Mas ao chegar ao fim das escadas, uma nova surpresa os estava esperando. O corpo de Neal, o vaqueiro a quem Hugh deixara fora de combate antes de subir ao escritório, continuava na mesma posição em que este o deixara. E quatro homens, olhando a posição do caído, contemplavam-no atentamente.
Na melhor das hipóteses pensavam que o seu companheiro estava bêbado, já que a verdade do seu estado era o que menos podia passar-lhes pela imaginação. Tão-pouco tiveram tempo de descobrir algo pior iniciativa própria.
Ao mesmo tempo, que Wanda e Hugh, com as caras mais inocentes do mundo, intentavam cruzar o amplo saguão para sair paro-o pátio, o amachucado vaqueiro começou a espevitar. Abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi os que intentavam abandonar a casa com aquele perfeito ar de dissimulação. O efeito da visão foi instantâneo. Neal assinalou Hugh com a mão enquanto dizia em atropelo:
-- A ele, a ele! Golpeou-me à traição quando intentava subir ao escritório do patrão e não lho permiti!
Embora os quatro homens não parecessem, pelo menos à primeira vista, ser muito inteligentes, devem ter compreendido que ali estava acontecendo alguma coisa fora do normal. O certo é que o quarteto, como se se tratasse de uma só pessoa, atirou-se em massa contra Hugh e Wanda.
O jovem puxou-a para um canto, o mais próximo da porta, e preparou-se para receber dignamente os seus inimigos. Eram muitos contra ele, sem dúvida, mas reconhecia-se muito superior a eles, apesar de estar algo cansado, e não lhe importava mais um ou menos um. O importante era sair do sarilho e chegar até aos cavalos, antes que chegassem os demais componentes da equipa.
O choque foi tão aparatoso como trágico. Trágico para alguns dos «cowboys» do «Círculo de Prata».
Hugh esmurrou o queixo do mais avançado com maravilhosa dureza e precisão, enquanto a sua bota direita se incrustava matematicamente no estômago do outro. E os dois foram ao chão, uivando o primeiro e vomitando em cheio o segundo. Certamente tinha obrado como purgante a fenomenal patada.
Os outros dois, vendo o cariz dos acontecimentos, apressaram-se a tomar medidas de precaução. Começaram a bailar em frente do jovem, parodiando um estilo pugilístico dos mais risíveis, mas sem se lançarem para a frente.
Hugh esteve a ponto de soltar uma gargalhada. A coisa não era para menos ao ver saltar diante dos seus narizes aqueles dois tipos dançando como ursos com inimitável perfeição. De repente, Hugh tomou a iniciativa. Avançou disparado como uma flecha e a sua cabeça entrou em contacto, com a peito do que parecia mais forte.
O tremendo encontrão foi fatal para o aspirante a pugilista. Cambaleou como um bêbado, enquanto a perna direita de Hugh e a braço do mesmo lado efetuavam dois movimentos simultâneos: uma rasteira das empregadas pelos índios para e luta e um murro capaz de dar em terra com um cavalo.
O indivíduo foi engrossar o grupo dos seus companheiros caídos, formando os três um informe montão de braços, pernas e camisas aos quadrados.
As ânsias combativas do quarto homem desapareceram. Deve ter compreendido. que o seu perigoso inimigo era o próprio diabo vestido de vaqueiro e ensaiou outro meio .de defesa que conhecia muito bem.
Com prodigiosa rapidez levou a mão ao revólver que pendia a seu lado, tentando sacá-lo. No mesmo instante, na mão direita do forasteiro aparecia uma arma exatamente igual. Soou um disparo e a mão do vaqueiro ficou vazia, indo o seu revólver cair sobre o estômago de um dos seus «adormecidos» companheiros.
Hugh não perdeu tempo. Aproximou-se de Wanda, agarrou-a por um braço e puxou por ela para fora.
—Vamos!
Saíram correndo, senda observados pelo vaqueiro, que não fez o menor movimento para os deter. Estava como que aparvalhado. Ao sair do telheiro, um trovão longínquo chegou até aos ouvidos dos dois jovens.
Hugh olhou na direção donde provinha o estrondo e torceu o nariz. Por uma grande esplanada, a este do rancho, um compacto grupo de cavaleiros aproximava-se a todo o galope dos seus corcéis. Apenas os separavam uns cem metros dia telheiro do «Círculo de Prata».
Hugh compreendeu rapidamente o perigo que corriam.
Sem pensar um instante, agarrou Wanda pela cintura coma mesma facilidade com que o teria feito com uma criança e depositou-a na sela da sua égua. Em seguida, sem utilizar o estribo, saltou por sua vez sobre o lombo do «Esqueleto» que permanecia imóvel, uns passos mais além.
—Para a frente, patroa! — gritou, o jovem. — A todo o galope!
A rapariga achava-se enormemente afetada por tudo quanto ocorrera em tão curto lapso de tempo. Por isso olvidara momentaneamente a presença de Hugh, e ao recordar o jovem, quando já galopava havia alguns minutos, olhou para trás, angustiada. Ter-se-ia deixado atrasar?
O cavalicoque que montava não seria capaz de aguentar um par de milhas a galope. Mas ia sua surpresa foi enorme. «Esqueleto» aguentava o ritmo da galopada da melhor maneira, a menos de um metro de distância da sua égua.
—Que lhe parece o meu cavalo, patroa? — gritou Hugh, dando palmadas no pescoço da sua montada até a emparelhar com a égua. — Estranha que galope sem fazer qualquer ruído, não é verdade?
Wanda Kollings, apesar das suas múltiplas preocupações, sorriu ao ver o rosto alegre e um tanto amachucado da jovem.
—Ê verdade, sim. Como consegue esse montão de ossos pôr os cascos no solo com tanta suavidade?
— Por favor, patroa; o meu cavalo não é um montão de ossos, mas apenas tem ossos aos montões. E quanto a galopar silenciosamente, isso já é outro cantar. O meu cavalo não é o meu cavalo, quero dizer que o seu espírito não é o seu, mas a reencarnação de outro.
Wanda olhou-o severamente.
—Está-se divertindo comigo?
— Oh! De forma alguma.
— Quer explicar-me, então, esse enigma de espíritos e de reencarnações de cavalos?
Hugh permaneceu sério, como se se tratasse de assunto de grande transcendência. A seguir disse:
—Pois verá, «miss» Kollings. Resulta que o espírito de «Bucéfalo», o cavalo de Alexandre Magno, reencarnou na «Esqueleto». Melhor, eu diria que este é o próprio esqueleto do mencionado cavalo, que voltou a adquirir vida própria, em pleno século XIX. Só assim se explica que galope silenciosamente, que seja aficionado às coisas antigas e que à noite leia um par de capítulos da Ilíada ou da Odisseia. São as duas obras preferidas de «Esqueleto», pois datam de uma época anterior à sua, quando ele corria por terras da Macedónia.
Wanda, que se tinha estado a conter enquanto durou o «discurso» do seu companheiro, desatou a rir com vontade. Hugh fez um gesto extravagante, como se se escandalizasse ao ver que a jovem se ria daquelas coisas tão «sérias», mas acabou por fazer um coro de gargalhadas com a amazona. Por fim, ela esgotou. a sua reserva de gargalhadas e tomou a palavra.
—Não sei como tenho humor para rir, Hugh. Acontecem-me coisas mais do que suficientes pana chorar e faço exatamente o contrário. Mas o certo é que lhe lembra cada uma capaz de fazer rir as pedras.
Ao terminar o riso, o rosto de Wanda recobrou a plenitude da sua beleza clara e serena, voltando a brilhar nos seus olhos castanhos uma luz de esperança. O certo é que, com a sua desbordante personalidade, a presença de Hugh bastava para fazê-la sentir-se outra mulher diferente.
—A vida tem de ser tomada a rir, patroa — replicou Hugh, sem deixar de sorrir. — O que ganhamos nós em deixarmo-nos dominar pelo pessimismo? Enquanto há vida, há esperança, com os diabos!
O rosto de Wanda adquiriu gravidade.
—Pode ser que tenha razão, Hugh — respondeu, esboçando um esgar de tristeza; — mas na ocasião presente de nada servem as esperanças. Dentro de dez dias, o «Quatro Vemos» passará para as mãos de Edmund Kendall. Acredita que vinte mil dólares se podem conseguir de um momento para o outro?
—Mas o seu rancho vale muita mais do que essa quantia, patroa. Kendall terá de entregar-lhe a diferença... Bem, isso depende da forma como está redigido o documento hipotecário.
—'Com todas as vantagens a favor desse canalha. Meu pai confiou demasiado nas suas possibilidades. Se na data que consta do documento não se satisfizer a dívida, o prestamista passará a ser dona dos bens hipotecados. Esse homem sabe fazer bem as coisas, e não é o primeiro rancho, que passou para as suas mãos por procedimento semelhante.
Como se não desse importância ao assunto, Hugh respondeu:
— Isso ocorrerá porque assim o quis, patroa. A solução esteve nas suas mãos. Deixou-a escapar...
Ela olhou-o admirada, não sabendo a que se referia o seu companheiro.
-- O que quer dizer com isso, Hugh? Kendall não me quis conceder nem uma hora de prorrogação.
—Já sei, já sei; mas fez-lhe uma proposta matrimonial, que rechaçou sem a menor contemplação. Julga que é razoável desairar um homem tão galante como esse Kendall? A mim parece-me um homem com montes de simpatia.
Wanda não soube se devia enfadar-se ou pôr-se a rir, ante o desembaraço do jovem. Seria possível que tivesse vontade de brincar à custa da conversa sustentada entre ela e o fazendeiro?
— A sua perspicácia é abominável, Hugh —no rosto da jovem tinha-se marcado um trejeito de desgosto. Mas vendo que o companheiro permanecia tão tranquilo, incluso sorrindo inocentemente, acrescentou: —É inútil que procure aborrecer-me consigo; não o conseguiria. Mas advirto-o — e agora falo seriamente—que sou capaz de lhe arranhar a cara se voltar a dizer-me alguma coisa a respeito desse galã de guarda-roupa. Nunca o supus tão miserável.
— A mim ou a ele? Wanda soltou um bufido.
—Aos dois!
Enquanto Hugh soltava uma das suas proverbiais gargalhadas, ela acelerou a galope da sua montada, como se quisesse deixar para trás o cavaleiro. Mas não contou com o amor-próprio de «Esqueleto», o qual, ao ver que a égua ganhava terreno, recorreu às inexplicáveis reservas de energias acumuladas no interior dos ossos. Dois segundos mais tarde, Hugh retesava o freio de «Esqueleto» para não deixar ficar mal a montada da rapariga.
Naquele mesmo instante, a seca detonação de um rifle abafou o ruído que produziam os cascos dos dois 'equídeos. O velho chapéu de Hugh descreveu uma estranha parábola no ar e foi cair sobre o pó do atalho, ficando numa posição semelhante à do pássaro que caçam em pleno voo.
Uma vez mais, a serenidade e rapidez de movimentos do vagabundo salvaram a situação. O seu braço efetuou um gesto relampejante, agarrando Wanda pela cintura e atraindo-a a si. Ambos caíram no solo, se bem que o corpo da jovem ficasse detido entre os seus fortes braços, a escassos centímetros da terra seca e pulverulenta.
Os cavalos continuaram galopando, livres do peso dos seus cavaleiros. Endireitou-se Hugh com rapidez, tendo nos braços o frágil corpo de Wanda, e correu a ocultar-se atrás de umas moitas próximo do lado esquerdo do caminho, único refúgio que podia escolher-se ante a gravidade da situação.
Mas o rifle que tinha disparado segundos antes devia ter mais projéteis na câmara, assim como a pessoa que o manejava teria vontade de disparar, pois, embora o jovem corresse fazendo ziguezague, aos seus pés levantaram-se pequenas nuvenzinhas die pó, indicando o lugar onde se incrustavam as balas, ao passo que o ruído das detonações se sucedia sem interrupção.
Quando por fim, depois de ter sentido passar vários projéteis a escassíssima distância do seu coiro cabeludo, Hugh deteve o ímpeto da sua carreira e deixou a sua preciosa carga ao abrigo de umas rochas que havia detrás das moitas, o rosto ide Wanda estava, pálido e a sua respiração tornara-se mais opressa por momentos. Dava a impressão, de ser ela' quem tinha levado Hugh às costas.
—Não se assuste, patroa — tratou de a acalmar o jovem, embora o brilho sinistro dos seus olhos negros demonstrasse a cólera que o estava consumindo.
— Que... que aconteceu? Foi tudo tão rápido...
—Quase nada. Alguém nos deve ter confundido com animalejos do bosque e quis caçar-nos.
—Mas quem terá podido...?
— Isso é o que eu necessito de saber.
Sem fazer caso das recomendações de prudência da jovem, Hugh empunhou o revólver e, agachando-se até quase roçar o peito no solo pedregoso, foi-se aproximando lentamente.
Na sua frente elevava-se uma colina de considerável altura e exuberante vegetação. Esta elevação de terreno era o que separava o rancho «Círculo de Prata» do «Quatro Ventos», pelo lado das montanhas, ao norte do vale. Era um sítio magnífico para alguém se emboscar e atacar cobardemente quem passasse pela estrada. As altas rochas e as 'espessa zonas verdejantes facilitavam um esconderijo seguro.
O rifle tinha emudecido de repente. Talvez o oculto atirador tivesse compreendido que já era inútil continuar a disparar, visto que assim só conseguiria descobrir a sua posição. De súbito, e quando atingia já a parte mais elevada da colina, viu algo que lhe fez contrair as mandibulas num gesto de mal contida impotência. Uns duzentos metros mais ao norte, um homem a que não podia ver a cara por se encontrar de costas para ele, montava naquele momento a cavalo. O tipo em questão levava um rifle na mão direita. Não havia a menor dúvida quanto à sua identidade. Era o que pouco antes tinha intentado assassiná-los encoberto na sombra.
Hugh olhou para o revólver como se o fosse comer. De nada lhe valeria disparar sobre o traidor, uma vez que os projéteis não chegariam nem a metade da distância que o separava do cavaleiro. Este picou esporas, sem voltar a cabeça. Pouco depois, a galope desenfreado da sua montada, desaparecia na linha que formava a junção das duas montanhas, ao norte do vale.
Apesar de não ver o rosto do fugitivo, Hugh teve uma súbita suspeita... Foi qualquer coisa repentina, mas que não devia ser totalmente desassisada. Aquele homem tinha a estatura e corpulência de Walter Grinnell, o ex-capataz do «Quatro Ventos». Não teria sido ele o autor da emboscada? Grinnell devia odiá-la a mais não poder ser, depois da sova que lhe dera... O jovem não tinha inimigos em Valley Smoky, antes pelo contrário, excetuando, claro está, Grinnell e Edmund Kendall.
Como um meteoro desceu à estrada, sob risco de estoirar a cabeça contra os penhascos. A grandes passadas aproximou-se do sítio onde tinha deixado Wanda, vendo com satisfação que a jovem permanecia sentada, abrigada pelas rochas. Ao ver o jovem não pôde reprimir uma exclamação de alegria:
—Por Deus, Hugh! Felizmente que volta! Não sabe o susto que me fez passar!
Se Hugh captou ou não o tom de ansiedade com que a jovem pronunciou as palavras anteriores, foi algo que ela jamais poderia ter descoberto. A expressão toldada do rapaz transformou-se num sorriso, embora se notasse claramente que era forçado. O tom frio das suas palavras ratificava esta última impressão.
—Olá, patroa... O pássaro voou. Pouca sorte!
Wanda tinha-se levantado e vinha ao seu encontro.
— Não se preocupe com isso, Hugh... «Para inimigo que foge, ponte de prata».
— Ponte de prata, diz você? De demónios enlaçados pelo rabo a faria eu... Se alguma vez tenho a sorte de saber com segurança quem foi, juro-lhe que estudarei detidamente a espécie de tormento que penso aplicar-lhe. Não sou sanguinário, patroa; mas a traição rebenta-me. É a única coisa capaz de suscitar o meu rancor, injetando no meu espírito ânsias homicidas.
--Bem, Hugh, não se excite. O principal é que ambos tenhamos saído indemnes do cobarde atentado. Não tem você a menor ideia de quem possa ter sido?
Hugh coçou a cabeça, meditando.
—Não possa assegurar nada, visto que só vi o indivíduo uns instantes e de costas, mas juraria que se tratava de Walter Grinnell, esse bandido com cara de gente que tinha como capataz.
Os Olhos castanhos de Wanda aumentaram de tamanho em face da surpresa.
— Está seguro do que diz?
—Não. Já lhe disse que se trata de uma suposição, visto que coincidem em estatura e corpulência. Além disso, eu não julgo ter nenhum inimigo em Walley Smoky, com exceção desse Walter. A Kendall também o considero capaz de enviar algum dos seus vaqueiros com a intenção de nos esvaziar os miolos. Mas desta vez não teve tempo. Ele está afastado deste assunto. —Hugh calou-se uns segundos.
Depois interpelou a jovem diretamente:
— E você, não tem nenhum inimigo que...?
— Felizmente não, Hugh. Meu pai e eu mantivemos sempre boas relações com toda a gente...
—Bem, menina Wanda, vejo que a melhor será irmos devagar até ao «Quatro Ventos». Que lhe parece?
— Muito bem. Mas desejo fazer-lhe uma sugestão, antes que seja demasiado tarde.
— Faça quantas quiser...
Por uns instantes, os olhos castanhos da rapariga irradiaram chispas de luz maravilhosa, envolvendo, aprisionando nela o olhar sereno do homem, que parecia turvar-se ante o influxo de tanta beleza. Uma ligeiríssima aragem espargiu-se pela fronte da jovem, desmanchando a sua negra cabeleira como um mar de obscuras e encrespadas ondas...
Ela sorria, intentando afastar de si a perturbação que aprisionava o seu espírito ante ia iminente aproximação daquele homem estranho:
—Desejaria que suprimisse o tratamento de menina, daqui em diante, Hugh — disse Wanda por fim. —A sua personalidade infunde-me uma sensação de ilimitada confiança... Hoje mesmo, sem ir mais longe, jogou a vida por mim duas vezes. Compreenderá que...
— Bem, bem, patroa — atalhou o rapaz, sorridente, mas com voz um tanto emocionada: — vai conseguir que eu core. O que fiz não vale a pena mencioná-lo, desde que defendi a minha vida ao mesmo tempo. Além disso devo-lhe agradecimento, eterno... Quando cheguei ao seu rancho meio morto de fome, você...
Foi a vez de ela interromper Hugh.
— Não siga por esse caminho, que vai enganado, amigo. Não sei quem é nem por que veio ao «Quatro Ventos», mas a sua presença em Valley Smoky não se deve ao acaso. Será possível que um homem como você não encontre trabalho em nenhum sítio e, não obstante, venha oferecer os seus serviços numa fazenda que está à beira da ruína? Tudo isto é muito estranho, Hugh...
O jovem começou a rir alegremente. Tinha recobrado o seu habitual ar de desenfado, relegando as demais preocupações para segundo plano.
—Não escalde a cabeça, Wanda. Não, quer que lhe chame assim? Pois bem. É inútil perder tempo a arquitetar hipóteses sobre a minha verdadeira personalidade. Eu sou um homem muito estranho, digamos assim. Alguém me disse, talvez para me experimentar, que no rancho «Quatro Ventas» havia falta de pessoal que conhecesse bem o ofício de vaqueiro... Falei com «Esqueleto» — costumo dar conta ao meu cavalo das decisões transcendentes que tomo na vida — e o animal mostrou-se cheio de contentamento ao saber que íamos prestar os nossos serviços sob as ordens duma rancheirinha muito linda. Isto é tudo.
Wanda fez um esforço para não soltar o murmúrio musical do seu riso e simulou uma expressão de contrariedade, apertando os punhos e movendo a cabeça com um: gesto de resignação.
— Você é um incorrigível. Proíbo-o terminantemente que volte a chamar-me bonita ou outra estupidez desse género.
— Rejeito a proibição. Em todo o caso, se você se tornar muito exigente, consultarei «Esqueleto». Estou completamente certo de que o meu cavalo pensa como eu... — sorriu ao ver a cara de Wanda e indicou com a mão direita o caminho. — Que lhe parece se partirmos quanto antes para o rancho? Os rapazes devem estar preocupados com a nossa ausência.
—Pensou magnificamente — replicou a jovem — porque a continuarmos mais tempo aqui acabaremos por brigar.
Sem pronunciarem urna palavra mais, mas observando-se mutuamente pelo canto do olho, ambos os jovens reiniciaram o caminho para o rancho.
Os cavalos, acostumados ao ruído dos «fogos de artifício», tinham-se detido na primeira curva da estrada. Antes de dirigir-se para eles, Hugh apanhou o seu velho chapéu, sacudiu-o contra o joelho e meteu o dedo indicador da mão direita pelo orifício, que o projétil tinha produzido, como a calcular o seu diâmetro.
Em seguida, com o mesmo gesto que empregaria um senador ao despedir-se da Câmara, pô-lo sobre a revolta cabeleira negra. Quando galopavam de novo em direção ao «Quatro Ventos», já o disco ígneo do astro-rei, transbordando de luz e fogo, voava para a inacessível fortaleza do zénite...
Na melhor das hipóteses pensavam que o seu companheiro estava bêbado, já que a verdade do seu estado era o que menos podia passar-lhes pela imaginação. Tão-pouco tiveram tempo de descobrir algo pior iniciativa própria.
Ao mesmo tempo, que Wanda e Hugh, com as caras mais inocentes do mundo, intentavam cruzar o amplo saguão para sair paro-o pátio, o amachucado vaqueiro começou a espevitar. Abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi os que intentavam abandonar a casa com aquele perfeito ar de dissimulação. O efeito da visão foi instantâneo. Neal assinalou Hugh com a mão enquanto dizia em atropelo:
-- A ele, a ele! Golpeou-me à traição quando intentava subir ao escritório do patrão e não lho permiti!
Embora os quatro homens não parecessem, pelo menos à primeira vista, ser muito inteligentes, devem ter compreendido que ali estava acontecendo alguma coisa fora do normal. O certo é que o quarteto, como se se tratasse de uma só pessoa, atirou-se em massa contra Hugh e Wanda.
O jovem puxou-a para um canto, o mais próximo da porta, e preparou-se para receber dignamente os seus inimigos. Eram muitos contra ele, sem dúvida, mas reconhecia-se muito superior a eles, apesar de estar algo cansado, e não lhe importava mais um ou menos um. O importante era sair do sarilho e chegar até aos cavalos, antes que chegassem os demais componentes da equipa.
O choque foi tão aparatoso como trágico. Trágico para alguns dos «cowboys» do «Círculo de Prata».
Hugh esmurrou o queixo do mais avançado com maravilhosa dureza e precisão, enquanto a sua bota direita se incrustava matematicamente no estômago do outro. E os dois foram ao chão, uivando o primeiro e vomitando em cheio o segundo. Certamente tinha obrado como purgante a fenomenal patada.
Os outros dois, vendo o cariz dos acontecimentos, apressaram-se a tomar medidas de precaução. Começaram a bailar em frente do jovem, parodiando um estilo pugilístico dos mais risíveis, mas sem se lançarem para a frente.
Hugh esteve a ponto de soltar uma gargalhada. A coisa não era para menos ao ver saltar diante dos seus narizes aqueles dois tipos dançando como ursos com inimitável perfeição. De repente, Hugh tomou a iniciativa. Avançou disparado como uma flecha e a sua cabeça entrou em contacto, com a peito do que parecia mais forte.
O tremendo encontrão foi fatal para o aspirante a pugilista. Cambaleou como um bêbado, enquanto a perna direita de Hugh e a braço do mesmo lado efetuavam dois movimentos simultâneos: uma rasteira das empregadas pelos índios para e luta e um murro capaz de dar em terra com um cavalo.
O indivíduo foi engrossar o grupo dos seus companheiros caídos, formando os três um informe montão de braços, pernas e camisas aos quadrados.
As ânsias combativas do quarto homem desapareceram. Deve ter compreendido. que o seu perigoso inimigo era o próprio diabo vestido de vaqueiro e ensaiou outro meio .de defesa que conhecia muito bem.
Com prodigiosa rapidez levou a mão ao revólver que pendia a seu lado, tentando sacá-lo. No mesmo instante, na mão direita do forasteiro aparecia uma arma exatamente igual. Soou um disparo e a mão do vaqueiro ficou vazia, indo o seu revólver cair sobre o estômago de um dos seus «adormecidos» companheiros.
Hugh não perdeu tempo. Aproximou-se de Wanda, agarrou-a por um braço e puxou por ela para fora.
—Vamos!
Saíram correndo, senda observados pelo vaqueiro, que não fez o menor movimento para os deter. Estava como que aparvalhado. Ao sair do telheiro, um trovão longínquo chegou até aos ouvidos dos dois jovens.
Hugh olhou na direção donde provinha o estrondo e torceu o nariz. Por uma grande esplanada, a este do rancho, um compacto grupo de cavaleiros aproximava-se a todo o galope dos seus corcéis. Apenas os separavam uns cem metros dia telheiro do «Círculo de Prata».
Hugh compreendeu rapidamente o perigo que corriam.
Sem pensar um instante, agarrou Wanda pela cintura coma mesma facilidade com que o teria feito com uma criança e depositou-a na sela da sua égua. Em seguida, sem utilizar o estribo, saltou por sua vez sobre o lombo do «Esqueleto» que permanecia imóvel, uns passos mais além.
—Para a frente, patroa! — gritou, o jovem. — A todo o galope!
A rapariga achava-se enormemente afetada por tudo quanto ocorrera em tão curto lapso de tempo. Por isso olvidara momentaneamente a presença de Hugh, e ao recordar o jovem, quando já galopava havia alguns minutos, olhou para trás, angustiada. Ter-se-ia deixado atrasar?
O cavalicoque que montava não seria capaz de aguentar um par de milhas a galope. Mas ia sua surpresa foi enorme. «Esqueleto» aguentava o ritmo da galopada da melhor maneira, a menos de um metro de distância da sua égua.
—Que lhe parece o meu cavalo, patroa? — gritou Hugh, dando palmadas no pescoço da sua montada até a emparelhar com a égua. — Estranha que galope sem fazer qualquer ruído, não é verdade?
Wanda Kollings, apesar das suas múltiplas preocupações, sorriu ao ver o rosto alegre e um tanto amachucado da jovem.
—Ê verdade, sim. Como consegue esse montão de ossos pôr os cascos no solo com tanta suavidade?
— Por favor, patroa; o meu cavalo não é um montão de ossos, mas apenas tem ossos aos montões. E quanto a galopar silenciosamente, isso já é outro cantar. O meu cavalo não é o meu cavalo, quero dizer que o seu espírito não é o seu, mas a reencarnação de outro.
Wanda olhou-o severamente.
—Está-se divertindo comigo?
— Oh! De forma alguma.
— Quer explicar-me, então, esse enigma de espíritos e de reencarnações de cavalos?
Hugh permaneceu sério, como se se tratasse de assunto de grande transcendência. A seguir disse:
—Pois verá, «miss» Kollings. Resulta que o espírito de «Bucéfalo», o cavalo de Alexandre Magno, reencarnou na «Esqueleto». Melhor, eu diria que este é o próprio esqueleto do mencionado cavalo, que voltou a adquirir vida própria, em pleno século XIX. Só assim se explica que galope silenciosamente, que seja aficionado às coisas antigas e que à noite leia um par de capítulos da Ilíada ou da Odisseia. São as duas obras preferidas de «Esqueleto», pois datam de uma época anterior à sua, quando ele corria por terras da Macedónia.
Wanda, que se tinha estado a conter enquanto durou o «discurso» do seu companheiro, desatou a rir com vontade. Hugh fez um gesto extravagante, como se se escandalizasse ao ver que a jovem se ria daquelas coisas tão «sérias», mas acabou por fazer um coro de gargalhadas com a amazona. Por fim, ela esgotou. a sua reserva de gargalhadas e tomou a palavra.
—Não sei como tenho humor para rir, Hugh. Acontecem-me coisas mais do que suficientes pana chorar e faço exatamente o contrário. Mas o certo é que lhe lembra cada uma capaz de fazer rir as pedras.
Ao terminar o riso, o rosto de Wanda recobrou a plenitude da sua beleza clara e serena, voltando a brilhar nos seus olhos castanhos uma luz de esperança. O certo é que, com a sua desbordante personalidade, a presença de Hugh bastava para fazê-la sentir-se outra mulher diferente.
—A vida tem de ser tomada a rir, patroa — replicou Hugh, sem deixar de sorrir. — O que ganhamos nós em deixarmo-nos dominar pelo pessimismo? Enquanto há vida, há esperança, com os diabos!
O rosto de Wanda adquiriu gravidade.
—Pode ser que tenha razão, Hugh — respondeu, esboçando um esgar de tristeza; — mas na ocasião presente de nada servem as esperanças. Dentro de dez dias, o «Quatro Vemos» passará para as mãos de Edmund Kendall. Acredita que vinte mil dólares se podem conseguir de um momento para o outro?
—Mas o seu rancho vale muita mais do que essa quantia, patroa. Kendall terá de entregar-lhe a diferença... Bem, isso depende da forma como está redigido o documento hipotecário.
—'Com todas as vantagens a favor desse canalha. Meu pai confiou demasiado nas suas possibilidades. Se na data que consta do documento não se satisfizer a dívida, o prestamista passará a ser dona dos bens hipotecados. Esse homem sabe fazer bem as coisas, e não é o primeiro rancho, que passou para as suas mãos por procedimento semelhante.
Como se não desse importância ao assunto, Hugh respondeu:
— Isso ocorrerá porque assim o quis, patroa. A solução esteve nas suas mãos. Deixou-a escapar...
Ela olhou-o admirada, não sabendo a que se referia o seu companheiro.
-- O que quer dizer com isso, Hugh? Kendall não me quis conceder nem uma hora de prorrogação.
—Já sei, já sei; mas fez-lhe uma proposta matrimonial, que rechaçou sem a menor contemplação. Julga que é razoável desairar um homem tão galante como esse Kendall? A mim parece-me um homem com montes de simpatia.
Wanda não soube se devia enfadar-se ou pôr-se a rir, ante o desembaraço do jovem. Seria possível que tivesse vontade de brincar à custa da conversa sustentada entre ela e o fazendeiro?
— A sua perspicácia é abominável, Hugh —no rosto da jovem tinha-se marcado um trejeito de desgosto. Mas vendo que o companheiro permanecia tão tranquilo, incluso sorrindo inocentemente, acrescentou: —É inútil que procure aborrecer-me consigo; não o conseguiria. Mas advirto-o — e agora falo seriamente—que sou capaz de lhe arranhar a cara se voltar a dizer-me alguma coisa a respeito desse galã de guarda-roupa. Nunca o supus tão miserável.
— A mim ou a ele? Wanda soltou um bufido.
—Aos dois!
Enquanto Hugh soltava uma das suas proverbiais gargalhadas, ela acelerou a galope da sua montada, como se quisesse deixar para trás o cavaleiro. Mas não contou com o amor-próprio de «Esqueleto», o qual, ao ver que a égua ganhava terreno, recorreu às inexplicáveis reservas de energias acumuladas no interior dos ossos. Dois segundos mais tarde, Hugh retesava o freio de «Esqueleto» para não deixar ficar mal a montada da rapariga.
Naquele mesmo instante, a seca detonação de um rifle abafou o ruído que produziam os cascos dos dois 'equídeos. O velho chapéu de Hugh descreveu uma estranha parábola no ar e foi cair sobre o pó do atalho, ficando numa posição semelhante à do pássaro que caçam em pleno voo.
Uma vez mais, a serenidade e rapidez de movimentos do vagabundo salvaram a situação. O seu braço efetuou um gesto relampejante, agarrando Wanda pela cintura e atraindo-a a si. Ambos caíram no solo, se bem que o corpo da jovem ficasse detido entre os seus fortes braços, a escassos centímetros da terra seca e pulverulenta.
Os cavalos continuaram galopando, livres do peso dos seus cavaleiros. Endireitou-se Hugh com rapidez, tendo nos braços o frágil corpo de Wanda, e correu a ocultar-se atrás de umas moitas próximo do lado esquerdo do caminho, único refúgio que podia escolher-se ante a gravidade da situação.
Mas o rifle que tinha disparado segundos antes devia ter mais projéteis na câmara, assim como a pessoa que o manejava teria vontade de disparar, pois, embora o jovem corresse fazendo ziguezague, aos seus pés levantaram-se pequenas nuvenzinhas die pó, indicando o lugar onde se incrustavam as balas, ao passo que o ruído das detonações se sucedia sem interrupção.
Quando por fim, depois de ter sentido passar vários projéteis a escassíssima distância do seu coiro cabeludo, Hugh deteve o ímpeto da sua carreira e deixou a sua preciosa carga ao abrigo de umas rochas que havia detrás das moitas, o rosto ide Wanda estava, pálido e a sua respiração tornara-se mais opressa por momentos. Dava a impressão, de ser ela' quem tinha levado Hugh às costas.
—Não se assuste, patroa — tratou de a acalmar o jovem, embora o brilho sinistro dos seus olhos negros demonstrasse a cólera que o estava consumindo.
— Que... que aconteceu? Foi tudo tão rápido...
—Quase nada. Alguém nos deve ter confundido com animalejos do bosque e quis caçar-nos.
—Mas quem terá podido...?
— Isso é o que eu necessito de saber.
Sem fazer caso das recomendações de prudência da jovem, Hugh empunhou o revólver e, agachando-se até quase roçar o peito no solo pedregoso, foi-se aproximando lentamente.
Na sua frente elevava-se uma colina de considerável altura e exuberante vegetação. Esta elevação de terreno era o que separava o rancho «Círculo de Prata» do «Quatro Ventos», pelo lado das montanhas, ao norte do vale. Era um sítio magnífico para alguém se emboscar e atacar cobardemente quem passasse pela estrada. As altas rochas e as 'espessa zonas verdejantes facilitavam um esconderijo seguro.
O rifle tinha emudecido de repente. Talvez o oculto atirador tivesse compreendido que já era inútil continuar a disparar, visto que assim só conseguiria descobrir a sua posição. De súbito, e quando atingia já a parte mais elevada da colina, viu algo que lhe fez contrair as mandibulas num gesto de mal contida impotência. Uns duzentos metros mais ao norte, um homem a que não podia ver a cara por se encontrar de costas para ele, montava naquele momento a cavalo. O tipo em questão levava um rifle na mão direita. Não havia a menor dúvida quanto à sua identidade. Era o que pouco antes tinha intentado assassiná-los encoberto na sombra.
Hugh olhou para o revólver como se o fosse comer. De nada lhe valeria disparar sobre o traidor, uma vez que os projéteis não chegariam nem a metade da distância que o separava do cavaleiro. Este picou esporas, sem voltar a cabeça. Pouco depois, a galope desenfreado da sua montada, desaparecia na linha que formava a junção das duas montanhas, ao norte do vale.
Apesar de não ver o rosto do fugitivo, Hugh teve uma súbita suspeita... Foi qualquer coisa repentina, mas que não devia ser totalmente desassisada. Aquele homem tinha a estatura e corpulência de Walter Grinnell, o ex-capataz do «Quatro Ventos». Não teria sido ele o autor da emboscada? Grinnell devia odiá-la a mais não poder ser, depois da sova que lhe dera... O jovem não tinha inimigos em Valley Smoky, antes pelo contrário, excetuando, claro está, Grinnell e Edmund Kendall.
Como um meteoro desceu à estrada, sob risco de estoirar a cabeça contra os penhascos. A grandes passadas aproximou-se do sítio onde tinha deixado Wanda, vendo com satisfação que a jovem permanecia sentada, abrigada pelas rochas. Ao ver o jovem não pôde reprimir uma exclamação de alegria:
—Por Deus, Hugh! Felizmente que volta! Não sabe o susto que me fez passar!
Se Hugh captou ou não o tom de ansiedade com que a jovem pronunciou as palavras anteriores, foi algo que ela jamais poderia ter descoberto. A expressão toldada do rapaz transformou-se num sorriso, embora se notasse claramente que era forçado. O tom frio das suas palavras ratificava esta última impressão.
—Olá, patroa... O pássaro voou. Pouca sorte!
Wanda tinha-se levantado e vinha ao seu encontro.
— Não se preocupe com isso, Hugh... «Para inimigo que foge, ponte de prata».
— Ponte de prata, diz você? De demónios enlaçados pelo rabo a faria eu... Se alguma vez tenho a sorte de saber com segurança quem foi, juro-lhe que estudarei detidamente a espécie de tormento que penso aplicar-lhe. Não sou sanguinário, patroa; mas a traição rebenta-me. É a única coisa capaz de suscitar o meu rancor, injetando no meu espírito ânsias homicidas.
--Bem, Hugh, não se excite. O principal é que ambos tenhamos saído indemnes do cobarde atentado. Não tem você a menor ideia de quem possa ter sido?
Hugh coçou a cabeça, meditando.
—Não possa assegurar nada, visto que só vi o indivíduo uns instantes e de costas, mas juraria que se tratava de Walter Grinnell, esse bandido com cara de gente que tinha como capataz.
Os Olhos castanhos de Wanda aumentaram de tamanho em face da surpresa.
— Está seguro do que diz?
—Não. Já lhe disse que se trata de uma suposição, visto que coincidem em estatura e corpulência. Além disso, eu não julgo ter nenhum inimigo em Walley Smoky, com exceção desse Walter. A Kendall também o considero capaz de enviar algum dos seus vaqueiros com a intenção de nos esvaziar os miolos. Mas desta vez não teve tempo. Ele está afastado deste assunto. —Hugh calou-se uns segundos.
Depois interpelou a jovem diretamente:
— E você, não tem nenhum inimigo que...?
— Felizmente não, Hugh. Meu pai e eu mantivemos sempre boas relações com toda a gente...
—Bem, menina Wanda, vejo que a melhor será irmos devagar até ao «Quatro Ventos». Que lhe parece?
— Muito bem. Mas desejo fazer-lhe uma sugestão, antes que seja demasiado tarde.
— Faça quantas quiser...
Por uns instantes, os olhos castanhos da rapariga irradiaram chispas de luz maravilhosa, envolvendo, aprisionando nela o olhar sereno do homem, que parecia turvar-se ante o influxo de tanta beleza. Uma ligeiríssima aragem espargiu-se pela fronte da jovem, desmanchando a sua negra cabeleira como um mar de obscuras e encrespadas ondas...
Ela sorria, intentando afastar de si a perturbação que aprisionava o seu espírito ante ia iminente aproximação daquele homem estranho:
—Desejaria que suprimisse o tratamento de menina, daqui em diante, Hugh — disse Wanda por fim. —A sua personalidade infunde-me uma sensação de ilimitada confiança... Hoje mesmo, sem ir mais longe, jogou a vida por mim duas vezes. Compreenderá que...
— Bem, bem, patroa — atalhou o rapaz, sorridente, mas com voz um tanto emocionada: — vai conseguir que eu core. O que fiz não vale a pena mencioná-lo, desde que defendi a minha vida ao mesmo tempo. Além disso devo-lhe agradecimento, eterno... Quando cheguei ao seu rancho meio morto de fome, você...
Foi a vez de ela interromper Hugh.
— Não siga por esse caminho, que vai enganado, amigo. Não sei quem é nem por que veio ao «Quatro Ventos», mas a sua presença em Valley Smoky não se deve ao acaso. Será possível que um homem como você não encontre trabalho em nenhum sítio e, não obstante, venha oferecer os seus serviços numa fazenda que está à beira da ruína? Tudo isto é muito estranho, Hugh...
O jovem começou a rir alegremente. Tinha recobrado o seu habitual ar de desenfado, relegando as demais preocupações para segundo plano.
—Não escalde a cabeça, Wanda. Não, quer que lhe chame assim? Pois bem. É inútil perder tempo a arquitetar hipóteses sobre a minha verdadeira personalidade. Eu sou um homem muito estranho, digamos assim. Alguém me disse, talvez para me experimentar, que no rancho «Quatro Ventas» havia falta de pessoal que conhecesse bem o ofício de vaqueiro... Falei com «Esqueleto» — costumo dar conta ao meu cavalo das decisões transcendentes que tomo na vida — e o animal mostrou-se cheio de contentamento ao saber que íamos prestar os nossos serviços sob as ordens duma rancheirinha muito linda. Isto é tudo.
Wanda fez um esforço para não soltar o murmúrio musical do seu riso e simulou uma expressão de contrariedade, apertando os punhos e movendo a cabeça com um: gesto de resignação.
— Você é um incorrigível. Proíbo-o terminantemente que volte a chamar-me bonita ou outra estupidez desse género.
— Rejeito a proibição. Em todo o caso, se você se tornar muito exigente, consultarei «Esqueleto». Estou completamente certo de que o meu cavalo pensa como eu... — sorriu ao ver a cara de Wanda e indicou com a mão direita o caminho. — Que lhe parece se partirmos quanto antes para o rancho? Os rapazes devem estar preocupados com a nossa ausência.
—Pensou magnificamente — replicou a jovem — porque a continuarmos mais tempo aqui acabaremos por brigar.
Sem pronunciarem urna palavra mais, mas observando-se mutuamente pelo canto do olho, ambos os jovens reiniciaram o caminho para o rancho.
Os cavalos, acostumados ao ruído dos «fogos de artifício», tinham-se detido na primeira curva da estrada. Antes de dirigir-se para eles, Hugh apanhou o seu velho chapéu, sacudiu-o contra o joelho e meteu o dedo indicador da mão direita pelo orifício, que o projétil tinha produzido, como a calcular o seu diâmetro.
Em seguida, com o mesmo gesto que empregaria um senador ao despedir-se da Câmara, pô-lo sobre a revolta cabeleira negra. Quando galopavam de novo em direção ao «Quatro Ventos», já o disco ígneo do astro-rei, transbordando de luz e fogo, voava para a inacessível fortaleza do zénite...
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