quinta-feira, 16 de julho de 2020

BUF003.02 Assalto frustrado à diligência

— Já se veem os Picos de S. Francisco! — disse o ganadeiro gordo que se sentava à sua direita.
— Dezasseis ou dezassete milhas mais e estaremos em Flagstatt.
— Estou desejando de chegar — afirmou outro homem já maduro, mas de aspeto ágil e forte, que se sentava em frente, ao lado de uma senhora de traços tão parecidos, se bem que muito mais doce, que não podiam negar o seu parentesco. — Tens estado inquieto todo o caminho e compreendo-o perfeitamente. O que não consigo explicar é que tenhas deixado que as senhoras te acompanhem.
— Já conheces a minha filha, Clarke, Empenhou-se em vir e não a pude dissuadir nem houve forma de o evitar. E claro, Madre que não vê mais que pelos seus olhos, concordou. Nem pensou sequer em deixar a sua menina só.
— Vocês homens são uns alarmistas. Quem os ouvisse diria que assaltam todas as diligências.
— Se não o fazem é porque esses bandidos estão muito bem informados e sabem sobejamente quando vale ou não a pena — replicou o seu irmão —. O que não compreendo é donde recebem as confidências.
— Melhor. Assim saberão que não levamos nada de valor.
— Enganas-te, Madge. Aí em cima vão trinta mil dólares em magos de notas.
— Como ?! — gritou o chamado Clarke, visivelmente alarmado —. É verdade o que dizes?
— Soube-o no último instante. Vi Hensler e ao saber que saíamos nesta diligência avisou-me na mais absoluta reserva. Agora já não importa que se saiba, já que não temos nenhuma paragem e não há que temer as indiscrições.

— Pois se eu o tivesse sabido esperaria até à próxima semana.
— Também eu o teria feito, mas Vivian não quis ouvir falar nisso. Está ansiosa por se encontrar novamente no rancho.
— Tanto tu como tua irmã miram demasiadamente esse diabito. Agora mesmo devia estar aqui, entre nós, em lugar de ir ao pé do condutor. Tens de ver que não é nenhum rapaz e essas coisas não são próprias de uma menina.
— Sim, já sei, mas sou incapaz de resistir às suas lamúrias e Madge é ainda mais branda que eu. Muitas vezes penso se não a estaremos estragando.
— Não digas tolices, Walter Graiy — interveio a sua irmã, com um leve rubor de enfado —. A rapariga é sã, alegre e forte não tem nada de toleima e gosta do sol e do ar, mas é de ouro puro, boa e toda coração. Não se estragaria mesmo que a mimássemos o dobro.
— Como seria isso possível? — riu o homem rechonchudo levantando os braços com cómico desespero.
Kim procurou recordar a pessoa que servia de tema naquela conversa e pensou que se tivesse uma irmãzinha assim, não teria perdido tão inutilmente os últimos anos da sua vida, nem se teria convertido num matador de homens.
Sem grande esforço acudiu à sua imaginação uma carita pequena e fina, de cor de bronze, tostada pelo sol, uns olhos claros, luminosos, com reflexos verdes e dourados, uma cabeleira espessa de cobre e ouro, uns lábios grossos, de belo desenho e uma figurinha grácil, deliciosamente torneada. Tão abstrato se encontrava que o alegre e falador Clarke teve de repetir a sua pergunta antes que o ouvisse.
— Já aqui esteve antes, Mr. Kinastor?
— Não. Há pouco tempo que estou no Arizona.
— Pois verá como gosta. É selvagem e agreste e junto a zonas exuberantes como a do Grande Canyon, temos outras tão estéreis como o deserto «pintado», onde não podem morar mais que os índios navajos. É pena que este mesmo selvagismo sirva de reclamo a que acorrem todos os indesejáveis dos estados limítrofes e até de mais longe.
— do Texas, não é verdade? — interveio o outro homem.
— Sim.
Henry Kinastor não havia sido nunca muito falador e teria preferido que o deixassem à margem como até então, pelo que não se mostrava muito cordial.
— Por aqui há muitos texanos, sobretudo na Cova do Tonto, e sinto dizer-lhe que nem todos são pessoas decentes.
— Em todas as partes há de tudo — replicou finalmente, com certa sequidão.
— Creio que os rurais estão limpando aquilo de foragidos e desordeiros — prosseguiu o homem, fixando o seu olhar distraído nos grandes revólveres que adornavam a cintura do jovem.
— Assim é — assentiu este, secamente.
— Ficará em Flagstaff? — continuou interrogando o rancheiro como se não percebesse as reticências do texano.
Na realidade o «ex-xerife» nunca havia sido muito paciente para com os indiscretos, mas como por um lado a presença de uma senhora o impedia de ser brusco, e por outro nada tinha a ocultar, conteve um sorriso irónico e procurou ser amável.
— Não estou muito certo, depende de me agradar o lugar.
— Vai gostar, jovem — interveio Clarke, que não se sentia muito à vontade com o interrogatório —. É- uma povoação grande e muito mexida. Ranchos extensos e prósperos nas imediações. pena que agora soframos uma verdadeira praga de ladrões de gado e foragidos de toda a espécie.
— Há facilidade em encontrar trabalho? —perguntou Kim, interessado.
— Não falta — assentiu o homem com certa reserva —. Mas agora os forasteiros não são muito bem acolhidos.
— Ouvi dizer que no Texas é quase um trabalho cotidiano a luta contra o roubo de gado — voltou a intervir Gray.
— Isso é um pouco exagerado, mas, claro, estamos habituados a defender-nos.
— Você também?
Nem Kim mesmo sabia como teria respondido, se não tivessem sido interrompidos pela seca detonação de um disparo e os gritos que se seguiram ao tiro. Um momento depois a diligência parava.
Um rápido olhar bastou ao veterano para se convencer de que os temores de Walter Gray se haviam confirmado, e por um momento teve a tentação de empunhar os revólveres, mas a recordação da rapariga fê-lo desistir. Levava consigo uns milhares de dólares, produto das suas economias durante mais de cinco anos, mas não acreditava que os encontrassem e não podia armar um tiroteio estando aquelas mulheres ali.
— Saiam daí com as mãos sobre a cabeça — ordenou perentória uma voz.
Com a fria serenidade que lhe dava toda a classe de transes apurados, Kim observou que eram só três mascarados os que efetuavam o assalto, um por cada lado do carro, e outro na frente, dominando o condutor e o vigia. Uma vez mais lamentou a presença das mulheres, pois doutra maneira teria resolvido a situação num abrir e fechar de olhos. Mas como, estando elas, não podia agir, pelo menos no momento, saltou tranquilamente da diligência e sem fazer caso das pistolas que o ameaçavam, estendeu a mão para ajudar a descer a jovem empoleirada na boleia, notando, divertido, que ela estava mais indignada que assustada.
— Ponham-se em fila e não façam tolices —ordenou um dos salteadores com voz rouca e sem dúvida disfarçada.
O homem que se situava à frente dos cavalos aproximou-se para cobrir o grupo, enquanto o do outro lado do carro subia ao tejadilho para tirar a saca do correio, não sem antes se convencer de que continha o que procuravam.
Tudo parecia indicar que aos bandidos nada mais lhes interessava além do saco e o assunto terminaria sem mais incidentes; descia já o foragido empoleirado no tejadilho, quando o rancheiro Gray lançou uma exclamação atraindo a atenção de todos.
Algo, um pressentimento talvez, disse a Kim que ia cometer uma estupidez e no mesmo instante, com aquela violência e rapidez que o caracterizavam, atuou sem vacilações. Os foragidos ainda não os haviam desarmado, confiados na presença das mulheres ou talvez porque nenhum se queria: aproximar demasiado, dada a maioria dos ocupantes da diligência, até que não estiveram os três reunidos, para não correrem riscos sem se acharem devidamente cobertos.
— Jefferson Peck! — gritou o rancheiro ante a exultação do reconhecimento, sem pensar que se condenava e condenava os demais também a uma morte certa, já que os bandidos precisariam calar definitivamente as suas bocas para evitarem ser descobertos.
Mas, ressoava ainda no ar aquele grito, quando Kim empurrou com força a jovem que permanecia ao seu lado, atirando-a ao solo e desviando com isso o disparo que teria acabado inevitavelmente com o rancheiro, ao atrair para si a atenção dos foragidos, e deixando-se cair de joelhos com o tempo justo para evitar a bala que lhe procurava o corpo, empunhou os seus grandes «Colts» com aquela celeridade que durante anos fora o pesadelo dos proscritos de todo o noroeste do Texas, fazendo-as saltar nas suas mãos com secos estalidos.
Os factos sucederam-se com tal rapidez, que uns e outros viajantes e salteadores, com exceção em cada lado de Kim e Peck, ficaram momentaneamente aturdidos, embora refazendo-se se aprestassem a intervir naquele duelo mortal.
Ao primeiro disparo do texano, o mascarado chamado Peck foi lançado para trás devido ao impacto do projétil que o alcançou no peito, ao mesmo tempo que o braço direito de Kim saía inutilizado ao ser atingido muito alto, quase no ombro, mas uma fração de segundo mais tarde já replicava concentrando o fogo do braço útil sobre o foragido que o havia ferido, e sem aguarda a comprovar o resultado, já que estava esperando dum momento para o outro ser alvo dos disparos do terceiro bandido, deixou-se cair no solo, girando sobre si mesmo para se voltar contra o último antagonista, que sobre uma roda, agarrado por uma mão ao pequeno suporte de ferro do tecto da diligência, surpreendido no momento de ir a saltar para a estrada, acabava de empunhar o seu revólver e se dispunha a disparar quase à queima-roupa.
Durante uns fogazes instantes, o jovem julgou que havia chegado o seu último momento, encarando o negro cano do «Colt» que a uns escassos pés de distância, lhe apontava, enquanto num esforço desesperado procurava completar a volta para ficar em posição de disparar, embora de antemão soubesse que não chegava a tempo.
Precisamente naquele instante, antecipando-se em frações de segundo ouviu-se um tiro que quase se confundiu com o da arma que lhe apontava, de cuja boca viu sair uma língua de fogo, enquanto a terra saltava para a sua cara cegando-o momentaneamente ao salpicar-lhe os olhos, mas mesmo assim, guiando-se pelo hábito de disparar sem fazer pontaria, Kim premiu uma e outra vez o gatilho da sua arma, e só rodando rapidamente sobre si mesmo pôde evitar que lhe caísse em cima o corpo crivado do homem.


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