O cavaleiro deteve o passo cansado da sua montada ao ultrapassar a lomba e seus olhos abarcaram a vastíssima superfície do vale em toda a sua extensão.
Hugh Hallowan sorriu impercetivelmente e os traços firmes e corretos do seu rosto, um tanto prognata, pareciam adquirir uma expressão irónica e divertida ao mesmo tempo.
Podiam calcular-se-lhe uns trinta anos, se bem que a barba de vários dias que cobria as suas feições, a grande e descuidada melena negra que assomava sob as abas descaídas de um chapéu sujo e desbotada e a esfarrapada trapagem que vestia, faziam--no parecer um homem de quarenta.
Até as caixas de cedro do revólver que pendiam do seu lado direito eram velhas e gastas, embora isto pudesse atribuir-se a que a arma teria entrado em contacto com a mão do seu dono muitas vezes.
Quando o andrajoso cavaleiro se cansou de permanecer naquela postura contemplativa, inclinou-se ligeiramente para diante, acariciou o pescoço do cavalo e disse em voz alta:
— Vamos, amigo «Esqueleto». Parece-me que já chegamos ao fim da nossa viagem.
O nome assentava ao cavalo como uma luva. Dificilmente se poderia ter encontrado um animal tão seco e desarticulado, tão esquelético...
Tinha, como vulgarmente costuma dizer-se, a pele pegada ao osso, mas que ossos! Parecia como se o animal tivesse sido construído artificialmente, empregando para ele o esqueleto de algum megatério antediluviano, desses que se encontram nos museus zoológicos.
O animal deu a impressão de ter compreendido perfeitamente a ordem do seu dono, pois acto contínuo começou a galopar pela ravina abaixo. Fazia-o de maneira inverosímil, dando a sensação de que ia desarticular-se de um momento para o outro; mas o seu galope era rapidíssimo, movendo as suas largas patas e secas com velocidade extraordinária.
Para a mentalidade de qualquer pessoa normal teria constituído um mistério impenetrável descobrir onde «Esqueleto» ia buscar forças para manter o ritmo daquele endiabrado galope.
Um quarto de hora mais tarde, cavalo e cavaleiro atravessavam a planície por uma estrada ampla e recta da qual partiam algumas mais estreitas e que certamente conduziriam aos diferentes ranchos do vale.
Hugh Hallowan refreou o galope de «Esqueleto» e esperou que dois cavaleiros, que galopavam atrás dele chegassem perto de si. Estes levavam os seus cavalos a trote e pararam também ao ver que o jovem lhes fazia sinais com a mão.
— Boas tardes, amigos — saudou Hugh, afetuosamente — Algum dos senhores dizer-me para que lado ira o rancho «Quatro Ventos»?
Os dois homens ficaram olhando aquela estranha figura equestre, fazendo inauditos esforços para não romperem a rir às gargalhadas. Conteve-os seguramente o brilho acerado dos seus olhos ou a humanitária ideia de que não é bonito divertir-se à custa de um semelhante. O caso é que ambos os homens permaneceram mais sérios do que estacas.
— Vai pedir trabalho ali, forasteiro? — foi a resposta do mais jovem.
— Com efeito, é essa a minha intenção.
— Então vale mais que volte para trás, amigo — interveio o outro. — «Quatro Ventos» não há lugar nem para um gato... Andam mal as coisas por ali...
Hugh encolheu os ombros, indiferente.
— Em qualquer caso — insistiu — gostaria de chegar até essa fazenda. Em Dudley ouvi dizer que faltavam bons vaqueiros em «Quatro Ventos» e quero tirar as dúvidas.
O mais novo dos dois «cowboys» esteve a ponto de dizer que se aquele tipo esfarrapado era um bom vaqueiro, ele era o presidente dos Estados Unidos. Mas evitou cautelosamente exteriorizar o seu pensamento.
— Siga por esse caminho da direita — disse por fim o vaqueiro -- Encontrará o que procura sem perguntar a mais ninguém. É o primeiro rancho, também à direita.
—Obrigado, companheiros.
Os dois cavaleiros olharam-se entre si, estranhando que os apelidasse de companheiros um indivíduo que mais se assemelhava a um mendigo da pradaria. Responderam com um grunhido e picaram de esporas.
A estranha personagem viu-os perderem-se numa curva do caminho, em direção a Valley Smoky, e sorriu, com se o divertisse a impressão desagradável que a sua pessoa causava nos outros.
Fez uma levíssima pressão nos flancos de «Esqueleto» e o animal retomou o galope na direção que o seu dono o obrigou a seguir.
Muitos pares de olhos viram aproximar-se o cavaleiro. Eram os quinze homens que compunham a equipa ido «Quatro Ventos», que acabavam de chegar das pastagens e esperavam que a velha cozinheira Ruth os chamasse para cear.
Tinham levado já os cavalos para o estábulo e passeavam pelo pátio, uns poucos conversando e os outros de semblante carrancudo. Não obstante, agora todos mantinham a vista fixa na pessoa que chegava, cessando dos seus passeios alguns deles o olhando-se entre si de vez em quando, como inquirindo em muda interrogação quem era aquele tipo tão esfarrapado e que diabo buscaria por ali.
Sem fazer o menor caso daquela aluvião de olhares impertinentes, como se a sua presença ali fosse a coisa mais natural do mundo, Hugh deteve o seu esquelético cavalo na entrada, e, com toda a tranquilidade, desmontou.
Acercou-se-lhe um daqueles homens, de cabeleira ruiva e rosto sardento, cujos olhos miravam de esguelha. Tratava-se de Tony Legrand. Perguntou ao recém--chegado, com voz fria:
— Quem diabo és tu e o que é que perdeste por aqui?
Hugh não respondeu. Limitou-se a sorrir, enquanto a sua mão direita puxava para trás o objeto que usava na cabeça e que em tempos pretéritos fora um chapéu.
— Não sou nenhum diabo, amigo, nem tão-pouco perdi nada. No entanto, no dia em que me lembre de procurar um avestruz, já sei onde encontrá-lo.
Os olhinhos do sardento brilharam perigosamente ao compreender a zombaria de que o outro o tornava objeto. Por uns instantes pareceu a ponto de saltar sobre o seu interlocutor, mas deteve-se ao deitar uma olhadela para a alta estatura do andrajoso e a grande quantidade de músculos que devia ocultar-se sob aquelas roupas cerzidas por centos de sítios.
— Que quer esse tipo, Tony?
A voz saiu do alpendre que se levantava à direita do edifício. Um momento depois, a gigantesca figura de Walter Grinnell, tendo no seu rosto de símio aquela expressão de crueldade, acercou-se dos dois homens. Os outros, olhando interessados a cena, permaneceram na expectativa.
—É você o capataz, ao que vejo — afirmou Hugh, quando o outro chegou junto dele.
—Não te enganas, forasteiro. O que há?
—Não há nada. Necessito de falar com o dono desta fazenda.
— Parece-me que te enganaste no caminho, amigo. Aqui não se permite a entrada a mendigos. Podes voltar por onde vieste.
— Disse que necessito de falar com o dono ou dona. E como necessito de falar — acrescentou, humorístico — falarei.
Alguns dos ouvintes esboçaram risinhos irónicos ao observar as zombarias que empregava aquele estranho indivíduo; mas ao voltar o capataz a cabeça, as incipientes mostras de regozijo cessaram imediatamente.
— Raspa-te antes que te expulse a pontapés, vagabundo! — rugiu, apertando os punhos. — No «Quatro Ventos» não admitimos tipos do teu carácter! Se necessitas de trabalho, dá um tiro na cabeça, mas não intentes gozar Walter Grinnell, porque...
Levantou o punho direito à altura dos olhos do seu interlocutor, como dando-lhe a entender que estava disposto a dar-lhe «massagens» no rosto com ele. Hugh Hallowan não fez o menor movimento que demonstrasse medo ou inquietação, embora a sua poderosa musculatura parecesse retesar-se, imitando o tigre que se dispõe a saltar sobre uma presa segura.
Não obstante, o seu rosto continuou luzindo aquele sorriso irónico anterior, embora os seus olhos cinzentos brilhassem agora com maior intensidade. Quanto à cor do seu rosto teria sido muito difícil defini-la, em virtude de estar coberto com uma capa de pelo e sujidade de respeitável grossura.
— Esse punho que me está mostrando, amigo paquiderme, guarde-o para o ir chupando pouco a pouco. Tenho ouvido que os elefantes africanos são muito aficionados a...
Walter não esperou mais. Lançou aquela espécie de maço, que era o seu punho, contra o rosto barbudo de Hugh. Por pouco que o alcançava, e certamente ali teria acabado a zombaria do vagabundo, mas este, que não parecia ser nenhum pateta, agachou-se a tempo e aquela maça de tendões e nós passou roçando a sua cabeça.
A resposta foi um fenomenal «direto» que o andrajoso colocou no estômago do homenzarrão, que sentiu como se tos seus enormes pulmões se tivessem esvaziado de ar e caiu de joelhos em terra.
O grito de comum assombro que lançaram os espectadores daquela cena e a coletiva expressão de pasmo que se estendeu por todos os rostos falavam por mi só da surpresa que em todos produziu a façanha do esfarrapado.
Ninguém tinha visto jamais Walter Grinnell naquela posição grotesca, apesar de o selvagem capataz ter lutado com todos os homens «duros» da comarca. Dando rugidos de fera e com os olhos mais esbugalhados do que usualmente, Walter levantou-se e arremeteu contra Hugh, que o olhava completamente tranquilo, sem deixar de sorrir.
Depois a coisa foi muito diferente. O forasteiro viu vir o seu inimigo e começou a mover-se de um lado para o outro, esquivando a avalancha de golpes que Walter lhe propinava, alguns dos quais, roçando-lhe somente os braços, lhe causavam o efeito de dolorosas queimaduras. Mas as réplicas de Hugh eram mais contundentes. O vagabundo movia-se com felina agilidade, colocando potentes golpes na pesada figura do capataz.
Numa das vezes, Walter apanhou de raspão o queixo proeminente do seu adversário e este caiu de costas, mas estava visto que o esfarrapado possuía recursos mais do que suficientes para vencer as situações difíceis.
Quando o rude capataz lhe caiu em cima, procurando golpeá-lo em inferioridade de condições, os pés do derrubado projetaram-se para a frente como que impulsionados por uma poderosa mola. As estafadas botas incrustaram-se no ventre de Walter e foi então que este mediu o chão, bramando como um desesperado.
Os mirones tinham até contido a respiração à espera do desenlace da brutal peleja. Entretanto, ambos os contendores continuavam a golpear-se sem descanso, embora se notassem fatigados por aquele desgaste de energias.
Via-se que Walter estava em transe de perder, já que o seu inimigo, infinitamente mais ágil e possuindo também uma dureza à prova de martelo, colocava tremendos murros no estômago e no rosto do seu antagonista, que apenas se preocupava já em parar aquela saraivada de impactos movendo contra ele os seus poderosos braços sem tom nem som e caminhando em sentido inverso ao que a lógica aconselhava.
Finalmente impôs-se um dos princípios fundamentais da física: a lei da gravidade. Esta, com a sua inexorável força, atraiu até ao solo a amachucada anatomia de Walter Grinnell, que se mantinha em pé por verdadeiro milagre, pois já não tinha o menor vestígio de energia para se suster na posição vertical.
Os espectadores reagiram em conformidade com as circunstâncias. Verdadeiros homens da pradaria todos eles, sabiam calibrar o temperamento das pessoas e render tributo à nobreza e valentia. E o vagabundo acabava de fazer uma generosa demonstração de ambas as coisas ao mesmo tempo. Não empregou nenhum truque desleal para vencer o capataz e a façanha revestia caracteres de extraordinária importância.
Começaram a soltar hurras em altos gritos, sendo o velho Cornell Johnson e o jovem Austin quem mais se distinguia nas suas demonstrações.
Hugh Hallowan, cambaleando em virtude do terrível esforço realizado, passou a mão pela testa e teve de apoiar-se contra as ancas do «Esqueleto». O esquálido animal não se tinha movido um ápice do sítio em que parou, mas agora lançava uns quantos relinchos, ninguém sabendo se de pena ou de contentamento, os quais se juntaram à algaraviada geral.
Mas então aconteceu alguma coisa que não estava ao programa. Todos se tinham desinteressado do flagelado capataz para contemplar o vencedor, esquecendo-se de que a resistência daquele superava tudo o que era normal.
O certo foi que todos viram, com horror, como a mão direita do derrotado empunhava um revólver e o levantava em direção ao seu inimigo, com uma frieza que crispava os nervos.
O grito de aviso que lançaram várias gargantas, embora oportuno, quase foi tardio. Soou um disparo, cujos ecos se multiplicaram quebrando a paz silente do entardecer. A mão direita, que uma décima de segundo antes permanecia inativa, segurava agora um pesado e fumegante «Colt» enquanto Walter emitia um rugido de besta ferida e apertava a ensanguentada mão com que linha intentado cometer a cobarde traição.
A figura do vagabundo, entre as suas velhíssimas roupas, parecia ter aumentado de tamanho ao acercar--se do caído. A sua voz, perdida a anterior ironia, soou fria como o gelo:
—És o bicho mais asqueroso com quem me encontrei na vida. Não te mato como a um cão porque não mereces o preço de uma bala... Porco traidor!
Interpôs-se a maravilhosa figura de Wanda Kollings. A jovem, que tinha presenciado quase toda a peleja sem intervir, tinha as suas formosas feições contraídas por um ricto de desespero.
— Ratifico o que este homem diz! — exclamou, encarando com o maltratado capataz. — Se você não era capaz de lutar cara a cara com alguém mais valente e destro, não deveria ter-se metido com ele. Intentou assassiná-lo vilmente e eu não estou disposta a dar albergue nesta casa a pessoas tão desprezíveis. Tome a suas coisas e vá-se embora daqui antes da noite!
À custa de ímprobos esforços, Walter Grinnell conseguiu pôr-se em pé. Com voz que quis tornar normal. mas que se assemelhava ao silvo da serpente ao sair dos seus lábios tumefactos, respondeu:
— Vou-me embora imediatamente, sim. Mas antes desejo cobrar o que se me deve. É o que normalmente costuma fazer-se ao despedir-se uma pessoa do seu trabalho.
Wanda olhou-o depreciativa. Em seguida, sem pronunciar palavra, dirigiu-se ao interior do rancho e na, demorou em voltar com algumas notas na mão.
— Tome e vá-se imediatamente.
— Oxalá te sirvam para um ataúde — foi a despedida de Cornei Johnson.
Walter pegou no dinheiro com a mão esquerda e guardou-o no bolso da camisa. Já tinha procurado ligar a direita com o lenço, sem que ninguém se oferecesse para o ajudar. Deu meia volta e dirigiu-se ao estábulo em busca do cavalo.
Quando o viram voltar, já montado, todos se afastaram e deixaram-lhe o caminho livre. Cornell olhou fixamente Tony Legrand e Lombell Dimtry.
— Vocês também se querem ir embora? Tenho ouvido dizer que sois íntimos amigos deste rufião.
— O diabo que o leve e mais aquilo que julga, Cornell! — respondeu Lombell, franzindo o sobrolho. - Tony e eu nada temos que ver com esse biltre. Não é assim, Tony?
— Por mim, um raio que o parta — manifestou o aludido.
Wanda tomou de novo a palavra. Dirigindo-se ao resto dos vaqueiros, disse:
— Sinto sinceramente não poder pagar-lhes o dinheiro que lhes devo, meus amigos, pois apenas fiquei com uns dólares depois de abonar a Walter as três mensalidades. Vocês não ignoram a fatal situação que estamos atravessando por culpa da seca e dos roubos de gado que os ladrões de gado levaram a cabo na minha fazenda. Consta-me que vocês não fizeram grande coisa para evitar os ditos roubos, mas também não posso censurá-los por isso, pois estou inteiramente de acordo que, para o que recebem, já fazem demasiado. Só quero pedir-lhes que esperem que esta horrível situação se resolva favoravelmente, e então saberei compensá-los como é devido. Não obstante, se algum de vocês desejar ir-se embora, pode fazê-lo livremente, visto que não tenho o menor direito de retê-los ao meu serviço contra vossa vontade. São vocês que têm de decidi-lo.
Cornell Johnson e o jovem Austin, como se de uma só pessoa se tratasse, adiantaram um passo em direção à rapariga.
— Conte sempre connosco, aconteça o que acontecer — disse Cornell, falando no plural.
O resto dos vaqueiros olharam-se uns aos outros, como que envergonhados de se terem comportado tão mal por não fazerem nada para impedir os desmandos dos foragidos.
As palavras da jovem deviam ter ferido profundamente os apagados sentimentos daqueles homens, que sempre se tinham comportado ao sabor das circunstâncias. Com a cabeça baixa, sem se atreverem a olhar frente a rapariga, todos foram desfilando perante pronunciando palavras mais ou menos parecidas.
— Conte comigo, patroa.
—Faremos o possível para castigar essa gentalha.
— Perdoe a nossa despreocupação. Em termos semelhantes se expressaram todos.
— Obrigada, amigos — murmurou Wanda, com voz velada pela emoção. -- Não esperava menos de verdadeiros homens do Oeste, como vocês são. Agora, se estão de acordo, nomearei capataz Cornell Johnson. Têm alguma coisa a opor?
Nenhum fez o menor, comentário sobre a decisão adotada. Limitaram-se a dar a sua aquiescência, movendo a cabeça em sinal afirmativo.
—E se eu não quisesse aceitar esse cargo, o que se passaria? — disse Cornell coçando o pescoço. — Consultaram-me, porventura, para adotar essa medida? Parece-me, pequena, que pensas as coisas muito levianamente.
— Você fará o que eu disser, velhote — sorriu a jovem. — Já que não quis aceitar este cargo no tempo em que meu pai vivia, terá de o fazer agora.
Cornell acabou por encolher os ombros.
— Bem; já que tanto te empenhas...
Todos sorriram ante a casmurrice do velho lutador, era do domínio geral o grande carinho que Cornell professava à jovem. Naquele momento, Wanda pareceu lembrar-se de al-uma coisa. Voltou-se lentamente e contemplou a extravagante figura de Hugh Hallowan.
O jovem vagabundo tinha escutado a anterior conversa, apoiado nas ancas do seu cavalicoque e sem abandonar um só instante a expressão trocista do seu rosto.
— Bem — disse a rancheirinha, encarando com ele — você ficou inteiramente tranquilo depois de ter desencadeado um verdadeiro cataclismo. Posso saber o que veio aqui buscar?
— Necessito de falar com o dono ou dona de tudo — replicou Hugh, com o mesmo tom de quem repete uma lição aprendida de cor. — Já o disse ao gorila seu ex-capataz.
— Pois bem, eu sou a dona, ao menos por agora. O que queria dizer-me?
— Que tenho uma boca.
— Hã?
-- E um estômago.
— Oiça, oiça -- replicou Wanda, arqueando as sobrancelhas num gesto de desgosto. — Se veio para experimentar a minha paciência, pode partir imediatamente.
—Não me interessa a sua paciência, menina, apesar de ser magnífica. Prefiro um bom prato de alguma coisa que se possa mastigar e uma cuba de alguma coisa que se possa beber, mas que não seja água.
Apesar da gravidade da situação, Wanda não pôde evitar uma gargalhada que não tardou a tornar-se extensiva aos. demais. A desfaçatez daquele indivíduo superava o normal.
— Está bem, homem. Você quer dar a entender, com essa forma pitoresca de se expressar, que tem fome. Não é isso?
— Mais do que seis vacas juntas. Não comi nada desde que terminou a Guerra da Secessão. Todos tornaram a rir. Foi então que Cornell tomou a palavra.
— Se não comeu há tanto tempo, onde foi buscar forças para vencer o mastodonte do Walter?
— Emprestou-mas o meu cavalo. Não veem como está gordo e lustroso?
Todos os olhares convergiram para o monte de ossos de «Esqueleto» e as gargalhadas formaram um trovão E aqui está como a uma cena desagradável como a que foi aquela peleja brutal, que esteve a ponto de acabar em drama, sucedeu outra enormemente cómica e divertida.
O humor daquele indivíduo pareci inesgotável e tornava-se de todo o ponto impossível subtrair-se à simpatia que emanava da sua pessoa. Wanda, uma vez acalmada a sua hilaridade, voltou-se para Cornell Johnson.
— Que lhe parece, Cornell? Acha que devemos convidá-lo a cear?
— Imediatamente. A tareia que deu ao selvagem do Walter Grinnell merece um prémio.
— Pois não se fala mais nisso. Leve você essa caricatura de cavalo para o estábulo e prepare-se para encher o estômago. Amanhã, Deus dará.
— Oiça, menina, eu também queria ficar a trabalhar seu rancho — respondeu o esfarrapado. --Vim aqui com essa intenção.
— O que é que sabe fazer?
— Pois... de tudo um pouco.
— Não é muito, mas o suficiente. Pode ficar, se lhe interessa, embora as condições que posso oferecer-lhe deixem muito a desejar. Já ouviu tudo quanto disse aos meus homens.
— Bah!... O dinheiro é o que menos importa na vida, menina. Eu sou feliz sem um cêntimo... Bem, reconheço que emprego uma filosofia demasiado barata e incapaz de interessar a alguém.
— De acordo — replicou Wanda, olhando o seu interlocutor com simpatia. — Agora só me falta que diga quem você é.
— Um esfarrapado.
— Isso salta à vista, homem; não é preciso que o jure. Refiro-me ao seu nome.
— Todos me chamam Hugh Hallowan. — E acrescentou orgulhoso: — É um nome muito bonito.
— Não está mal — sorriu ela. Pouco depois, os vaqueiros ocupavam os seus respetivos lugares na mesa corrida do refeitório.
Podiam calcular-se-lhe uns trinta anos, se bem que a barba de vários dias que cobria as suas feições, a grande e descuidada melena negra que assomava sob as abas descaídas de um chapéu sujo e desbotada e a esfarrapada trapagem que vestia, faziam--no parecer um homem de quarenta.
Até as caixas de cedro do revólver que pendiam do seu lado direito eram velhas e gastas, embora isto pudesse atribuir-se a que a arma teria entrado em contacto com a mão do seu dono muitas vezes.
Quando o andrajoso cavaleiro se cansou de permanecer naquela postura contemplativa, inclinou-se ligeiramente para diante, acariciou o pescoço do cavalo e disse em voz alta:
— Vamos, amigo «Esqueleto». Parece-me que já chegamos ao fim da nossa viagem.
O nome assentava ao cavalo como uma luva. Dificilmente se poderia ter encontrado um animal tão seco e desarticulado, tão esquelético...
Tinha, como vulgarmente costuma dizer-se, a pele pegada ao osso, mas que ossos! Parecia como se o animal tivesse sido construído artificialmente, empregando para ele o esqueleto de algum megatério antediluviano, desses que se encontram nos museus zoológicos.
O animal deu a impressão de ter compreendido perfeitamente a ordem do seu dono, pois acto contínuo começou a galopar pela ravina abaixo. Fazia-o de maneira inverosímil, dando a sensação de que ia desarticular-se de um momento para o outro; mas o seu galope era rapidíssimo, movendo as suas largas patas e secas com velocidade extraordinária.
Para a mentalidade de qualquer pessoa normal teria constituído um mistério impenetrável descobrir onde «Esqueleto» ia buscar forças para manter o ritmo daquele endiabrado galope.
Um quarto de hora mais tarde, cavalo e cavaleiro atravessavam a planície por uma estrada ampla e recta da qual partiam algumas mais estreitas e que certamente conduziriam aos diferentes ranchos do vale.
Hugh Hallowan refreou o galope de «Esqueleto» e esperou que dois cavaleiros, que galopavam atrás dele chegassem perto de si. Estes levavam os seus cavalos a trote e pararam também ao ver que o jovem lhes fazia sinais com a mão.
— Boas tardes, amigos — saudou Hugh, afetuosamente — Algum dos senhores dizer-me para que lado ira o rancho «Quatro Ventos»?
Os dois homens ficaram olhando aquela estranha figura equestre, fazendo inauditos esforços para não romperem a rir às gargalhadas. Conteve-os seguramente o brilho acerado dos seus olhos ou a humanitária ideia de que não é bonito divertir-se à custa de um semelhante. O caso é que ambos os homens permaneceram mais sérios do que estacas.
— Vai pedir trabalho ali, forasteiro? — foi a resposta do mais jovem.
— Com efeito, é essa a minha intenção.
— Então vale mais que volte para trás, amigo — interveio o outro. — «Quatro Ventos» não há lugar nem para um gato... Andam mal as coisas por ali...
Hugh encolheu os ombros, indiferente.
— Em qualquer caso — insistiu — gostaria de chegar até essa fazenda. Em Dudley ouvi dizer que faltavam bons vaqueiros em «Quatro Ventos» e quero tirar as dúvidas.
O mais novo dos dois «cowboys» esteve a ponto de dizer que se aquele tipo esfarrapado era um bom vaqueiro, ele era o presidente dos Estados Unidos. Mas evitou cautelosamente exteriorizar o seu pensamento.
— Siga por esse caminho da direita — disse por fim o vaqueiro -- Encontrará o que procura sem perguntar a mais ninguém. É o primeiro rancho, também à direita.
—Obrigado, companheiros.
Os dois cavaleiros olharam-se entre si, estranhando que os apelidasse de companheiros um indivíduo que mais se assemelhava a um mendigo da pradaria. Responderam com um grunhido e picaram de esporas.
A estranha personagem viu-os perderem-se numa curva do caminho, em direção a Valley Smoky, e sorriu, com se o divertisse a impressão desagradável que a sua pessoa causava nos outros.
Fez uma levíssima pressão nos flancos de «Esqueleto» e o animal retomou o galope na direção que o seu dono o obrigou a seguir.
Muitos pares de olhos viram aproximar-se o cavaleiro. Eram os quinze homens que compunham a equipa ido «Quatro Ventos», que acabavam de chegar das pastagens e esperavam que a velha cozinheira Ruth os chamasse para cear.
Tinham levado já os cavalos para o estábulo e passeavam pelo pátio, uns poucos conversando e os outros de semblante carrancudo. Não obstante, agora todos mantinham a vista fixa na pessoa que chegava, cessando dos seus passeios alguns deles o olhando-se entre si de vez em quando, como inquirindo em muda interrogação quem era aquele tipo tão esfarrapado e que diabo buscaria por ali.
Sem fazer o menor caso daquela aluvião de olhares impertinentes, como se a sua presença ali fosse a coisa mais natural do mundo, Hugh deteve o seu esquelético cavalo na entrada, e, com toda a tranquilidade, desmontou.
Acercou-se-lhe um daqueles homens, de cabeleira ruiva e rosto sardento, cujos olhos miravam de esguelha. Tratava-se de Tony Legrand. Perguntou ao recém--chegado, com voz fria:
— Quem diabo és tu e o que é que perdeste por aqui?
Hugh não respondeu. Limitou-se a sorrir, enquanto a sua mão direita puxava para trás o objeto que usava na cabeça e que em tempos pretéritos fora um chapéu.
— Não sou nenhum diabo, amigo, nem tão-pouco perdi nada. No entanto, no dia em que me lembre de procurar um avestruz, já sei onde encontrá-lo.
Os olhinhos do sardento brilharam perigosamente ao compreender a zombaria de que o outro o tornava objeto. Por uns instantes pareceu a ponto de saltar sobre o seu interlocutor, mas deteve-se ao deitar uma olhadela para a alta estatura do andrajoso e a grande quantidade de músculos que devia ocultar-se sob aquelas roupas cerzidas por centos de sítios.
— Que quer esse tipo, Tony?
A voz saiu do alpendre que se levantava à direita do edifício. Um momento depois, a gigantesca figura de Walter Grinnell, tendo no seu rosto de símio aquela expressão de crueldade, acercou-se dos dois homens. Os outros, olhando interessados a cena, permaneceram na expectativa.
—É você o capataz, ao que vejo — afirmou Hugh, quando o outro chegou junto dele.
—Não te enganas, forasteiro. O que há?
—Não há nada. Necessito de falar com o dono desta fazenda.
— Parece-me que te enganaste no caminho, amigo. Aqui não se permite a entrada a mendigos. Podes voltar por onde vieste.
— Disse que necessito de falar com o dono ou dona. E como necessito de falar — acrescentou, humorístico — falarei.
Alguns dos ouvintes esboçaram risinhos irónicos ao observar as zombarias que empregava aquele estranho indivíduo; mas ao voltar o capataz a cabeça, as incipientes mostras de regozijo cessaram imediatamente.
— Raspa-te antes que te expulse a pontapés, vagabundo! — rugiu, apertando os punhos. — No «Quatro Ventos» não admitimos tipos do teu carácter! Se necessitas de trabalho, dá um tiro na cabeça, mas não intentes gozar Walter Grinnell, porque...
Levantou o punho direito à altura dos olhos do seu interlocutor, como dando-lhe a entender que estava disposto a dar-lhe «massagens» no rosto com ele. Hugh Hallowan não fez o menor movimento que demonstrasse medo ou inquietação, embora a sua poderosa musculatura parecesse retesar-se, imitando o tigre que se dispõe a saltar sobre uma presa segura.
Não obstante, o seu rosto continuou luzindo aquele sorriso irónico anterior, embora os seus olhos cinzentos brilhassem agora com maior intensidade. Quanto à cor do seu rosto teria sido muito difícil defini-la, em virtude de estar coberto com uma capa de pelo e sujidade de respeitável grossura.
— Esse punho que me está mostrando, amigo paquiderme, guarde-o para o ir chupando pouco a pouco. Tenho ouvido que os elefantes africanos são muito aficionados a...
Walter não esperou mais. Lançou aquela espécie de maço, que era o seu punho, contra o rosto barbudo de Hugh. Por pouco que o alcançava, e certamente ali teria acabado a zombaria do vagabundo, mas este, que não parecia ser nenhum pateta, agachou-se a tempo e aquela maça de tendões e nós passou roçando a sua cabeça.
A resposta foi um fenomenal «direto» que o andrajoso colocou no estômago do homenzarrão, que sentiu como se tos seus enormes pulmões se tivessem esvaziado de ar e caiu de joelhos em terra.
O grito de comum assombro que lançaram os espectadores daquela cena e a coletiva expressão de pasmo que se estendeu por todos os rostos falavam por mi só da surpresa que em todos produziu a façanha do esfarrapado.
Ninguém tinha visto jamais Walter Grinnell naquela posição grotesca, apesar de o selvagem capataz ter lutado com todos os homens «duros» da comarca. Dando rugidos de fera e com os olhos mais esbugalhados do que usualmente, Walter levantou-se e arremeteu contra Hugh, que o olhava completamente tranquilo, sem deixar de sorrir.
Depois a coisa foi muito diferente. O forasteiro viu vir o seu inimigo e começou a mover-se de um lado para o outro, esquivando a avalancha de golpes que Walter lhe propinava, alguns dos quais, roçando-lhe somente os braços, lhe causavam o efeito de dolorosas queimaduras. Mas as réplicas de Hugh eram mais contundentes. O vagabundo movia-se com felina agilidade, colocando potentes golpes na pesada figura do capataz.
Numa das vezes, Walter apanhou de raspão o queixo proeminente do seu adversário e este caiu de costas, mas estava visto que o esfarrapado possuía recursos mais do que suficientes para vencer as situações difíceis.
Quando o rude capataz lhe caiu em cima, procurando golpeá-lo em inferioridade de condições, os pés do derrubado projetaram-se para a frente como que impulsionados por uma poderosa mola. As estafadas botas incrustaram-se no ventre de Walter e foi então que este mediu o chão, bramando como um desesperado.
Os mirones tinham até contido a respiração à espera do desenlace da brutal peleja. Entretanto, ambos os contendores continuavam a golpear-se sem descanso, embora se notassem fatigados por aquele desgaste de energias.
Via-se que Walter estava em transe de perder, já que o seu inimigo, infinitamente mais ágil e possuindo também uma dureza à prova de martelo, colocava tremendos murros no estômago e no rosto do seu antagonista, que apenas se preocupava já em parar aquela saraivada de impactos movendo contra ele os seus poderosos braços sem tom nem som e caminhando em sentido inverso ao que a lógica aconselhava.
Finalmente impôs-se um dos princípios fundamentais da física: a lei da gravidade. Esta, com a sua inexorável força, atraiu até ao solo a amachucada anatomia de Walter Grinnell, que se mantinha em pé por verdadeiro milagre, pois já não tinha o menor vestígio de energia para se suster na posição vertical.
Os espectadores reagiram em conformidade com as circunstâncias. Verdadeiros homens da pradaria todos eles, sabiam calibrar o temperamento das pessoas e render tributo à nobreza e valentia. E o vagabundo acabava de fazer uma generosa demonstração de ambas as coisas ao mesmo tempo. Não empregou nenhum truque desleal para vencer o capataz e a façanha revestia caracteres de extraordinária importância.
Começaram a soltar hurras em altos gritos, sendo o velho Cornell Johnson e o jovem Austin quem mais se distinguia nas suas demonstrações.
Hugh Hallowan, cambaleando em virtude do terrível esforço realizado, passou a mão pela testa e teve de apoiar-se contra as ancas do «Esqueleto». O esquálido animal não se tinha movido um ápice do sítio em que parou, mas agora lançava uns quantos relinchos, ninguém sabendo se de pena ou de contentamento, os quais se juntaram à algaraviada geral.
Mas então aconteceu alguma coisa que não estava ao programa. Todos se tinham desinteressado do flagelado capataz para contemplar o vencedor, esquecendo-se de que a resistência daquele superava tudo o que era normal.
O certo foi que todos viram, com horror, como a mão direita do derrotado empunhava um revólver e o levantava em direção ao seu inimigo, com uma frieza que crispava os nervos.
O grito de aviso que lançaram várias gargantas, embora oportuno, quase foi tardio. Soou um disparo, cujos ecos se multiplicaram quebrando a paz silente do entardecer. A mão direita, que uma décima de segundo antes permanecia inativa, segurava agora um pesado e fumegante «Colt» enquanto Walter emitia um rugido de besta ferida e apertava a ensanguentada mão com que linha intentado cometer a cobarde traição.
A figura do vagabundo, entre as suas velhíssimas roupas, parecia ter aumentado de tamanho ao acercar--se do caído. A sua voz, perdida a anterior ironia, soou fria como o gelo:
—És o bicho mais asqueroso com quem me encontrei na vida. Não te mato como a um cão porque não mereces o preço de uma bala... Porco traidor!
Interpôs-se a maravilhosa figura de Wanda Kollings. A jovem, que tinha presenciado quase toda a peleja sem intervir, tinha as suas formosas feições contraídas por um ricto de desespero.
— Ratifico o que este homem diz! — exclamou, encarando com o maltratado capataz. — Se você não era capaz de lutar cara a cara com alguém mais valente e destro, não deveria ter-se metido com ele. Intentou assassiná-lo vilmente e eu não estou disposta a dar albergue nesta casa a pessoas tão desprezíveis. Tome a suas coisas e vá-se embora daqui antes da noite!
À custa de ímprobos esforços, Walter Grinnell conseguiu pôr-se em pé. Com voz que quis tornar normal. mas que se assemelhava ao silvo da serpente ao sair dos seus lábios tumefactos, respondeu:
— Vou-me embora imediatamente, sim. Mas antes desejo cobrar o que se me deve. É o que normalmente costuma fazer-se ao despedir-se uma pessoa do seu trabalho.
Wanda olhou-o depreciativa. Em seguida, sem pronunciar palavra, dirigiu-se ao interior do rancho e na, demorou em voltar com algumas notas na mão.
— Tome e vá-se imediatamente.
— Oxalá te sirvam para um ataúde — foi a despedida de Cornei Johnson.
Walter pegou no dinheiro com a mão esquerda e guardou-o no bolso da camisa. Já tinha procurado ligar a direita com o lenço, sem que ninguém se oferecesse para o ajudar. Deu meia volta e dirigiu-se ao estábulo em busca do cavalo.
Quando o viram voltar, já montado, todos se afastaram e deixaram-lhe o caminho livre. Cornell olhou fixamente Tony Legrand e Lombell Dimtry.
— Vocês também se querem ir embora? Tenho ouvido dizer que sois íntimos amigos deste rufião.
— O diabo que o leve e mais aquilo que julga, Cornell! — respondeu Lombell, franzindo o sobrolho. - Tony e eu nada temos que ver com esse biltre. Não é assim, Tony?
— Por mim, um raio que o parta — manifestou o aludido.
Wanda tomou de novo a palavra. Dirigindo-se ao resto dos vaqueiros, disse:
— Sinto sinceramente não poder pagar-lhes o dinheiro que lhes devo, meus amigos, pois apenas fiquei com uns dólares depois de abonar a Walter as três mensalidades. Vocês não ignoram a fatal situação que estamos atravessando por culpa da seca e dos roubos de gado que os ladrões de gado levaram a cabo na minha fazenda. Consta-me que vocês não fizeram grande coisa para evitar os ditos roubos, mas também não posso censurá-los por isso, pois estou inteiramente de acordo que, para o que recebem, já fazem demasiado. Só quero pedir-lhes que esperem que esta horrível situação se resolva favoravelmente, e então saberei compensá-los como é devido. Não obstante, se algum de vocês desejar ir-se embora, pode fazê-lo livremente, visto que não tenho o menor direito de retê-los ao meu serviço contra vossa vontade. São vocês que têm de decidi-lo.
Cornell Johnson e o jovem Austin, como se de uma só pessoa se tratasse, adiantaram um passo em direção à rapariga.
— Conte sempre connosco, aconteça o que acontecer — disse Cornell, falando no plural.
O resto dos vaqueiros olharam-se uns aos outros, como que envergonhados de se terem comportado tão mal por não fazerem nada para impedir os desmandos dos foragidos.
As palavras da jovem deviam ter ferido profundamente os apagados sentimentos daqueles homens, que sempre se tinham comportado ao sabor das circunstâncias. Com a cabeça baixa, sem se atreverem a olhar frente a rapariga, todos foram desfilando perante pronunciando palavras mais ou menos parecidas.
— Conte comigo, patroa.
—Faremos o possível para castigar essa gentalha.
— Perdoe a nossa despreocupação. Em termos semelhantes se expressaram todos.
— Obrigada, amigos — murmurou Wanda, com voz velada pela emoção. -- Não esperava menos de verdadeiros homens do Oeste, como vocês são. Agora, se estão de acordo, nomearei capataz Cornell Johnson. Têm alguma coisa a opor?
Nenhum fez o menor, comentário sobre a decisão adotada. Limitaram-se a dar a sua aquiescência, movendo a cabeça em sinal afirmativo.
—E se eu não quisesse aceitar esse cargo, o que se passaria? — disse Cornell coçando o pescoço. — Consultaram-me, porventura, para adotar essa medida? Parece-me, pequena, que pensas as coisas muito levianamente.
— Você fará o que eu disser, velhote — sorriu a jovem. — Já que não quis aceitar este cargo no tempo em que meu pai vivia, terá de o fazer agora.
Cornell acabou por encolher os ombros.
— Bem; já que tanto te empenhas...
Todos sorriram ante a casmurrice do velho lutador, era do domínio geral o grande carinho que Cornell professava à jovem. Naquele momento, Wanda pareceu lembrar-se de al-uma coisa. Voltou-se lentamente e contemplou a extravagante figura de Hugh Hallowan.
O jovem vagabundo tinha escutado a anterior conversa, apoiado nas ancas do seu cavalicoque e sem abandonar um só instante a expressão trocista do seu rosto.
— Bem — disse a rancheirinha, encarando com ele — você ficou inteiramente tranquilo depois de ter desencadeado um verdadeiro cataclismo. Posso saber o que veio aqui buscar?
— Necessito de falar com o dono ou dona de tudo — replicou Hugh, com o mesmo tom de quem repete uma lição aprendida de cor. — Já o disse ao gorila seu ex-capataz.
— Pois bem, eu sou a dona, ao menos por agora. O que queria dizer-me?
— Que tenho uma boca.
— Hã?
-- E um estômago.
— Oiça, oiça -- replicou Wanda, arqueando as sobrancelhas num gesto de desgosto. — Se veio para experimentar a minha paciência, pode partir imediatamente.
—Não me interessa a sua paciência, menina, apesar de ser magnífica. Prefiro um bom prato de alguma coisa que se possa mastigar e uma cuba de alguma coisa que se possa beber, mas que não seja água.
Apesar da gravidade da situação, Wanda não pôde evitar uma gargalhada que não tardou a tornar-se extensiva aos. demais. A desfaçatez daquele indivíduo superava o normal.
— Está bem, homem. Você quer dar a entender, com essa forma pitoresca de se expressar, que tem fome. Não é isso?
— Mais do que seis vacas juntas. Não comi nada desde que terminou a Guerra da Secessão. Todos tornaram a rir. Foi então que Cornell tomou a palavra.
— Se não comeu há tanto tempo, onde foi buscar forças para vencer o mastodonte do Walter?
— Emprestou-mas o meu cavalo. Não veem como está gordo e lustroso?
Todos os olhares convergiram para o monte de ossos de «Esqueleto» e as gargalhadas formaram um trovão E aqui está como a uma cena desagradável como a que foi aquela peleja brutal, que esteve a ponto de acabar em drama, sucedeu outra enormemente cómica e divertida.
O humor daquele indivíduo pareci inesgotável e tornava-se de todo o ponto impossível subtrair-se à simpatia que emanava da sua pessoa. Wanda, uma vez acalmada a sua hilaridade, voltou-se para Cornell Johnson.
— Que lhe parece, Cornell? Acha que devemos convidá-lo a cear?
— Imediatamente. A tareia que deu ao selvagem do Walter Grinnell merece um prémio.
— Pois não se fala mais nisso. Leve você essa caricatura de cavalo para o estábulo e prepare-se para encher o estômago. Amanhã, Deus dará.
— Oiça, menina, eu também queria ficar a trabalhar seu rancho — respondeu o esfarrapado. --Vim aqui com essa intenção.
— O que é que sabe fazer?
— Pois... de tudo um pouco.
— Não é muito, mas o suficiente. Pode ficar, se lhe interessa, embora as condições que posso oferecer-lhe deixem muito a desejar. Já ouviu tudo quanto disse aos meus homens.
— Bah!... O dinheiro é o que menos importa na vida, menina. Eu sou feliz sem um cêntimo... Bem, reconheço que emprego uma filosofia demasiado barata e incapaz de interessar a alguém.
— De acordo — replicou Wanda, olhando o seu interlocutor com simpatia. — Agora só me falta que diga quem você é.
— Um esfarrapado.
— Isso salta à vista, homem; não é preciso que o jure. Refiro-me ao seu nome.
— Todos me chamam Hugh Hallowan. — E acrescentou orgulhoso: — É um nome muito bonito.
— Não está mal — sorriu ela. Pouco depois, os vaqueiros ocupavam os seus respetivos lugares na mesa corrida do refeitório.
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