segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

PAS853. Um ajudante de xerife qoe gostava de cavalgar

Kild Janos, o ajudante do xerife, era um mocetão ágil e forte. O seu passatempo predileto consistia em andar a cavalo e o pessoal dos «ranchos» ou os cavaleiros que demandavam a cidade encontravam-no a cavalgar sozinho pela pradaria plana, que os raios do sol queimavam ao atingir a força máxima do seu esplendor.
Aquele que vive no Oeste está sujeito às suas leis naturais, que ninguém criou, ou melhor, foram o fruto de uma existência árdua e rude. Assim, se um «rancheiro» pensa admitir um vaqueiro hábil a montar para conduzir o gado, ao perguntar-lhe: «Você sabe montar»? — o outro não vai responder afirmativamente e tecer elogios à sua perícia. Limitar-se-á a dizer, modestamente: «Não custa nada experimentar. Pode ser que eu dê um jeito» — ou então: «Talvez. Se me der licença vou experimentar» -- e o «rancheiro» sabe automaticamente que tem um bom cavaleiro, porque este não se vangloria da sua habilidade hípica. Se, ao invés, o candidato a empregado respondesse: «Se monto?! Sou o melhor cavaleiro desta região!» — então o padrão voltar-se-á para o seu pessoal, dizendo: — «Hem, rapaziada, até que enfim encontrámos um que sabe montar! Tragam o cavalo» — e o cavalo que eles iam buscar era, certamente, um alazão bravio ou ainda não domesticado, sendo certo e sabido que o vaqueiro não se aguentaria muito tempo na sela, acabando por morder o pó, provocando o gáudio dos circunstantes. Em Enid era assim! Cada região tem as suas leis e costumes diferentes, que se modificam de uma terra para outra. E por isso que, sempre que um forasteiro chega a um povoado à procura de trabalho, informa-se imediatamente dos seus usos.
Kild Janos era capaz de montar qualquer cavalo, com ou sem sela. Inúmeras vezes ia até aos «ranchos», quando sabia que lá queriam domesticar um potro selvagem, saindo sempre vencedor. Por este facto era bem conhecido pelo pessoal das fazendas. Mal apanhava um espaço de tempo livre, montava no «Judy» — nome que dava ao cavalo — e saía da cidade. Costumava ir ao Monte Escarpado, elevação rochosa de onde se divisava uma bela paisagem. Enquanto «Judy» ficava livremente a mordiscar as ervas, nada tenras, que cresciam por entre as fragas, Kild escalava a rocha até atingir a crista, onde ficava sentado, a contemplar o espetáculo impressionante e angustioso, que a Natureza oferecia aos seus olhos. A terra era estéril e pedregosa, sem vegetação de qualquer espécie, parecendo ter sido calcinada por um fenomenal incêndio, até próximo da cerca, lá muito ao fundo, que demarcava o «rancho» de Burt Sullivan.
Paradoxalmente, as terras de Sullivan eram produtivas e fartas. Este milagre, quase lhe podemos chamar assim, era devido à circunstância feliz de naquela propriedade existir uma nascente de água que brotando da rocha lá ia, pela terra fora, engrossando sempre, passando para outras fazendas, marginada por ulmeiros e algodoeiros que, vistos daquele ponto altaneiro, definiam as voltas graciosas do ribeiro.
Boggy — nome de batismo do ribeiro — possuía o dom de fertilizar as terras por onde passava. Por sua causa, logo depois da «Corrida» e da atribuição dos lotes aos futuros proprietários, surgiu um conflito que não degenerou em guerra aberta entre os fazendeiros, porque um tal Green se meteu de medianeiro para resolver o problema.
Tudo começou por Burt Sullivan querer impedir que a nascente de água que brotava nos seus domínios passasse para as terras dos outros. Green, de quem ainda alguns se lembravam, não conseguiu às primeiras convencer o casmurro Burt que se o ribeiro nascia na sua propriedade também podia ter nascido noutra qualquer e ele então ficaria na situação dos outros «rancheiros».
Sullivan só amansou quando Green o ameaçou que ia pedir a intervenção do Governo para resolver o litígio e ele podia ser expropriado da propriedade. Desde essa altura, ninguém voltou a incomodar-se com o Boggy e este continuava a correr livremente pelo seu leito já talhado no solo. Green era barbeiro, mas, meses mais tarde, constando-se a descoberta de ouro mais ao Sul, para ali foi, como espécie de garimpeiro, nunca mais regressando a Enid. Para lá do ribeiro, a campina verdejante estendia-se até se confundir com o horizonte.
Quando não ia para o Monte Escarpado, Kild atravessava a propriedade de Sullivan, para se deitar sobre a relva macia, debaixo de uma árvore. Descalçava as botas e ria sozinho, visto as ervas fazerem-lhe cócegas. Outras vezes, ia visitar o velho Howell.
Howell era uma espécie de ermitão, que vivia completamente só, numa barraca em ruínas na pradaria, descendo muito raramente à cidade. Passavam-se muitos meses sem que ninguém o visse. Os «rancheiros» estimavam-no e mandavam-lhe presentes — géneros alimentícios — pelos seus empregados. Desta maneira o velho vivia, sem dinheiro, mas com a mesa farta.
Antes, muito antes, de Enid nascer, quando aquela terra era denominada no mapa por Território Cherokee, zona dos índios «cherokee», Howell fora destacado para ali, trabalhava nos Correios, para guardar uma muda. Ele próprio dirigira a construção daquele barracão e, quando os três operários se foram embora, ficou s6 com a companhia dos quatro cavalos. Todas as semanas vinha um estafeta, transportando a mala do correio, que se demorava cinco minutos com Howell, bebendo um trago, partindo logo depois noutro cavalo em cavalgada endiabrada pela planície fora. Howell tinha nessa altura trinta e cinco anos. O cavalo cansado e suado era tratado e ficava três semanas a descansar, enquanto não chegava novamente a sua vez para mais uma corrida esfalfante, até à muda mais próxima, que distava umas boas dezenas de quilómetros. Howell soubera granjear a amizade dos índios, únicos seres viventes em muitas léguas em redor.
O grande «Chefe Cherokee» visitava-o amiudadas vezes e levava--lhe presentes. Chamava-lhe «o rosto-pálido amigo». Uma vez levara-lhe uma mulher, tornando-a sua serva. A índia era ainda nova e bonita. Howell, a muito custo, visto que para ela era uma honra habitar servilmente com o «rosto-pálido» amigo do Grande Chefe, conseguiu fazer-lhe entender que lhe restituía a liberdade e que, por isso, eras urna mulher livre, podendo ir paz aonde muito bem lhe apetecesse. Ela, porém, não o abandonou, continuando pela vida fora a ser sua mulher até que a doença, numa noite triste, a vitimou. Howell havia encontrado nela a compreensão, humildade e lealdade que muitas mulheres brancas não sabem dar.
Assim que o Território Cherokee foi comprado pelo Governo americano e os índios retrocederam para outras paragens, sendo substituídos pelos brancos que, como feras esfaimadas, vieram por ali abaixo na mira de ocuparem os melhores talhões, Howell não ficou radiante, como se possa supor.
Depois de muitos anos a falar a língua índia, quase não se lembrava já da sua fala de origem, e não era só isso, os seus hábitos, os seus costumes incompatibilizavam-no com os da sua raça. Howell não era já aquele moço decidido e vigoroso, de compleição atlética, de trinta e cinco anos. Tinha engordado, a pele encarquilhara e cansava-se rapidamente.
Começou a constar-se que os Correios iam acabar com os estafetas e as mudas nas terras onde houvesse serviço de transportes, sendo este pessoal desocupado empregado nos escritórios centrais. Howell descreu deste boato. Mas, uma manhã, pelo meio-dia, estava ele ocupado em distribuir a ração habitual pelos solípedes, quando o chamaram de «mister» Howell! Dois cavaleiros já de meia idade identificaram-se como pertencendo aos Correios. Howell acompanhou-os numa rápida visita de inspeção ao barracão e, no fim, «os dois senhores» disseram que estavam incumbidos de transmitir uma noticia ao pessoal. O velho ficou em suspenso. As mudas iam ser extinguidas e o pessoal aproveitado nos escritórios ramificados por todas as cidades. Brevemente viria alguém buscá-lo e aos cavalos.
— E o barracão? — perguntara o velho.
Os dois homens encolheram os ombros depreciativamente.
— Ficará para aí. Nem vale o trabalho de ser destruído. Não tarda que caia de podre!
Foram-se embora. Howell debatia-se num dilema. Ou abraçava um futuro incerto, nada promissor na sua idade, indo para a cidade trabalhar nos escritórios, ou ficava ali para sempre, à espera da sua hora, naquele barracão onde tinha vivido desde os trinta e cinco anos. Optou pela segunda hipótese e quando veio outro homem buscar os solípedes, disse-lhe que se despedia e ficaria ali.
As economias amealhadas durante o longo tempo do seu serviço deram-lhe para se governar por um ano. Mas quando acabaram, compreendeu que lhe restava morrer de fome. Isto teria acontecido se os «rancheiros» da região, ajuizando das suas dificuldades, não lhe tivessem valido.
E assim vivia o velho, naquela existência sem brilho, apegado àquele barracão de madeira apodrecida e aos trastes velhos do interior, que muitas recordações lhe guardavam.
Quando Kild o ia visitar, vinha recebê-lo à porta com as suas compridas barbas brancas, os olhos encovados, agarrado a um cajado, vestido de trapos, ou roupas desmedidamente grandes que o pessoal dos «ranchos» lhe dava. Sentavam-se os dois no chão à entrada a conversar, embora o Howell fosse de pouca e soturnas palavras. Mas um cigarrito dado por Kild humanizava-o um pouco.
O ajudante do xerife gostava de o ouvir. O velho era sincero e contava-lhe pormenores da sua vida e, às vezes, escapava-se-lhe dos lábios um triste comentário à sua presente situação, ou à ocupação pelos brancos daquele território índio, o que ele não aprovara. Os índios eram seus amigos e não concebia que os tivessem escorraçado dali. Quando se retirava, Kild Janos deixava-lhe sempre uns cigarritos e uma onça de tabaco para cachimbo comprado propositadamente na cidade.
Presentemente, porém, Kild não se dirigia para o Monte Escarpado, nem se deitava sobre a relva viçosa e muito menos ia visitar o velho Howell. Quando saia da cidade, levava um rumo definido. Esse secreto destino das suas saídas tinha um nome de gente. Ana Mattox Bronco!
A filha mais velha do xerife era já, com as suas dezasseis primaveras, uma bela mulher. Possuía os mesmos olhos do pai, o mesmo nariz e a mesma cor do cabelo. Eximia amazona gostava, também, de passear a cavalo. Montava quase sempre o «Tristão», bonito potro malhado.
Kild vira-a pela primeira vez, num pôr do sol. Cavalgava velozmente pela pradaria, incitando com gritos a montada, e o vento modelava-lhe o busto na camisete e fazia-lhe esvoaçar os cabelos. Kild Janos ficou parado, estupefacto, soprando o pó que os cascos do cavalo dela levantavam. Depois, cedendo a um impulso instintivo, esporeou o «Judy», correndo atrás da amazona. Se «Judy» era Veloz, «Tristão» não cedia terreno; se Janos era o melhor cavaleiro da região, Ana não tinha confronto entre as mulheres que montavam.
Deste duelo impressionante — subiam montes, desciam desfiladeiros, pulavam cercas, serpenteavam junto ao Boggy — resultou a derrota daquele que partira atrasado: Kild!
Pressentindo ser seguida, Ana olhara para trás avistando aquele cavaleiro curvado sobre a montada, interrogara-se sobre este procedimento e, compreendendo o desafio, sorriu vitoriosa. Será que entre um ser humano e um cavalo pode haver transmissão do pensamento por telepatia? O certo é que «Tristão» compreendeu também o repto e aumentou de velocidade. Devia estar na base deste entendimento o apertão das pernas de Ana. Depois de uma meia hora de corrida, sem que a distância que separava os dois diminuísse ou aumentasse, a amazona parou, não tardando que Kild se lhe juntasse.
— Tem uma boa montada, menina. Eu e «Judy» coramos de inveja! Sou Kild... Kild Janos, o ajudante do xerife.
— Meu pai...
— Meu pai...
— Meu pai... é o xerife!
Estas tinham sido as suas primeiras palavras... e é de adivinhar a atrapalhação de Kild. Desde esse pôr do sol, encontravam-se regularmente, sem que o pai, chefe de Janos, desconfiasse sequer daquele conhecimento. Cedo Ana e Kild compreenderam que se amavam. E então, o jovem começou a tomar conhecimento do que se passava em casa da noiva, pelas suas próprias palavras.
Ana Mattox era esperta e percebera, apesar do mutismo do pai, que as coisas no «rancho» não corriam bem. Artur, o capataz, desinteressava-se. Duas vezes fora apanhado a dormir e outras tantas a jogar às cartas com o pessoal. E as colheitas perdiam-se, o gado morria e a madeira das construções — casa, celeiro, estábulo, oficina — apodrecia.
Os únicos capazes de endireitar aquilo eram o próprio dono, Jefferson, mas esse via o seu tempo tomado pelos afazeres da profissão, ou Kild Janos, o seu jovem ajudante, homem novo, mas conhecedor de todos os trabalhos concernentes a um «rancho», possuindo ainda o vigor e energia dos vinte anos. Ana sabia que assim era e por isso pedia-lhe que falasse ao pai, visto que ele mais cedo teria de ser sabedor.
Kild, porém, temendo uma desilusão, adiava consecutivamente esse momento e interrogava-se: «Qual será o conceito que o velho tem por mim»?
Naquele dia, depois de se avistar uma vez mais com Ana prometera-lhe, jurando que falaria com o pai. Regressou ao povoado com esta determinação teimosa: «Algum dia terá de ser!» — confortava-se.
Desmontou à porta da Delegacia e foi encontrar o xerife dormitando, sentado na cadeira da secretária, com as mãos cruzadas sobre a barriga. Chamou-o:
—Xerife!
Bronco não se moveu e respondeu-lhe:
— Não estou a dormir, rapaz! Penso.
Kild olhou sério para o chefe e percebeu que, parecendo dormir, este observava a porta da entrada, com os olhos semicerrados.
— Onde foste?
— Vinha falar-lhe à cerca disso, chefe!
Jefferson sobressaltou-se. Teria Kild arranjado melhor emprego e desistira de ser seu auxiliar? O rapazote não valia grande coisa, essa era uma verdade, só pensava em passear e folgar. Quanto ao serviço, bem, que diabo, com isso não se preocupava ele, mas habituara-se a tê-lo com a força dos seus vinte anos. Bronco remexeu-se na cadeira e endireitou-se:
— Sabes que esse Brown já apresentou ao Mc'Cleen os papéis para se sagrar herdeiro do falecido? Amanhã far-se-á o inventário da herança... Mas, o que é que me querias dizer?
Apesar de firmemente resolvido a levar avante o seu propósito, Janos, não deixou de sentir um momento de hesitação. Mas não desistiu:
— As coisas lá pelo «Sol-Ar» não vão nada boas pois não, chefe? O pessoal dorme, ou joga às cartas e, entretanto, o serviço fica parado, não se faz, as casas apodrecem...
Bronco estava perplexo.
— Mas... Qual é a tua ideia! Queres comprar-me o «rancho»?
Janos riu alto.
— Não, chefe. A minha ideia é... ir trabalhar no seu «rancho»! —E continuou com mais calor: — O gado não está de todo perdido, as terras são produtivas, o madeirame das construções pode ser reparado. Você tem, ao sul, magníficas árvores de mogno, madeira excelente, e resistente, que pode ser utilizada nas reconstruções sem gasto de mão-de-obra.
— Que percebes tu disso, Kild?!
— Das árvores de mogno? A árvore é cortada a três metros do chão, quando a Lua está no minguante, porque sendo cortada antes da lua-cheia, o mogno tem menos seiva e é mais resistente...
Na verdade, Bronco não incidira a sua pergunta sobre o corte das árvores, mas sobre todos os trabalho agrícolas de um «rancho». Todavia, o moço, dando outro sentido à pergunta, dera-lhe uma resposta que o creditava conhecedor dos serviços. O xerife puxou do cachimbo, começando a atulhá-lo de tabaco.
— Tens razão ao afirmar que as coisas não vão boas lá por minha casa. Sabendo-me ausente, o pessoal desleixa-se e a propriedade, não dando lucro, dá ainda prejuízo.
—Despede-se esse tal Artur e põem-se os outros a trabalhar — exclamou o ajudante.
—És homens para isso?
Xerife e o ajudante apertaram as mãos, como se selassem um pacto. Bronco estava contente. Janos desandou para a porta e foi nessa altura que surgiu uma pergunta no cérebro de Jefferson:
— Espera — Kild parou e voltou-se. — Quem te disse tudo isso do meu «rancho»?
— Ah! Foi a Ana! — e saiu.
O xerife ficou especado e ainda murmurou:
— Ana?!
Só então percebeu tudo. Na realidade, as coisas eram bem simples.
— Ana e Kild! Tinha confiança no rapazote. Quem diria, hem! O diabo tece-as!
Pois se Janos queria roubar-lhe a Ana, tinha de demonstrar qualidades de trabalho... e «Sol-Ar» seria também seu! Sorriu. O cachimbo já estava cheio de tabaco e Bronco chegou-lhe o fogo. Aspirando longas fumaças, continuava a sorrir.

Sem comentários:

Enviar um comentário