezes desconfiei de ti e duas vezes me enganei —disse em voz baixa. — Acabas de dar-me uma lição, Anabela.

A jovem, que parecia fatigada, aproximou-se dele.

—Tive de substituir alguns tapetes. Foi um trabalho fatigante.

—E os criados? Não te viram?

—Ainda não regressaram. Creio que toda a gente anda à tua procura. Amanhã, chega o governador em visita de inspeção e o xerife não quer que um inimigo público, como tu, ande à solta.

Ted levou a mão à testa, que lhe ardia. Não era porque tivesse febre. Eram a excitação e o nervosismo que sentia, ao ver Anabela tão perto de si. Tentou por isso dominar-se. Mas foi ela, inconscientemente, que agravou a situação, ao abeirar-se dele.

—Tens uma ligadura a desatar-se. É preciso ter cuidado.

A fim de apertá-la bem, quase o abraçou. Ted aspirou o perfume dos seus cabelos e compreendeu então, mais do que nunca que algo de importante havia mudado na sua vida. Amava aquela mulher. Não de uma forma desapaixonada e tranquila como amara a rapariga de «Phoenix», mas de uma maneira violenta que estava muito acima de todos as reflexões.

O facto de que Anabela lhe parecesse impossível de alcançar, contribuía para que fosse mais intenso e irresistível o desejo de apertá-la 'entre os 'seus braços. Amava aquela mulher—pensou—contra todos os seus desejos e todas as reflexões. Amava-a e agora tinha-a perto de si; bastava-lhe uma pequena inclinação da cabeça, para beijá-la.

—Devias ter perdido muito sangue—disse Anabela, em voz baixa. —O teu coração bate com violência e sinto que os teus joelhos tremem.

—Não é o sangue! — replicou ele, em voz mais baixa—não é isso!...

Ela apertou o último nó e, afastando-se um pouco dele, fitou-o nos olhos.

— Que tens, então?

Ele sentiu os pensamentos baralharem-se no seu cérebro.

«Deves ser sincero, Ted. Não podes calar o que sentes neste momento. É qualquer coisa superior a ti. Enamoraste-te dela, completamente. E de certo modo é tua mulher! Sim, é tua esposa! Deves dizer-lho! Não obstante, disse-lhe num murmúrio:

—Não tenho nada! Estou cansado!

Se Anabela nesse momento voltasse para o seu quarto, nada teria acontecido. Vencido já o impulso de beijá-la, Ted, com os olhos fechados, tentava desesperadamente afastá-la dos seus pensamentos. Anabela, porém, não compreendeu a luta que se travava no coração dele. E aproximou-se mais uni passo, até quase tocar-lhe.

—Porque te perseguiam, Ted?

Era a mesma pergunta, mais ou menos, que Regina lhe fizera, o que fez que Ted dissesse para si que, num determinado momento, todas as mulheres pensam o mesmo.

—Em «Phoenix», um homem ofendeu e matou a mulher com quem eu devia casar. Eu matei-o depois disso e fiz dispersar todos os seus rebanhos e manadas. Mas ele era um tipo perigoso e tinha dinheiro, com o qual se podem comprar consciências e alugar armas de fogo. Desde esse momento em que disparei contra ele, tornei-me um proscrito.

Ted disse isto, sem abrir os olhos, para não ver aquela mulher, que amava e que tinha tão perto de si.

—Amavas muito essa mulher? O melhor que um homem pode fazer para afastar de si a mulher que o está dominando é mostrar-se rude, com ela, por muito que isso o contrarie.

Respondeu-lhe, então:

—Que te importa isso?

Anabela não se perturbou. Parecia compreender de antemão que não podia esperar de um homem como Ted mais do que certas respostas. E aproximando-se mais dele, repetiu:

—Foi o amor a causa de que te convertesses num foragido?

Os seus nervos vibraram e não pôde deixar de responder-lhe:

—Não, Anabela! Não foi o amor. E não foi o amor pela simples razão de não o ter sentido até... agora. A rapariga de que te falo era para mim uma amiga de infância, com a qual devia casar simplesmente para perpetuar o costume de vê-la ao meu lado. Mas agora compreendo que o amor é outra coisa, Anabela. Agora compreendo que um homem pode morrer e matar cem vezes, quando o sente. E creio que tudo mudou na minha vida, que tudo é diferente, Anabela...

A jovem pareceu compreender. Mais do que as suas palavras, os olhos de Ted falavam eloquentemente. Então, retrocedeu vivamente um passo.

Nesse momento, o seu orgulho fez-lhe levantar a cabeça, como se não admitisse que um fugitivo, um homem que ela havia ajudado por compaixão, se atrevesse a dizer-lhe que, só ao vê-la, havia compreendido o amor.

Ted notou decerto a reação de orgulho de Anabela. Mas nesse momento não refletiu. Havia começado a falar e as suas palavras eram uma torrente impetuosa, que nada podia deter; e em cada uma delas era o seu coração realmente que falava.

— Às vezes, nas povoações ricas da fronteira, via algumas mulheres como tu. Filhas ou esposas de abastados proprietários, havia nos seus modos e atitudes, numa simples maneira de olhar um ar de distinção que as tornava inesquecíveis. Eu pensava que gostaria de passar uma tarde junto delas, simplesmente para ouvi-las falar. Toda a minha vida, vivi montado num cavalo, com o revólver à cintura e no coração a sede de uma vida melhor. Deves estar surpreendida por te falar assim. Mas eu andei a estudar, para tirar um curso, e li muitos livros. Talvez por isso, admiro tanto as mulheres como tu, que viajaram muito pelo Este, que sabem falar e pensar e creem que na vida há coisas belas, dignas de serem conhecidas. Mas além disso, Anabela, és excessivamente formosa. Ninguém poderia permanecer indiferente ao ver-te tão perto, nem sequer um ferido ou um fugitivo como eu... Eu amo-te, Anabela... Estou apaixonado por ti, como um louco...

A jovem retrocedeu um passo. Nos seus olhos havia uma chama de incompreensão, de soberano orgulho.

—Não continues, Ted.

—Tenho reprimido tanto este sentimento, que agora tenho que declarar-to!... Tens de afastar-te de mim ou beijar-te-ei...

—Beijares-me?! Ninguém ainda o conseguiu...

—Nem... Larry?

— Não! Julgas que é o amor e não o medo que me impele para ele?

Como ela não saísse, Ted avançou um passo mais, estendendo o braço:

—Eu serei esse homem, Anabela!

Ela cerrou os dentes e, inesperadamente, levantando os braços, deu-lhe duas bofetadas.

—Maldito!

Ele ficou imperturbável. E continuou avançando, até os seus dedos quase tocarem a bata de seda.

—Não te atrevas, senão...

Anabela não pôde terminar a sua ameaça. Ted estreitou-a entre os seus braços, oprimindo-a pelos ombros, sem que se desse o mais leve contacto que pudesse ser ofensivo para ela. Dentro da sua paixão cega, havia em todos os seus actos um visível respeito.

—És minha esposa! — murmurou. —Ainda que o sejas par pouco tempo, este instante, apenas.

Os seus lábios apertaram os de Anabela, que fez um violento esforço para se libertar dele.

—És um infame, um canalha!

—Sou apenas um homem que te ama.

Depois beijou-a outra vez, com toda a sua força, até quase asfixiá-la. Mas largou-a logo, quase com violência, como se desse conta, de repente, do que estava fazendo. Anabela fitou-o, com um olhar chamejante, encostada á porta. Corara intensamente.

—Ainda ninguém me ofendeu assim, sabes!

—Não vejas nisto uma ofensa, Anabela. Amo-te, simplesmente, e mais nada...

— Cala-te!

Os seus olhos brilhavam, com um fulgor de orgulho. A sua fama de rapariga linda e rica, o respeito de que tinha sido sempre rodeada, a admiração que todos sentiam por ela, eram os elementos que nesse momento ditavam as suas ideias. E a reação era tão furiosa que todos os seus nervos vibravam.

—Eu tenho sido sempre respeitada em Pedra Branda—disse numa voz abafada, mas em que havia uma inflexão de ódio—e em todo o Arizona os homens inclinam-se à minha passagem. Sou uma mulher rica, compreendes?! A fortuna de meu pai tem sido ganha honradamente, e o nosso nome e a nossa reputação estão isentos de mancha. Como é que tu, um fugitivo dos piores tugúrios do Arizona te atreves a beijar-me? Tu, um proscrito, que tem contas pendentes com a Justiça? Julgas que o meu nome pode unir-se, nem mesmo em pensamento ao de um patife? — Anabela estava quase a chorar de raiva. —E julgas que os meus lábios podem beijar os de um homem sem honra e sem consciência? Não és digno para estar de pé, diante de mim, Ted Lambert.

O jovem enterrou os ombros. Aquela inesperada chuva de insultos, a violenta reação de Anabela, deixaram-no perplexo, nos primeiros momentos. Depois, afundado na sua própria vergonha. Não devia tê-la beijado, nunca devia ter-se atrevido a isso. Só quando a ouviu chamar-lhe «patife», «homem sem honra nem consciência» é que esteve para reagir. Mas não chegou a dizer nada. Havia procedido mal. Era justo, portanto, que lhe dissesse tudo isto, produto da sua cólera.

— Podes crer que lamento bastante.

Mas Anabela não reagiu favoravelmente, nem mesmo ao ouvir essas palavras que encerravam uma desculpa. O seu orgulho era grande demais para permitir que a ofensa ficasse lavada com uma simples desculpa.

—Um bandido como tu... beijar-me... a mim... uma Loren.

E cega de ira, deu meia-volta e saiu da cave, antes que Ted pudesse retê-la. E quando ele correu para a porta, tentando empurrá-la, ouviu uma chave girar dentro da fechadura.

—Agora, estou prisioneiro... prisioneiro outra vez.

Olhou à sua volta. Havia numa das paredes, duas pequenas janelas, mas gradeadas de ferro. Foi a uma delas, a mais próxima, e apalpou-a. Era materialmente impossível, sobretudo sem contar com uma boa lima, tentar a fuga por ali. Por seu lado, a porta era de carvalho e a fechadura difícil de arrombar.

Ocorreu-lhe logo a ideia de desfazê-la a tiros. Mas com isso, atrairia novamente a atenção dos seus perseguidores e era duvidoso que conseguisse escapar, visto estar ferido, e comprometeria Anabela, que dificilmente poderia explicar a sua presença ali. Mas teria ela realmente a intenção de deixá-lo prisioneiro? Não voltaria ela ali, na manhã seguinte, para o libertar, quando o seu aborrecimento se tivesse diluído com o sono?

Resolveu, pois, esperar, embora o seu nervosismo e incerteza lhe fizessem ouvir ruídos suspeitos em todo a casa. Esperaria que a manhã nascesse, confiando na palavra dela. Anabela não o atraiçoaria, não o trairia só por causa do seu orgulho.

Lentamente, aproximou-se de uma pilha de sacos e deixou-se cair em cima deles. Agora, tinha febre, a cabeça ardia-lhe. Passada a excitação que a presença de Anabela lhe provocara, os ferimentos voltavam a torturá-lo.

As horas decorreram lentamente, os homens deviam já ter cessado as suas buscas, visto que não se ouvia nenhum ruído. Só, de vez em quando, alguém passava lentamente, fazendo retinir as esporas, junto das janelas da cave.

Seriam três horas da madrugada, quando ocorreu qualquer coisa que ele já não esperava. Ao longo da rua, começaram a crepitar tiros furiosos de «rifle» e de revólver. Encostando-se à parede, Ted olhou dissimuladamente através da grade de uma das janelas. Um súbito ruído de cascos fê-lo recuar: dois cavaleiros, pelo menos, a galope, iam passar junto da casa.

Nos primeiros momentos, Ted julgou que era ele o causador indireto de tudo aquilo e que perseguiam outro por confusão, mas uma voz conhecida não tardou a tirá-lo de dúvidas. Era a do xerife. —Ê o «Duas Balas», rapazes. Ê preciso acabar com ele!

Um cavalo negro deteve-se junto da casa e as suas patas cabriolaram precisamente junto das barras de ferro da janela, por onde Ted espreitava. Do fundo da rua, um homem chegou a correr. Era inconfundível, pelo seu aspeto decidido e a sua estrela de prata no jaleco. A uns quinze passos fez fogo com os seus revólveres, enquanto o cavaleiro lhe respondeu com dois tiros, apenas.

Ted viu o xerife encolher-se, vacilar um pouco e fazendo do seu próprio desespero forças, continuar avançando, ao mesmo tempo que disparava, julgando atingir o seu inimigo. Mas, na realidade, já incapaz de levantar o revólver, as suas balas morderam o pó da rua. E foi tombar em frente da janela, enquanto o cavalo empreendia o furioso galope, num turbilhão de poeira.

Ted viu cair o xerife, viu o sen rosto através das janelas, a três passos de distância, apenas. Os olhos do representante da Lei fitaram-no, sem o ver, enquanto o sangue corria abundantemente de duas feridas que tinha no pescoço. O Destino quisera fazer-lhe a triste jogada de que a sua morte tivesse lugar a poucos passos, e precisamente de frente do homem que ele procurara tanto.

—E o «Duas Balas»! Cuidado! Não o deixem fugir!

Outras vozes se perderam ao longo da rua, mas ninguém parecia decidido realmente a perseguir o assassino. Ouviram mais dois tiros e um grito dilacerante.

—Não o deixem fugir Ele assaltou a diligência de «Winslow»! Atirem a matar!

«Quem atira a matar de verdade, é ele!» —pensou Ted. --Parece conhecer os costumes de todos estes homens, e sabe atemorizá-los.! Não o apanharão!»

E afastou-se da janela. Não podia suportar por mais tempo a visão do xerife, a sangrar abundantemente. Encostou-se à parede e respirou fortemente.

Pouco a pouco, os ruídos foram cessando e, de novo, fez-se silêncio. Como a cabeça lhe pesasse a valer, Ted deitou-se de bruços em cima dos sacos e acabou por adormecer.

Durante o seu curto sono, teve uma série de pesa-delas. Via as patas do cavalo preto pisando o corpo de Anabela. Via-a depois, acercar-se dele e rodear--lhe o pescoço, para beijá-lo. Viu-a depois, sentada a seu lado, calma e fiel, dizendo-lhe que não o trairia, que poderia descansar ali até ao dia seguinte...

De súbito, uma voz fez despertá-lo. Era uma voz seca, dura e autoritária:

—Estás encurralado, Ted Lambert! Rende-te ou matar-te-emos como um cão raivoso! Não podes escapar!

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