quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

RB074.10 Equipa de ferreiros ao hotel! Já!

Não chegou à rua principal. Pouco depois viu uma ampla carroça parada, na parte exterior da cidade. E um carro velho, mas sólido e arranjado. 

Perto do carro, um rapazote soprava para uma fogueira que acabava de acender. Mas o rapazote tinha umas formas arredondadas, que não eram naturais. Não, aquilo não podia ser. Roy sentiu-se como se tivesse apanhado uma pancada no crânio. 

— Ingrid! — gritou. 

A rapariga voltou a cabeça. 

Ficou também corno que petrificada ao ver o rapaz. Levantou-se lentamente, esquecendo a fogueira. Estava, como sempre, vestia com roupas de rapaz e cheia de carvão, com os seus loiros e curtos cabelos caídos para a testa. 

Porém, as suas formas esculturais evidenciavam-se com aquelas roupas de homem, muito justas, mostrando que a sua proprietária era uma mulher. 

Roy aproximou-se mais. 

— Como é que vieste parar aqui? Convenci o velho a vir. 

— Mas isso é uma loucura! 

— Porquê? Ali tinham trabalho certo. 

— Estava aborrecida daquele ambiente, daque-las caras. Sempre a ver a mesma coisa; todas as semanas o mesmo, ouvindo as pessoas que lá iam para ferrarem os seus cavalos, a falarem do que tinham visto em tal ou tal sítio. 

Roy aceitou como boa aquela explicação. Nunca lhe ocorreu que a viagem da rapariga, precisamente a Tonopah, pudesse obedecer a outros motivos. 

— Sabes em que te meteste? Não é fácil estabelecerem-se de novo. 

— Já temos trabalho. 

— Como? 

— Uma mulher que tem uma mina de prata aqui, precisa de ferreiros para os seus cavalos e para as suas máquinas. Foi o administrador dela que nos disse isso quando nos contratou, acerca de uma hora. 

— Essa mulher chama-se Hada? 

— Creio que sim. 

Roy passou a mão pelo queixo. 

— Tem graça... 

— Porquê? 

— Porque sim. Mas olha que esta terra é perigosa. Onde está o velho? 

Nesse momento apareceu Tom, saindo de detrás do carro. 

— Roy: — exclamou ao ver o rapaz. — Isto é o que se chama uma boa surpresa! 

— Como é que se lembraram de vir aqui? 

— Nos lembrámos? Não fales no plural, rapaz. Como é que ela se lembrou é que deves perguntar. Que teimosia em querer vir a Tonopah. Queria vir aqui à viva força. Dizia que isto era maravilhoso e eu na verdade não vejo isso. Uma cidade rodeada de terra seca, como quase todas as de Nevada... O que é certo é que me obrigou a vender o negócio de qualquer mineira e a fazer as malas em dois dias. E ainda dizem que os filhos servem para alguma coisa. Com a minha idade... os sarilhos em que me vim meter por causa dessa teimosa! 

— Não te preocupes — murmurou Ingrid em tom conciliador. — Bem vês que já temos trabalho... 

— Mas não é a mesma coisa... A verdade é que não esperava encontrá-lo aqui, Roy. 

— Casualidades — disse o rapaz. 

E o pior foi que o disse de boa-fé. Se chegasse a ver o olhar que Ingrid lhe deitou caía para o lado. 

— Será possível? — perguntava Ingrid a si própria. — Será possível que este burro ainda não tenha percebido por que razão quis vir para Tonopah? 

Mas a verdade é que Roy não percebera nada e nenhuma outra ideia lhe passava pela cabeça. 

Ingrid suspirou desalentadamente. 

— Onde ficam as oficinas dessa companhia mineira? Interessa-nos chegarmos lá quanto antes.

Roy apontou para o horizonte. 

— Vês aquela casa? 

— Sim. 

— É aí. Os proprietários da mina são um casal. Suponho que lhes darão também alojamento, mas, entretanto, onde acamparão? 

— Aqui. 

— Está bem. Ao anoitecer virei aqui ver-te. 

— Obrigado, Roy.

Roy voltou rapidamente a cabeça para a olhar. 

— Roy? Que confiança é essa? Dantes tratavas-me por Senhor Roy. As raparigas devem ser bem-educadas. 

E afastou-se tranquilamente, Ingrid fez-se pálida, depois corou e finalmente ficou amarela. 

— Com que então «raparigas bem-educadas», como na escola, hem? — pensou. 

Esteve quase a atirar-lhe com uma pedra, mas não encontrou nenhuma por ali. Foi isso que salvou Roy. De contrário teria apanhado com uma boa pedrada. 

*

Anoitecia quando Roy voltou. O carro encontrava-se no mesmo sítio. Uma pequena fogueira iluminava melhor os contornos das coisas, na luz um pouco irreal do crepúsculo. 

Ingrid encontrava-se ali. Parecia sozinha. Preparava uma cafeteira de café. 

Roy encostou as costas ao carro e acendeu um cigarro, sem dizer uma palavra. Parecia sentir-se ali tão à vontade, como se Ingrid não fosse uma rapariga, mas efetivamente um rapazote. 

Ela, por sua parte, tentava manter-se indiferente, se bem que lhe doesse o pescoço por ter de fazer tantos esforços para não se voltar para ele. 

Foi Roy quem quebrou o silêncio e disse urna coisa bem inesperada. 

— Perdoa-me. 

Ingrid voltou-se de repente. 

— O que queres que te perdoe! 

— O que te disse esta manhã. Quanto mais penso nisso mais estúpido me parece. 

— A que te referes? 

— A querer que tu me chamasses «Senhor Roy». 

— Ah... isso... já está esquecido. 

Mas a voz levemente crispada da rapariga indicava que não. Que aquilo, nunca seria esquecido. 

— Parece mentira a influência que tem sobre nós a nossa primeira profissão... — murmurou Roy, quase sem dar por isso. — Quando era professor, tinha um interesse especial em que me chamassem «senhor». Isso fazia parte da educação dos meus alunos. Dizia para comigo: — Que vai ser deles se no próprio colégio não se habituam a falar com delicadeza? — E foi essa recordação que fez com que te dissesse aquele disparate. 

Ingrid apertou os lábios. 

— Claro, porque me consideras como um rapazelho. 

— Não, as circunstâncias mudaram. E eu já não sou professor, mas sim um sujo pistoleiro. E tu és uma menina. 

Ingrid, que estava ajoelhada junto da fogueira, levantou-se lentamente, olhando-o com uma espécie de êxtase, como se tivesse acabado de fazer uma descoberta maravilhosa. 

— Oh, já reparaste que eu sou quase uma mulher. Já não era sem tempo! 

Mas Roy não reparou na expressão que havia nos olhos da rapariga. Não a olhava. 

— No entanto — disse severamente, como se voltasse aos seus antigos tempos — não basta sê-lo. É preciso também parecê-lo e tu não pareces. 

Ingrid respondeu: 

— Ah... E toda ela pareceu encolher-se, como um balão despejado. 

— Tens de te vestir como as outras raparigas — decidiu Roy. 

— Não me apetece fazê-lo. As raparigas são todas umas patetas e umas imbecis! 

— Pode-se ser uma mulher formidável e usar saias, que diabo! 

— Pois eu hei-de continuar a vestir-me como até aqui! Além disso, se me vestisse de outra maneira, não poderia trabalhar como ferrador. 

— E já entraram, em acordo com a dona da mina? 

— Sim e convém-nos, se bem que ela quisesse convencer-me a não trabalhar. 

— É que não vais mesmo trabalhar, Ingrid. 

— Queeeeeeeeeê?... 

— Vi-te de longe a fazeres a prova, ferrando um cavalo. Em Elko era diferente, porque estavas sozinha com Tom, mas aqui existem pelo menos mais meia dúzia de ferradores e nenhum deles fez nada enquanto tu trabalhaste. Estavas inclinada, de costas voltadas, não estavas? Pois asseguro-te que eles conhecem tão bem a forma das tuas pernas e costas que poderiam desenhá-las. De cada vez que te inclinavas as calças cingiam-se às pernas e os homens estavam capazes de comerem as ferraduras que tinham nas mãos. Não, Ingrid, não se pode trabalhar dessa maneira. 

Uma luzinha de esperança apareceu nos olhos da rapariga. 

— Não gostas que os outros me olhem? 

— Não é isso. 

— Ah.. Não é isso. 

— Não quero que te suceda nada. Nem que te aborreçam. Não vais estar todo o dia metida entre homens! 

— Mas não sei fazer outra coisa! Não me ensinaram nenhum outro ofício! 

Roy atirou o cigarro para a fogueira. 

— Já pensei no caso. Não é em vão que fui professor, sabes? Parece-me que desde então se passou um século, mas, no entanto, só decorreram dois anos. A uma rapariga como tu posso ensinar rapidamente a multiplicar e a dividir, que é o que te faz falta. E então poderás empregar-te nos escritórios da mina, porque sei que precisam de uma pessoa para a contabilidade. Não é nenhum cargo brilhante, mas é muito mais feminino. E ali poderás espetar tranquilamente até que encontres o homem que te queira. 

— COM que então um homem que me queira, hem? 

— Disse alguma coisa de mal? 

— Não. Tu nunca dizes nada de mal, Roy. Isso é que aborrece! 

— Na verdade não te compreenda! 

— Sabes o que te digo? Que fizeste bem em mudar de profissão. Corno professor não devias valer nada. Nunca percebes coisa nenhuma. Os alunos deviam fartar-se de rir à tua custa. 

— Cada vez te percebo menos, Ingrid. 

— Então... 

De repente Roy agarrou-a por um braço. Fê-lo sem dar por isso, sem pensar. Qualquer outro teria reparado na expressão de prazer de Ingrid, ao ver-se assim, meio abraçada, mas Roy não reparou nisso. 

— Vais fazer o que eu te digo, ouves? 

— E o que é que me dizes? 

— Vais viver para um hotel. 

— Contigo? 

Roy olhou-a. 

— Que estás para aí a dizer, rapariga? Eu não posso estar no mesmo hotel que tu porque corro perigo. Não ganho a vida a cravar ferraduras, mas a cravar balas. Vê se percebes de uma vez o que te estou a dizer! Mas quero que te transformes numa rapariga como as outras. Que aprendas coisas. E que não tragas sempre a cara suja de carvão, que diabo! 

— Isso tudo se fará só se Tom quiser. Ele é que manda em mim — protestou a rapariga. 

— Tom já está no hotel que escolhi para vocês viverem. Fi-lo mudar de roupa e tomar um banho. 

— Ele... ele tomou um banho? 

— Ao princípio foram precisos quatro homens para o agarrarem. O caso foi complicado, acredita. Começou por gritar por socorro. Mas depois tomou gosto na coisa e agora não se cansava de pedir mais água quente. Creio que' esgotaram as reservas do hotel. E diz-se por aí que a cidade está seca. 

Ingrid soltou uma gargalhada. 

— Teria gostado de o ver! Eu gostaria era de ver-te a ti — disse sombriamente Roy. — Porque a ti seriam necessários oito para te prenderem... Andando! 


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