Um silêncio opressivo se seguiu às detonações, durante o qual Kim se levantou, examinando com um rápido olhar o que poderia chamar-se campo de batalha. Todos os homens tinham já o revólver empunhado, mas só o rancheiro chamado Clarke havia disparado, e ainda se desprendia um fiozinho de fumo do seu «Colt».,
— Obrigado, Mr. Clarke — disse o jovem sorrindo —. Sem dúvida salvou-me a vida.
— Todos nós lhe devemos a nossa — replicou o homem gordo com um leve encolher de ombros. — Diabos, Kinastor! Você é endiabradamente rápido com esses seus feios brinquedos!
— Você está ferido — interveio Madge Gray, separando-se da sua sobrinha Vivian a quem tinha ajudado a levantar-se —. Deixe-me fazer--lhe um curativo provisório até que o médico o veja.
Kim olhou as duas senhoras com admiração. Ambas estavam pálidas como mortos, mas não haviam dado um só grito e demonstravam um domínio muito pouco habitual em pessoas do seu sexo.
— Ainda tenho um pouco de «whisky» neste frasco — ofereceu o condutor, aproximando-se seguido do seu companheiro —. Servirá de desinfetante enquanto não dispusermos de arnica.
Num momento o rodearam homens e mulheres, ajudando-o a despojar-se da camisa, descobrindo os buracos sanguinolentos na parte interior do braço direito, quase no sovaco, que só por milagre não tinha interessado o osso.
— Eu sou o responsável — disse então Walter Gray com o rosto contraído.
— Com efeito — replicou Kinastor, que não sentia grande simpatia pelo homem —. Você tem a língua demasiado comprida.
O rancheiro moveu-se inquieto, mas guardou silêncio. Era evidente que não estava acostumado a suportar repreensões, mas encontrava-se demasiado impressionado pelo risco corrido e, sobretudo, pelo medo sofrido ao compreender, embora tarde, ao que havia exposto sua filha e irmã com a sua impulsiva exclamação.
— Esteve importunando-me com as suas perguntas e suspeitas — prosseguiu o texano duramente — e, no entanto, ainda julgando-me um proscrito, faz menção do dinheiro que vai na bagagem, traindo a confiança desse tal Hensler. Não pode estar calado?
— Todos lhe estamos muito agradecidos por nos ter salvo a vida, mas isso não lhe dá direito a injuriar o meu pai — interveio a jovem, furiosa.
Provavelmente Kim não havia feito na sua vida um discurso tão comprido e, irritado, encerrou-se num hostil mutismo, enquanto Madge acabava de lhe ligar a ferida com o espesso véu que levava para se proteger do pó, depois de a cobrir com um pano limpo molhado em «whisky».
— Compreendo o seu estado de ânimo, Mr. Kinastor — começou o condutor quando o curativo terminou —. Provavelmente eu estaria pior se tivesse recebido uma ração de chumbo, mas Walter Gray é novo nestas paragens. Veio do Lago Honey, na alta Califórnia, montou um rancho magnífico com um bom punhado de gado, mas os ladrões de gado estão atacando-o de uma forma vergonhosa. Trouxe os seus vaqueiros da Califórnia e não tem nenhum homem que saiba como os conduzir. Em menos de um ano perdeu mais de sete mil vacas e uma centena de cavalos.
— Estão assim tão mal as coisas? — murmurou o jovem, francamente assombrado, sentindo que se desvanecia o seu aborrecimento.
— Não estão boas para ninguém, mas para Gray imensamente mal.
— Estou fracassando aqui, Kinastor — interveio o rancheiro —. Compreenda o meu ódio pelos foragidos que me estão arruinando e a minha surpresa ao reconhecer esse Jefferson Peck, que foi quem me vendeu o rancho. Eu ofereci-lhe aquele punhal com cabo de jade que adquiri a um velho cozinheiro chinês que tive na Califórnia, e não pude conter o meu assombro ao vê-lo. Está bem.
— Sinto muito haver-me mostrado um pouco rude.
— Você é um herói muito bruto — disse a linda rapariga, dissipando com um sorriso o mau efeito que poderiam causar as suas palavras —. Vou ter todo o corpo magoado durante uma semana.
— Não podia ter estado com contemplações —desculpou-se o texano —. Lamento tê-la magoado.
— Não tome as minhas palavras a sério. Se não se tivesse ocupado de mim, é quase seguro que não teria sido ferido. Estou-lhe muito agradecida.
— Bom — interveio o condutor —. Precisamos de continuar a viagem sem mais perda de tempo.
— Mas não podemos deixar assim os corpos destes desgraçados! Não é humano por muito bandidos que fossem.
— Ao chegar a Plagstaff preveniremos o xerife, minha senhora, e ele se encarregará de os recolher.
— Tu virás agora connosco, Vivian. Não quero que continues na boleia.
— Está bem, Mad.
— Não, Mr. Kinastor. Você sente-se aí com Vivian. Mr. Clarke fará o favor de se sentar junto de nós, para o seu braço ficar à vontade.
— Mas a senhora irá incomodada — protestou o jovem —. Eu posso ir na baleia.
— De forma alguma. Além disso quero-lhe pedir uma coisa.
Kim olhou-a um pouco admirado, pensando no que lhe poderia pedir aquela mulher.
— Estou à sua disposição, minha senhora.
— É verdade que procura trabalho?
— Assim é.
— Como vaqueiro?
— Exatamente.
— No entanto, já não é tão jovem como a maioria dos «cow-boys» que tenho conhecido.
— Vou fazer trinta anos — replicou olhando-a inquisitivamente.
Pensara onde queria ela ir parar com aquele interrogatório.
— Trabalhou sempre como vaqueiro?
— Na realidade há algum tempo que o não faço. Três anos, para ser exato.
— Já dei conta que no Far-West não se devem fazer perguntas sobre o passado de um homem, mas ... — esteve um momento indecisa, para depois continuar com resolução —: Poderia dizer-me o que tem feito durante este tempo?
Henry Kinastor permaneceu silencioso durante alguns instantes nos quais só o ranger da diligência e o ritmo galopar dos cavalos interrompeu o silêncio que se seguiu à atrevida pergunta. Propusera-se esquecer o passado, e se fosse um homem quem lhe tivesse formulado a pergunta, tê-lo-ia mandado passear sem contemplações de nenhuma espécie, mas tratando-se de uma mulher a coisa era diferente. Voltou a olhá-la, agora em forma apreciativa, dando-se então conta de que merecia a pena fazê-lo.
Era bastante mais jovem do que julgara a princípio, já que deviam faltar-lhe dois ou três anos para os trinta, e só fixando-se detalhadamente pôde advertir a beleza dos seus olhos grandes e rasgados, sombreados por compridas pestanas que tornavam ainda mais profunda a negrura dos seus olhos, o suave desenho dos seus lábios carnudos e a delicada oval do seu rosto pequeno.
Era talvez a sua austera forma de vestir e pentear o seu cabelo, negro como a asa de um corvo o que a fazia passar despercebida, sobretudo pelo contraste com a sua sobrinha, viva, alegre, cheia de vida e colorido, com os seus dezoito ou dezanove anos em pleno florescimento.
E contra todos os 'seus propósitos sentiu-se arrastado a contar-lhe todo aqueles anos de lutas constantes de perseguição e de morte. Uma vez começado, as palavras afluíram aos seus lábios e, embora sumariamente, fez, como nunca, um relato muito completo daqueles anos como xerife de um dos lugares mais rudes e ferozes do Oeste.
— Mas tudo isso é maravilhoso! — disse alegremente Vivian Gray, fixando-o com os seus olhou luminosos sem ocultar a admiração que sentia por ele —. Tem de me contar com vagar alguma das suas terríveis aventuras.
No íntimo de Kim produziu-se um vazio inexplicável. Por um lado, sentia-se satisfeito pelo entusiasmo demonstrado tão manifestamente e sem reservas pela deliciosa e impulsiva rapariga, mas, por outro lado, lamentou-se, embora de forma inconsciente não se encontrar só com Madge Gray. Havia qualquer coisa na profundidade dos seus olhos negros um brilho que desapareceu ao estalar o entusiasmo da sua sobrinha, que lhe teria agradado analisar com mais calma.
— Pressenti algo tempestuoso, mas não mau, na sua vida, Mr. Kinastor — disse ela com a sua voz doce e calma —. O hermetismo de que faz gala, os seus traços duros, essas rugas prematuras e qualquer coisa de amargo no seu olhar, falaram-me da sua vida antes que você o fizesse. Perdoa-me o ter-lhe feito recordar?
— Nada tenho a perdoar. Estou assombrado de lhes ter contado esta história, mas creia que habitualmente não sou tão charlatão...
— Pois alegro-me que tenha saído dos seus costumes — afirmou Vivian —. Quero ser sua amiga, Henry Kinastor. Como lhe chamam os seus amigos?
— Não os tenho — sorriu melancolicamente o texano.
— Deve dizer que não tinha, já que agora nos tem a nós. Henry não me agrada e Kinastor é muito grande de forma que lhe chamarei Kim. Não se aborrece, não é verdade?
O palrar alegre e vivaz da rapariguinha trazia calor no coração do homem, que a olhava embevecido. Ah, se ele tivesse tido uma irmãzinha como aquela! Jamais se teria convertido num ser duro e azedo como este Henry Kinastor.
— De forma alguma, menina Gray.
— Mas você deverá chamar-me Vivian.
— Está bem, Vivian — sorriu divertido pelo tom imperativo da rapariga.
— Assim gosto — e voltando-se para a sua tia prosseguiu com graciosa transição —: Perdoa que te tenha interrompido, Mad. Porque não lhe dizes de uma vez que queres que trabalhe para nós?
— Com efeito, era isso o que lhe queria dizer — assentiu Madge Gray, dirigindo-se a Kim, um pouco ruborizada pela indiscrição da sobrinha —. Quer trabalhar para mim?
— Para si? — surpreendeu-se —. Mas também é rancheira?
Meu irmão e eu' somos sócios, e embora ele assuma a direção tenho a certeza de que se você se pusesse à frente do pessoal as coisas melhorariam.
— Você que tem a dizer a isto? — perguntou Kim, voltando-se para Walter.
— Estou absolutamente de acordo com Mad, e se não lhe fiz antes a mesma proposta foi por temer que a não recebesse com agrado.
— Já não me crê um foragido perigoso?
— Peço-lhe que desculpe as minhas estúpidas suspeitas. Compreendo que não poderá ter formado muito boa opinião a meu respeito, mas asseguro-lhe que normalmente não sou tão rematadamente imbecil. Quer aceitar a proposta da minha irmã?
— Condições?
— As que julgar justas.
— Deve notar que não conheço o país nem as condições em que lutam. Levarei algum tempo a ambientar-me e além disso, agora estou ferido.
— O seu ferimento foi produzido por minha causa, e quanto a tempo pode tomar o que quiser — o homem parecia ansioso de que o vaqueiro aceitasse.
-- Não deve precipitar-se — interveio Clarke. — Pense com calma e não se esqueça de que esses três foragidos que deixámos na estrada têm amigos que tentarão vingá-los. Você já sabe o que ê lutar, e estará só ante uma numerosa quadrilha de perigosos pistoleiros. Se aceita o meu conselho, abandone Plagstaff o mais rapidamente possível.
Kim olhou o homem fixamente, francamente assombrado. Não lhe tinha parecido, apesar da sua gordura supérflua, daqueles que fogem ao perigo e nunca teria esperado tão prudente conselho.
— Agradeço-lhe, Mr. Clarke, mas não foi voltando as costas que consegui sobreviver três anos em Lubbock.
— Assim o entendi, mas também me pareceu compreender que estava enfastiado desse contínuo batalhar.
— Uma coisa é estar cansado de perseguir criminosos, e outra, muito diferente, que deite a correr por não ser simpático a uma quadrilha deles.
— Em todo o caso eu aconselhei-o baseando-me no meu conhecimento do lugar e das gentes. Naturalmente, você fará o que achar conveniente.
— Não me interprete mal por favor. Repito que que agradeço o seu interesse.
— No fim de contas, Mr. Clarke tem razão. Nada o liga à região nem a nós, e não tem por que correr riscos desnecessários.
— Peço que não continuemos com esta discussão — disse Kim, respondendo a Madge. E voltando-se para Walter Gral prosseguiu: — Quanto a tempo não creio necessitar muito. Tem bons cavalos ou necessitarei comprar um em Flagstaff?
— Não se preocupe com isso — voltou a intervir ela, sem dar tempo a que seu irmão respondesse —. Tenho verdadeira paixão por esses animais e trouxe meia dezena da Califórnia. Uns corcéis como nunca se viram. Todos estão à sua disposição. –
-- Belo! Se de antemão não tivesse decidido aceitar o seu oferecimento, agora sem dúvida alguma que o faria. Poucas coisas há que me entusiasmem tanto como um bom cavalo.
— Pois espere até ver os de Mad — disse Vivian, alegremente —. São maravilhosos!
— Quando começaram os roubos fizemos uma pequena cavalariça ao lado da casa e não se atreveram a tanto. Ainda que a cada instante o esteja temendo.
— Você é um homem afortunado — sorriu Walter —. O próprio Clarke já lhe quis comprar um para o seu filho e Mad sempre se mostrou irredutível.
— Previa que não tardaria o momento em que nos seria necessário dispor dos melhores animais. E já vês, aproxima-se a luta, e sem dúvida a vantagem será sempre daquele que estiver melhor montado, tanto na perseguição como na fuga.
— Já estou desejando vê-los — sorriu Kim, verdadeiramente interessado.
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— Obrigado, Mr. Clarke — disse o jovem sorrindo —. Sem dúvida salvou-me a vida.
— Todos nós lhe devemos a nossa — replicou o homem gordo com um leve encolher de ombros. — Diabos, Kinastor! Você é endiabradamente rápido com esses seus feios brinquedos!
— Você está ferido — interveio Madge Gray, separando-se da sua sobrinha Vivian a quem tinha ajudado a levantar-se —. Deixe-me fazer--lhe um curativo provisório até que o médico o veja.
Kim olhou as duas senhoras com admiração. Ambas estavam pálidas como mortos, mas não haviam dado um só grito e demonstravam um domínio muito pouco habitual em pessoas do seu sexo.
— Ainda tenho um pouco de «whisky» neste frasco — ofereceu o condutor, aproximando-se seguido do seu companheiro —. Servirá de desinfetante enquanto não dispusermos de arnica.
Num momento o rodearam homens e mulheres, ajudando-o a despojar-se da camisa, descobrindo os buracos sanguinolentos na parte interior do braço direito, quase no sovaco, que só por milagre não tinha interessado o osso.
— Eu sou o responsável — disse então Walter Gray com o rosto contraído.
— Com efeito — replicou Kinastor, que não sentia grande simpatia pelo homem —. Você tem a língua demasiado comprida.
O rancheiro moveu-se inquieto, mas guardou silêncio. Era evidente que não estava acostumado a suportar repreensões, mas encontrava-se demasiado impressionado pelo risco corrido e, sobretudo, pelo medo sofrido ao compreender, embora tarde, ao que havia exposto sua filha e irmã com a sua impulsiva exclamação.
— Esteve importunando-me com as suas perguntas e suspeitas — prosseguiu o texano duramente — e, no entanto, ainda julgando-me um proscrito, faz menção do dinheiro que vai na bagagem, traindo a confiança desse tal Hensler. Não pode estar calado?
— Todos lhe estamos muito agradecidos por nos ter salvo a vida, mas isso não lhe dá direito a injuriar o meu pai — interveio a jovem, furiosa.
Provavelmente Kim não havia feito na sua vida um discurso tão comprido e, irritado, encerrou-se num hostil mutismo, enquanto Madge acabava de lhe ligar a ferida com o espesso véu que levava para se proteger do pó, depois de a cobrir com um pano limpo molhado em «whisky».
— Compreendo o seu estado de ânimo, Mr. Kinastor — começou o condutor quando o curativo terminou —. Provavelmente eu estaria pior se tivesse recebido uma ração de chumbo, mas Walter Gray é novo nestas paragens. Veio do Lago Honey, na alta Califórnia, montou um rancho magnífico com um bom punhado de gado, mas os ladrões de gado estão atacando-o de uma forma vergonhosa. Trouxe os seus vaqueiros da Califórnia e não tem nenhum homem que saiba como os conduzir. Em menos de um ano perdeu mais de sete mil vacas e uma centena de cavalos.
— Estão assim tão mal as coisas? — murmurou o jovem, francamente assombrado, sentindo que se desvanecia o seu aborrecimento.
— Não estão boas para ninguém, mas para Gray imensamente mal.
— Estou fracassando aqui, Kinastor — interveio o rancheiro —. Compreenda o meu ódio pelos foragidos que me estão arruinando e a minha surpresa ao reconhecer esse Jefferson Peck, que foi quem me vendeu o rancho. Eu ofereci-lhe aquele punhal com cabo de jade que adquiri a um velho cozinheiro chinês que tive na Califórnia, e não pude conter o meu assombro ao vê-lo. Está bem.
— Sinto muito haver-me mostrado um pouco rude.
— Você é um herói muito bruto — disse a linda rapariga, dissipando com um sorriso o mau efeito que poderiam causar as suas palavras —. Vou ter todo o corpo magoado durante uma semana.
— Não podia ter estado com contemplações —desculpou-se o texano —. Lamento tê-la magoado.
— Não tome as minhas palavras a sério. Se não se tivesse ocupado de mim, é quase seguro que não teria sido ferido. Estou-lhe muito agradecida.
— Bom — interveio o condutor —. Precisamos de continuar a viagem sem mais perda de tempo.
— Mas não podemos deixar assim os corpos destes desgraçados! Não é humano por muito bandidos que fossem.
— Ao chegar a Plagstaff preveniremos o xerife, minha senhora, e ele se encarregará de os recolher.
— Tu virás agora connosco, Vivian. Não quero que continues na boleia.
— Está bem, Mad.
— Não, Mr. Kinastor. Você sente-se aí com Vivian. Mr. Clarke fará o favor de se sentar junto de nós, para o seu braço ficar à vontade.
— Mas a senhora irá incomodada — protestou o jovem —. Eu posso ir na baleia.
— De forma alguma. Além disso quero-lhe pedir uma coisa.
Kim olhou-a um pouco admirado, pensando no que lhe poderia pedir aquela mulher.
— Estou à sua disposição, minha senhora.
— É verdade que procura trabalho?
— Assim é.
— Como vaqueiro?
— Exatamente.
— No entanto, já não é tão jovem como a maioria dos «cow-boys» que tenho conhecido.
— Vou fazer trinta anos — replicou olhando-a inquisitivamente.
Pensara onde queria ela ir parar com aquele interrogatório.
— Trabalhou sempre como vaqueiro?
— Na realidade há algum tempo que o não faço. Três anos, para ser exato.
— Já dei conta que no Far-West não se devem fazer perguntas sobre o passado de um homem, mas ... — esteve um momento indecisa, para depois continuar com resolução —: Poderia dizer-me o que tem feito durante este tempo?
Henry Kinastor permaneceu silencioso durante alguns instantes nos quais só o ranger da diligência e o ritmo galopar dos cavalos interrompeu o silêncio que se seguiu à atrevida pergunta. Propusera-se esquecer o passado, e se fosse um homem quem lhe tivesse formulado a pergunta, tê-lo-ia mandado passear sem contemplações de nenhuma espécie, mas tratando-se de uma mulher a coisa era diferente. Voltou a olhá-la, agora em forma apreciativa, dando-se então conta de que merecia a pena fazê-lo.
Era bastante mais jovem do que julgara a princípio, já que deviam faltar-lhe dois ou três anos para os trinta, e só fixando-se detalhadamente pôde advertir a beleza dos seus olhos grandes e rasgados, sombreados por compridas pestanas que tornavam ainda mais profunda a negrura dos seus olhos, o suave desenho dos seus lábios carnudos e a delicada oval do seu rosto pequeno.
Era talvez a sua austera forma de vestir e pentear o seu cabelo, negro como a asa de um corvo o que a fazia passar despercebida, sobretudo pelo contraste com a sua sobrinha, viva, alegre, cheia de vida e colorido, com os seus dezoito ou dezanove anos em pleno florescimento.
E contra todos os 'seus propósitos sentiu-se arrastado a contar-lhe todo aqueles anos de lutas constantes de perseguição e de morte. Uma vez começado, as palavras afluíram aos seus lábios e, embora sumariamente, fez, como nunca, um relato muito completo daqueles anos como xerife de um dos lugares mais rudes e ferozes do Oeste.
— Mas tudo isso é maravilhoso! — disse alegremente Vivian Gray, fixando-o com os seus olhou luminosos sem ocultar a admiração que sentia por ele —. Tem de me contar com vagar alguma das suas terríveis aventuras.
No íntimo de Kim produziu-se um vazio inexplicável. Por um lado, sentia-se satisfeito pelo entusiasmo demonstrado tão manifestamente e sem reservas pela deliciosa e impulsiva rapariga, mas, por outro lado, lamentou-se, embora de forma inconsciente não se encontrar só com Madge Gray. Havia qualquer coisa na profundidade dos seus olhos negros um brilho que desapareceu ao estalar o entusiasmo da sua sobrinha, que lhe teria agradado analisar com mais calma.
— Pressenti algo tempestuoso, mas não mau, na sua vida, Mr. Kinastor — disse ela com a sua voz doce e calma —. O hermetismo de que faz gala, os seus traços duros, essas rugas prematuras e qualquer coisa de amargo no seu olhar, falaram-me da sua vida antes que você o fizesse. Perdoa-me o ter-lhe feito recordar?
— Nada tenho a perdoar. Estou assombrado de lhes ter contado esta história, mas creia que habitualmente não sou tão charlatão...
— Pois alegro-me que tenha saído dos seus costumes — afirmou Vivian —. Quero ser sua amiga, Henry Kinastor. Como lhe chamam os seus amigos?
— Não os tenho — sorriu melancolicamente o texano.
— Deve dizer que não tinha, já que agora nos tem a nós. Henry não me agrada e Kinastor é muito grande de forma que lhe chamarei Kim. Não se aborrece, não é verdade?
O palrar alegre e vivaz da rapariguinha trazia calor no coração do homem, que a olhava embevecido. Ah, se ele tivesse tido uma irmãzinha como aquela! Jamais se teria convertido num ser duro e azedo como este Henry Kinastor.
— De forma alguma, menina Gray.
— Mas você deverá chamar-me Vivian.
— Está bem, Vivian — sorriu divertido pelo tom imperativo da rapariga.
— Assim gosto — e voltando-se para a sua tia prosseguiu com graciosa transição —: Perdoa que te tenha interrompido, Mad. Porque não lhe dizes de uma vez que queres que trabalhe para nós?
— Com efeito, era isso o que lhe queria dizer — assentiu Madge Gray, dirigindo-se a Kim, um pouco ruborizada pela indiscrição da sobrinha —. Quer trabalhar para mim?
— Para si? — surpreendeu-se —. Mas também é rancheira?
Meu irmão e eu' somos sócios, e embora ele assuma a direção tenho a certeza de que se você se pusesse à frente do pessoal as coisas melhorariam.
— Você que tem a dizer a isto? — perguntou Kim, voltando-se para Walter.
— Estou absolutamente de acordo com Mad, e se não lhe fiz antes a mesma proposta foi por temer que a não recebesse com agrado.
— Já não me crê um foragido perigoso?
— Peço-lhe que desculpe as minhas estúpidas suspeitas. Compreendo que não poderá ter formado muito boa opinião a meu respeito, mas asseguro-lhe que normalmente não sou tão rematadamente imbecil. Quer aceitar a proposta da minha irmã?
— Condições?
— As que julgar justas.
— Deve notar que não conheço o país nem as condições em que lutam. Levarei algum tempo a ambientar-me e além disso, agora estou ferido.
— O seu ferimento foi produzido por minha causa, e quanto a tempo pode tomar o que quiser — o homem parecia ansioso de que o vaqueiro aceitasse.
-- Não deve precipitar-se — interveio Clarke. — Pense com calma e não se esqueça de que esses três foragidos que deixámos na estrada têm amigos que tentarão vingá-los. Você já sabe o que ê lutar, e estará só ante uma numerosa quadrilha de perigosos pistoleiros. Se aceita o meu conselho, abandone Plagstaff o mais rapidamente possível.
Kim olhou o homem fixamente, francamente assombrado. Não lhe tinha parecido, apesar da sua gordura supérflua, daqueles que fogem ao perigo e nunca teria esperado tão prudente conselho.
— Agradeço-lhe, Mr. Clarke, mas não foi voltando as costas que consegui sobreviver três anos em Lubbock.
— Assim o entendi, mas também me pareceu compreender que estava enfastiado desse contínuo batalhar.
— Uma coisa é estar cansado de perseguir criminosos, e outra, muito diferente, que deite a correr por não ser simpático a uma quadrilha deles.
— Em todo o caso eu aconselhei-o baseando-me no meu conhecimento do lugar e das gentes. Naturalmente, você fará o que achar conveniente.
— Não me interprete mal por favor. Repito que que agradeço o seu interesse.
— No fim de contas, Mr. Clarke tem razão. Nada o liga à região nem a nós, e não tem por que correr riscos desnecessários.
— Peço que não continuemos com esta discussão — disse Kim, respondendo a Madge. E voltando-se para Walter Gral prosseguiu: — Quanto a tempo não creio necessitar muito. Tem bons cavalos ou necessitarei comprar um em Flagstaff?
— Não se preocupe com isso — voltou a intervir ela, sem dar tempo a que seu irmão respondesse —. Tenho verdadeira paixão por esses animais e trouxe meia dezena da Califórnia. Uns corcéis como nunca se viram. Todos estão à sua disposição. –
-- Belo! Se de antemão não tivesse decidido aceitar o seu oferecimento, agora sem dúvida alguma que o faria. Poucas coisas há que me entusiasmem tanto como um bom cavalo.
— Pois espere até ver os de Mad — disse Vivian, alegremente —. São maravilhosos!
— Quando começaram os roubos fizemos uma pequena cavalariça ao lado da casa e não se atreveram a tanto. Ainda que a cada instante o esteja temendo.
— Você é um homem afortunado — sorriu Walter —. O próprio Clarke já lhe quis comprar um para o seu filho e Mad sempre se mostrou irredutível.
— Previa que não tardaria o momento em que nos seria necessário dispor dos melhores animais. E já vês, aproxima-se a luta, e sem dúvida a vantagem será sempre daquele que estiver melhor montado, tanto na perseguição como na fuga.
— Já estou desejando vê-los — sorriu Kim, verdadeiramente interessado.
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