quarta-feira, 22 de julho de 2020

BUF003.08 O xerife como aliado

— O resumo é completamente desanimador — grunhiu Grunter, terminando de enrolar um cigarro —. Não tirámos nada a limpo.
— Não muito, efetivamente — confirmou Kinastor, que estava acendendo o seu velho cachimbo, ao qual tinha grande amor pois o ajudava a pensar.
Os dois homens estavam sentados na orla do empoeirado caminho de carros que conduzia a Flagstaff, algo desalentados depois de terem perdido definitivamente o rasto do desconhecido atirador da noite anterior, após duas horas de buscas inúteis de um lado para o outro.
— É desesperador, mas absolutamente vulgar — prosseguiu o velho resmungão — o nosso furtivo visitante usava botas de montar correntes, tinha um pé mais corrente ainda e teve a precaução de não fumar nem deixar nada mais que o cartucho de uma carabina da marca e qualidade mais usados. Arma idêntica à que certamente mais de uma centena de habitantes da região possuirão. O seu cavalo estava perfeitamente ferrado, sem marca alguma por onde pudéssemos identificar as suas marcas entre um milhão de ferra-duas exatamente iguais. Tudo o que sabemos é que tomou este caminho segundo parece em direção a Flagstaff, mas pode ter voltado ou tê-lo abandonado em qualquer momento.

— Feito o inquérito — sorriu o jovem, gracejando —, continuamos as pesquisas...
— Vai para o inferno! Estamos à procura de descobrir o homem que te tentou assassinar e ainda te ocorre estar com gracejos!
— Achas que devo pôr-me a rezar pelo facto de não haver demasiados indícios?
— Demasiados? Nenhum!
— Não te irrites. Esperavas que tivesse deixado um cartão com o nome e morada?
— Diabo, não! Mas alguma coisa, uma pista que pudéssemos seguir, por pequena que fosse.
— Os agentes da Lei veriam a sua tarefa muito simplificada, se os criminosos fossem deixando sinais após cada assassino,
— Como diabo os podem então capturar?
— Há muitos métodos. Um deles, o mais corrente talvez, é ir eliminando os suspeitos. Outro, procurar o motivo. Mas há algum suspeito? Quanto ao motivo já sabemos que é a vingança. Mas isso ajuda-nos em alguma coisa?
— Temos duas possibilidades com esta tentativa de assassinato. Vingança, ou o facto de me considerarem perigo. Ainda que possa parecer mais lógico o primeiro, não creio que seja este o motivo.
— Porquê?
— Demasiado precipitado. O bando já deve saber que eu resolvi ficar e depois do seu primeiro contacto comigo, não creio que mandassem um só homem para me eliminar. É mais fácil prepararem uma emboscada no caminho ou nos pastos onde sabem que não tardarei a ir.
— Mas essa objeção serve também para o segundo caso.
— Assim é, mas pensando detidamente sobre ele, veem-se outros motivos que de outra forma passam inadvertidos.
— Devo ser muito duro de mioleira pois não os consigo ver. Para mim está tudo muito escuro.
— Voltando à primeira teoria, ainda há outra consideração para a descartar. Na realidade eu fiz um belo serviço a essa gente. Se nos chegam a liquidar a todos, a morte de Vivian e Madge teria levantado todo o estado contra eles e uma legião de agentes se teria lançado na sua pista. O que de nenhuma maneira lhes convém. Sendo assim, por que razão se quererão vingar?
— Algum amigo.
— Não há amigos tão grandes que sejam capazes de porem voluntariamente o pescoço na forca. Por outro lado, se tanta pressa tinham por que não tentaram matar-me na noite anterior?
— Não me perguntes suposições.
— Porque este atentado nada tem a ver com o assalto à diligência. Estou certo disso.
— Relacioná-lo então com os acontecimentos de ontem.
— Sim.
— Porque o supões?
— É possível que não seja bem pensado, posso estar equivocado, mas pela minha parte estou convencido de que o «sheriff» estava de relações com o bando e falou-lhes de mim antes de partir. A sua própria deserção os terá convencido de que sou demasiado perigoso para estar bisbilhotando pelos arredores.
— Mas se assim é, porque esperou até se encontrar contigo?
— Não me havia visto antes.
— Mas devia ter ouvido o teu nome. Clarke devia ter-lhe contado os acontecimentos.
— A maioria dos meliantes de Lubbock só me conhecia por Pistol Kim. Para Rust, Heinly Xinastor nada significava.
— Se tens razão no que dizes, a situação de Clarke é muito pouco airosa.
— Para mim, Clarke é um dos principais suspeitos.
— Mas que dizes?
— Supunha que te admirarias. Não necessito avisar-te que isto é estritamente confidencial enquanto não se desembarace esta meada.
— Estás louco. Esse homem sempre teve uma situação magnífica na região, há muitos anos que aqui está, é rico e também sofre a praga dos ladrões de gado. Como se tudo isso fosse pouco, salvou-te a vida. Já o esqueceste?
— Se é uma pessoa decente, em nada o incomodarei, à parte o facto de também ter salvo a sua vida, pelo que estamos em paz. No caso contrário, concordarás comigo que nada tenho a agradecer-lhe.
— Crês que teria disparado sobre o bandido no caso de ser o que supões? Teria morto os três se fosse suficiente rápido. Aqueles homens, vivos, eram a destruição do bando.
— Não compreendo — resmungou Grunter, sem saber que pensar.
— Pois é bem claro. Se nos matavam a todos já te disse o que teria acontecida. Caso contrário, ao serem descobertos era uma pista segura, o fio que nos levaria ao centro da meada.
— Demasiado complicado para mim. Disseste que esse homem é um dos principais suspeitos. Tens outros?
— Um mais.
— Já não me surpreenderia que mencionasses o próprio juiz.
— Não. Pelo menos neste momento nada tenho contra ele. Trata-se de Hensler.
— Diabo! Estás certo de que não suspeitas de mim? Que te fez o pobre vaqueiro?
— Avisou Walter Gray que a diligência transportava trinta mil dólares.
— E que há de estranho nisso?
— Eram amigos.
— Porquê, então, não o disse também a Clarke a quem o une uma amizade mais estreita?
— Que sei eu? Diaba, Kim, aturdes-me! Talvez o tivesse feito por causa das mulheres.
— É isso precisamente o que creio. Dize-lo de maneira que parece uma acusação.
— Quase. Velava pela segurança das senhoras jogando filantropicamente aqueles trinta mil, visto que a brusca mudança da intenção daqueles viajantes não podia deixar de chamar a atenção, ou sabendo que o assalto se daria não queria correr o risco de que lhes sucedesse um percalço precisamente pelos motivos que já te expus?
— Não pode negar-se que tens cérebro, embora não tenhas uma centelha de senso comum.
— Que pensas tu que segundo parece o tens em abundância? Que sei eu? Anda, vamo-nos embora. Sim, mas em direção a Flagstaff.
— Mas que vamos lá fazer? 
Falar com o juiz.
— Quem? Tu estás doido!
—Levanta-te, preguiçoso.
— Mas com cem mil pares de diabos e o resto da corte de Lucifer! Queres ser hóspede por conta do Município?
— Cala-te, velho resmungão! 

*

— Você aqui? — chiou o homem gordo, tirando apressadamente da boca o enorme charuto.
Kim, seguido pelo resmungão Grunter, entrara no gabinete do juiz sem se fazer anunciar.
— Não se preocupe com o seu charuto — riu o jovem divertido —. Venho em paz para tratar de um assunta muito importante.
— O assunto a tratar entre nós será através do «sheriff» — rugiu o magistrado fora de si, puxando freneticamente o cordão da campainha.
— Já nomeou outro? — admirou-se com ironia. — Você, juiz, é muito dinâmico!
— Avise o «sheriff» — disse o juiz quando apareceu a cara assustada do aguazil.
— Vem já, senhor. Mandei-o avisar assim que vi entrar estes homens.
— Muito bem. Vá buscar uma carabina e fique junto dessa porta. Vou terminar de uma vez com as suas intromissões, Mr. Kinastor.
— As suas medidas parecem-me muito acertadas. Assim ganharemos tempo.
— Pois saiba que dentro de dez minutos ocupará uma cela.
— Você seria um mau jogador de «pocker». Não compreende que mostrando prematuramente as cartas pode estragar o seu jogo? Mas eu não quero brigas. Venho aqui pelo caso do assalto à diligência. Onde estão os corpos dos foragidos?
— Onde quer que estejam? Enterrados — respondeu o juiz, subjugado talvez pela forte personalidade do texano.
— Foram reconhecidos?
— Não. Eram forasteiros.
— Quem os viu?
— Não sei. Foi Rust quem se ocupou de tudo isso. Não fiz mais do que assistir ao levantamento dos cadáveres.
— Foi você na verdade, ou também o delegou em Rust?
— Não vejo em que lhe possa interessar isso — gritou fora de si, olhando nervosamente para a porta.
— Importa-me porque a noite passada fui vítima de um atentado que esteve prestes a acabar comigo. Tenho motivos para supor o seu autor membro do bando que opera na região e, portanto, tenho um interesse pessoal em que seja exterminado.
— Porque demorou tanto, Ogrady? — gritou naquele momento o juiz, dirigindo-se a um homenzarrão forte que acabava de entrar com uma estrela de prata brilhando-lhe no peito.
— Vim assim que recebi o aviso — replicou o recém-chegado, com voz forte e profunda.
— Bem, o importante é que já aqui está. Prenda esse homem — acrescentou apontado para Henry Kinastor.
— Você é que fez o trabalho da diligência, não é verdade? — interrogou o juiz, voltando-se tranquilamente para o texano.
— Eu próprio — confirmou o jovem.
— Tinha interesse em o conhecer.
— Também eu me alegro em o ver. Se soubesse que já tinha preenchido a vaga de Rust, teria ido vê-lo diretamente.
— É pena que o não tenha feito.
— Mas que diabos! Não me ouviu? — chiou o irascível gorducho.
— Claro que sim, Bannard. Mas deve tranquilizar-se porque está fora de si.
— Ficarei tranquilo assim que tiver prendido esse Kinastor.
— De que o acusa?
— Não interessa. Você mete-o na prisão e não se rale com o resto.
— Se pensa que aceitei o cargo para satisfazer as suas questões pessoais, está completamente enganado. Acalme-se. Ouvi parte do que lhe estava dizendo Kinastor e julgo que devemos ouvir o resto. Quer continuar? — acrescentou, dirigindo--se ao jovem.
— Foi para isso que aqui vim — disse Kim, satisfeito com a feição que assunto estava a tomando —. Conheci Rust em Lubbock, e sendo eu «sheriff» daquele distrito deu-me bastante trabalho. Embora não pudesse comprovar as suas atividades à margem da Lei, o seu comportamento libertino e escandaloso deu-me pé para o expulsar do lugar, uma vez calados os seus protestos um tanto violentos. Isto faz-me suspeitar que estivesse em contacto com os foragidos, já que ele próprio não tem sido outra coisa desde há muitos anos. Neste caso, compreenderão que o seu trabalho foi o de obstaculizar todo o possível esclarecimento sobre a identidade dos criminosos.
— Isso é aventurar demasiado.
— Não tanto. Conheço perfeitamente os seus antecedentes.
— Pode ter tentado refazer a sua vida.
— Se assim fosse não tinha por que fugir.
— Talvez por medo.
— Medo, claro, mas não a um encontro pessoal, já que particularmente nada tenho contra ele. O seu medo é que se descubra a organização e, portanto, o seu contacto com ela.
— Gostaria que me prestasse colaboração, Mr. Kinastor — disse então o «sheriff» —. Você é um homem experimentado, enquanto eu não sou mais que um homem honrado e de boa vontade. Não sei que fazer nem por onde começar. Quer prestar-me esse serviço?
— Precisamente para isso é que aqui vim. —Kim não quis olhar o juiz, perguntando a si próprio, divertido, o que estaria ele pensando e esperando quase uma explosão —. Perece-me que em primeiro lugar deve proceder à exumação dos corpos dos homens que acompanhavam Jefferson Peck. Não creio que fossem forasteiros, e muito menos desconhecidos. Se assim fosse, queria dizer que os foragidos viveriam escondidos entre os montes e, além disso não haveria necessidade de que aparecessem com os rostos cobertos.
— Porque não os examinaram ali mesmo?
— Porque naquele momento não me interessava nem os poderia reconhecer, visto que sou forasteiro, a presença das mulheres obrigava-nos a afastá-las quanto antes daquele lugar e não conhecendo então o «sheriff», considerei que aquilo era sua incumbência.
— Qual é a sua opinião, Bannard?
— A atuação desses bandidos prejudica-nos demasiado para que possa fazer objeção a qualquer coisa que nos possa conduzir à sua descoberta. Há que examinar esses corpos.
— E fazê-lo antes que transcenda esta intenção. De contrário, expomo-nos a que se adiantem fazendo desaparecer os corpos — acrescentou Kim, olhando o juiz com franca simpatia.
O homem podia ser irascível e partidário, mas estava demonstrando saber sobrepor-se às suas paixões ante o cumprimento do dever.
— Agora mesmo me vou ocupar disso — disse o «sheriff».

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