quarta-feira, 15 de julho de 2020

BUF003.01 Um xerife abandona o cargo

Henry Kinastor viu as horas e atirou o cigarro fora. Havia chegado o momento!
Abandonou contrafeito o cómodo cadeirão situado atrás da grande secretária e comprovou que os seus revólveres saiam com facilidade dos seus coldres negros.
Como sempre sucedia naquelas ocasiões, haviam-no deixado só. Levava quase uma hora refletindo sobre o assunto e estava absolutamente decido a renunciar ao cargo de «sheriff» se, o que não era muito provável, conseguia sair da desesperada aventura em que se encontrava metido.
Ninguém podia acusá-lo de medroso uma vez que acabasse com Howar e, em última análise, era-lhe indiferente, visto que abandonaria a região. Sentia-se velho apesar de ainda não ter chegado à casa dos trinta, mas aqueles últimos três anos haviam sido de prova e estava cansado, melhor dito, esgotado.
Abandonou o gabinete e atravessando o passeio, cujas tábuas ressoaram ao serem pisadas pelos tacões das suas botas de vaqueiro, começou a andar pelo centro da poeirenta rua.
Lubbock dir-se-ia deserto. Não se via uma alma, mas sentia sobre si o olhar fixo de centenas de olhos. O calor apertava apesar da hora matinal e deitou para diante as amplas abas do seu chapéu para se proteger da luz deslumbrante.

No final da rua como se a terminasse, elevava-se o «saloon», um belo edifício de dois andares, propriedade de Howar, e do qual o «sheriff» se ia aproximando muito lentamente, vigiando-o atento porque aquele canalha era muito capaz de estar com uma carabina atrás de qualquer janela, disposto a desfechar-lhe um tiro ao menor descuido.
Com os nervos tensos foi-se aproximando vagarosamente e separavam-no apenas quinze jardas do imóvel quando as portas se abriram dando passagem a quatro homens que se distribuíram a ambos os lados da porta numa ampla frente que diminuía ainda mais as suas já escassas possibilidades.
— Quieto, Kim! — gritou um deles, no qual reconheceu Howar —. Não sejas louco e volta para o teu posto.
O jovem deteve-se, efetivamente, se bem que não lhe ocorresse a possibilidade de seguir a sugestão.
— Gus, Ransas e Brazos! — murmurou para si sentindo que o medo lhe apertava o peito como urna tenaz de ferro — Devem ter chegado esta noite, chamados por Howar.
Aqueles três homens eram pistoleiros, os piores da região. Todos o odiavam porque os havia perseguido raivosamente até os obrigar a refugiarem-se nas montanhas e agora, com a sua presença, evidenciavam o que sempre suspeitara: o seu contacto direto com Howar. Mas se já antes era difícil atacar o homem, agora era suicida.
— Disse-te que abandonasses Lubbock, Howar — exclamou levantando a voz enquanto um frio suor inundava a sua fronte —. Sela o teu cavalo e parte imediatamente!
— Porque hei de fazê-lo? Nada, tens contra mim.
— Só que és ladrão de gado e assassino, além de batoteiro. A presença desses homens demonstra o teu contacto com os ladrões.
— Já sei que não te sou simpático, mas não tens provas que demonstrem isso que dizes.
— Se as tivesse já estarias à sombra. És esperto, Howar, mas estou farto de ti e o mesmo ocorre a todas as pessoas decentes de Lubbock. Por isso te ordeno que partas imediatamente.
— Sinto não te poder satisfazer. Não vou abandonar a minha casa e os meus negócios só porque a minha presença não te agrada.
— Não vim para discutir. Ou te vais embora ou expulso-te.
— Pensa bem, Henry Kinastor. Não estou disposto a suportar este ultraje e defender-me-ei. És rápido e destro, mas nós também não somos mancos e estás só. Repara bem, Kim, só! Esses honrados cavaleiros pelo quais expões a vida abandonam-te quando lhes cheira a possibilidade de uns tiros. Não merece a pena que arrisques a pele por semelhante corja de cobardes.
— Muito bonito, Howar. Sempre tiveste facilidade de palavra, mas a questão continua sendo a mesma. Ou te vais embora ou te expulso.
— Sempre foste teimoso como uma mula. Bem, a minha resposta é esta. Se dás mais um passo nesta direção deixamos-te como um passador.
O pé de Kim levantou-se entre o pó e avançou até se apoiar de novo no solo. No mesmo instante, os seus olhos de falcão surpreenderam o movimento simultâneo daqueles homens e dando um ágil salto de costas, empunhou as suas armas com a celeridade de um raio, fazendo-as cuspir fogo e chumbo antes que os outros tivessem tido tempo de as tirar dos coldres.
Quase ao mesmo tempo de apertar os gatilhos, notou que havia falhado a Howar, mas Brazos, o mais perigoso dos quatro, dobrou-se violentamente sobre si mesmo como se tivesse recebido o coice de uma mula no estômago. Estava pronto!
Sem se entreter a disparar novamente, sabendo que não havia tempo para isso, voltou a saltar com felina agilidade, rodando pelo solo entre nuvens de fino pó que o cobria com uma camada de quase um palmo, até bater no alto rebordo do passeio.
Cinzento da cabeça aos pés, completamente invisível pela poeirada levantada começava a ver por entre aquele sujo nevoeiro notando então que os pistoleiros se retiravam para o interior do local sem deixarem de disparar na sua direção.
Um vulto escuro sobre o passeio demonstrou-lhe que havia diminuído em um o número dos seus adversários e pensou se teria sido essa a causa de lhes ter abandonado a coragem.
Disparou contra o último dos bandidos falhando-lhe em muito pouco e erguendo-se correu até à frontaria do edifício protegendo-se atrás de uma muralha de chumbo e sem um instante de vacilação mergulhou através das vidraças de uma das belas janelas que havia na fachada, entrando no «saloon» entre uma chuva de vidros partidos.
Ainda aturdido pela pancada, o ruído do vidro ao fazer-se em estilhaços e o fragor das detonações, o «sheriff» derrubou uma pesada mesa abrigando-se atrás dela para conseguir respirar.
Sentia o sangue correr-lhe pela cara e mãos, mas embora muito escandalosos, os seus ferimentos eram apenas pequenos e superficiais cortes sem importância alguma. Com o corpo estendido sobre o solo, Kim torturava o seu cérebro procurando a forma de poder sair do seu refúgio sem ser derrubado no mesmo instante.
Se tivesse um chapéu teria usado o velho truque de o mostrar por um lado enquanto ele aparecia pelo outro, mas perdera-o ao atirar-se ao chão e já era tarde para se lamentar em o não ter recolhido.
A sua situação era desesperada e ainda pior que uns momentos antes, pois embora tivesse diminuído em um o número dos seus inimigos, estes continuavam sendo uma maioria esmagadora, as distâncias eram mais curtas e, o pior, ignorava as suas posições, enquanto eles o tinham localizado sob o fogo dos seus revólveres.
No entanto não havia tempo a perder, já que a mesa não era um refúgio suficiente e com um leve encolher de ombros empurrou-a fazendo-a rodar, com a esperança de que a atenção dos seus adversários fosse retida pelo móvel, dando-lhe tempo para os localizar.
Assim foi, com efeito. E antes que viessem o seu vulto colado ao solo, rugiram os seus revólveres.
Howar e Gus tinham seguido o seu exemplo entrincheirando-se atrás de uma mesa, os dois juntos, mas Ransas ia deslizando junto ao balcão para o atacar pelo flanco.
Os três homens dispararam quase em uníssono contra a mesa julgando que o «sheriff» a utilizava fazendo-a rodar para procurar uma posição mais segura e antes que compreendessem o seu erro, Ransas era atirado contra o balcão, com uma bala entre os olhos, enquanto Gus e Howar desapareciam atrás do seu parapeito no momento justo de evitarem o projétil que passou assobiando sobre as suas cabeças.
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— Dois — disse Kim, enquanto se erguia de um salto e atravessava a sala correndo em busca do seguro parapeito que lhe proporcionaria o balcão.
Mas antes de alcançar o seu objetivo, viu surgirem os dois homens que ao escutarem o ruído dos seus passos julgaram poder caçá-lo desprevenido. No entanto, quando dispararam precipitadamente, atravessava já o ar como um bólido, num salto impressionante.
Resvalando sobre a superfície polida do balcão, caiu de cabeça no outro lado com uma pancada dolorosa mas sem ter sido atingido, e antes que pudesse proteger-se, uma chuva de garrafas derrubadas devido ao seu embate contra a prateleira, caiu-lhe sobre o corpo e a cabeça fazendo-o murmurar uma série de maldições enquanto se ajoelhava atrás do eficaz refúgio.
Agora a sua situação havia melhorado muito, mas sem um momento de descanso, voltou a carregar os revólveres e agarrando numa das garrafas atirou-a sobre o estrado de ripas que cobria o chão atrás do balcão, erguendo-se com as armas empunhadas.
Novas detonações se ouviram, estilhaçaram-se algumas garrafas atingidas pelos projéteis, mas como se a sorte quisesse premiar a sua audácia, novamente o agente da Lei saiu ileso, enquanto Howar se dobrava sobre si mesmo até cair sobre a aresta da mesa que rodou precipitando-o no solo com uma pancada surda.
Gus, desfigurado pelo medo, deixou cair o revólver, levantando os braços bem altos sobre a sua cabeça.
— Rendo-me, Kim! Rendo-me! — gritou, com voz estridente —. Por Deus, não dispares!
— Sai daí, Gus — replicou o «sheriff», horrível com a máscara de sangue e de pó que lhe cobria o rosto — Encosta-te à parede e evita todo o movimento suspeito se não queres ter uni desgosto.
O homem não precisou que lhe repetissem a ordem e saiu precipitadamente detrás da mesa. Cansado, saltou para o outro lado cio balcão, aproximando-se pausadamente do homem que jazia de bruços sobre o solo junto da mesa voltada, necessitando de fazer um grande esforço para dominar as náuseas que o invadiam. Um simples olhar bastou-lhe para comprovar que estava morto.
— Vamos, Gus. Sai adiante e muito cuidado.
O bandido saiu e ia a fazê-lo Kim, quando ouviu o potente disparo de uma carabina, seguido de um grito de agonia e, com uma imprecação, pressentindo o ocorrido saltou para a porta, chegando a tempo de ver como o seu prisioneiro caia pesadamente sobre as tábuas do passeio. O seu olhar penetrante percorreu a rua descobrindo imediatamente um homem que empunhava uma carabina ainda fumegante e, guardando os revólveres, dirigiu-se para ele.
— Porque fez isto, Lin? — perguntou com uma certa gaguez que só o importunava quando alguma coisa o indignava.
— Diabo, «sheriff»! Via Gus sair a correr e atirei-lhe julgando que você estava liquidado.
— Bem, homem. Você é muito valente quando se trata de disparar sobre um homem desarmado. Largue a carabina e acompanhe-me.
— Mas, Kim! Você não me vai prender! isso precisamente o que vou fazer. — Mas está louco! Esse homem esteve atirando sobre si e ao vê-lo aparecer julguei que o tinham morto.
— Se tinha vontade de lutar podia ter-me acompanhado e eu tê-lo-ia nomeado meu delegado. Mas esteve escondido até que viu que a luta estava decidida e ao ver sair este infeliz desarmado, compreendeu que nada tinha a temer e disparou sobre ele para se dar ares de herói, Mas enganou-se agora irá para uma das minhas celas sob a acusação de assassinato. Vamos já e não me obrigue a empregar a força.
— Henry Kinastor — gritou um homem de idade já madura, abandonando o armazém de que era proprietário ante o qual se havia detido o «sheriff», e avançando até se situar junto deste, ameaçando-o com um revólver —. Você está completamente louco e não permitirei que prenda o meu filho.
— Guarde esse brinquedo, Tate — replicou o jovem firmemente —. Ainda pode agradecer que eu não tivesse saldo antes, porque se o vejo a tempo, acabava-o com um tiro. O seu filhinho é um porco cobarde e o menos que merece é a forca.
— Isto é uma afronta e não o consentirei —gritou o chamado Tate, vermelho de indignação, gritando desaforadamente e gesticulando com o revólver.
Kinastor olhou-o com desprezo e deu um passo sem pressas, estendendo a mão até tomar a arma que lhe apontavam.
— Vamos, Lin — ordenou agarrando o rapazola por um braço.
— Mas, Kim — insistiu o pai, mais apaziguador agora —. Lin queria vingar a sua suposta morte e além disso, Gus era um assassino cuja perda não é de lamentar.
A rua deserta um momento antes, aparecia agora cheia de gente que se agrupava rodeando os três homens.
— Não se engane a si próprio, Tate. Lin não se podia enganar ao ver sair Gus desarmado e com os braços no ar. Não se canse.
— Recorrerei ao juiz — voltou a vociferar o homem —. Farei com que o expulsem do seu cargo.
—Pois aí o tem — replicou o «sheriff», cuja alta estatura dominava os que o rodeavam, vendo aproximar-se o magistrado.
— Que se passa, Kim? — perguntou ao chegar junto dele.
— Prendi Lin Tate por ter disparado a sangue frio sobre um homem desarmado, causando-lhe morte. Assassinato.
— Mas, Tom — interrompeu o armazenista que era amigo do juiz e um dos homens mais ricos e influentes da cidade —. O morto é Gus, esse assassino foragido.
— No fim de contas, Kim, só poupou aborrecimentos e trabalhos, visto que esse Gus teria sido enforcado, não acha?
— E o senhor? A vítima estava indefesa e sob a minha custódia. É um delito com todas as agravantes, que não pode passar por alto apenas porque o pai do criminoso é seu amigo.
— Não quero tomar as suas palavras em consideração. Sempre foi muito extremista, Kim.
É o seu único defeito.
— Talvez seja, mas não há dúvida, pelo menos para mim, que o que Lin Tate acaba de fazer é tão criminoso como os desmandos cometidos por esses foragidos, e muito mais cobarde.
— Vamos, Kim. Esses homens são bandidos, ladrões de gado e salteadores. Assim é, mas nenhum deles é capaz de disparar sobre uma pessoa indefesa, pelo único prazer de o fazer.
— Exagera.
— Em todo o caso será a justiça que o decidirá.
— Insiste em o prender?
— Sim.
— Aprecio-o, Kim, mas você é demasiado veemente e tergiversa os factos.
— Qual é a sua posição neste caso? De compreensão. O rapaz estaria excitado pela sua luta e ao ver sair Gus, sem reparar em nada mais, julgando como ele mesmo disse, que o haviam derrubado, disparou sem advertir que Gus se encontrava desarmado.
— Pensa desautorizar-me se prendo o homem?
— Ainda sentindo-o muito, ver-me-ia obrigado a fazê-lo. E eu sinto que isto não tivesse acontecido antes para que você e os Tate se encarregassem do trabalhinho de há uns instantes. De qualquer maneira, já havia tomado anteriormente a decisão de lhe devolver a minha placa e aqui a tem —murmurou furioso, arrancando a estrela do seu peito com um puxão tão violento que rasgou a camisa. — E agora, como na minha opinião o que este porco cobarde fez é uma canalhice do pior que eu já vi, aí vai para que se recorde.
Dispararam-se os seus músculos de aço, e um punho como uma rocha lançou o homem a várias, jardas de distância com os lábios sangrando, alguns dentes partidos e uma séria comoção que durante dois dias o deixou em estado inconsciente.
Mas este último detalhe nunca o soube Henry Kinastor, porque naquele mesmo dia, reunindo os seus escassos pertences, abandonou a povoação de Lubbock, situada na margem do Brazos e nos limites da Planície Destacada.

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