quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

RB074.03 Adeus à menina que trabalhava como ferreiro

— Senhor Roy, disseram-me que se vai embora.

— Sim, Ingrid. Por isso aqui estou.

Os olhos da rapariga iluminaram-se por um momento.

— Veio despedir-se?

— Não. Quero que o teu pai prenda uma das ferraduras do meu cavalo.

Ingrid baixou a cabeça durante um momento.

— Ah... pensava...

— Porque é que se vem à oficina de um ferrador, pequena?

— Sim. Está bem. Para pôr uma ferradura. Mas não me chame pequena.

— Quantos anos tens?

— Dezassete. E você?

— Vinte e três. Já sou velho...

Ingrid dirigiu-se tristemente para a forja.

— O meu pai não está, mas não se preocupe, porque eu posso fazer esse trabalho.

— É muito pesado para uma rapariga.

— Uma rapariga?

Roy riu duvidosamente.

— Se calhar chegaste a pensar que eras um homem.

— Faço o mesmo trabalho que um homem.

— De acordo, mas isso não pode continuar sempre assim. Tens de te dedicar a outra coisa.

— É a única coisa que sei fazer.

— Desde quando estás na oficina?

— Desde os cinco anos. Como o Tom não tinha quem cuidasse de mim trazia-me para a oficina para não me deixar só em casa. E pouco a pouco, sem que nenhum de nós desse por isso, comecei a ajudá-lo.

— Mas vives como um rapaz. Isso não pode ser.

— Eu gosto.

Ingrid parecia um pouco aturdida naquela manhã. Pegou mal nas tenazes e deixou queimar os dedos.

— Pelas barbas de Maomé...

Roy olhou-a com severidade, com urna severidade inconsciente de que nem ele próprio se deu conta.

— Porque praguejas assim, Ingrid?

— Porque o meu pai o faz e estou habituada.

— Mas isso não está certo. Noutras circunstâncias ter-te-ia castigado.

— A mim?

— Sim, a ti.

Ingrid olhava-o com divertida incredulidade.

— Costumava castigar as pessoas? A que se dedicava?

— Se te disser, vais-te rir.

— Não me rirei. Diz

— Era professor.

Apesar do que tinha prometido, Ingrid deitou a cabeça para trás e soltou urna sonora gargalhada.

— Professor… o senhor professor...

— Porque é que achas tanta graça?

— Porque não tem aparência disso.

— Bom... talvez não.

— Porque é que mudou de ofício? 

— Talvez por muitas coisas. Um professor ganha pouco... tem de estar sempre no mesmo sítio e não corre aventuras.

— O senhor é daqueles que não quer criar raízes em parte nenhuma, não é?

— Com efeito... Creio que o que mais me agrada é mudar repetidamente de ambiente não me submeter a nenhum género de rotina.

Ingrid fitou-o fixamente.

— Devia ser um grande professor — disse.

— Porque é que dizes isso?

— Porque acho que não devia ter paciência.

— Enganas-te. Tinha muita... E por isso, um, dia de repente acabou-se-me a paciência. Gastei-a.

— Tenho a certeza de que não será capaz de ensinar-me nada — disse Ingrid. — Nem a ferrar

um cavalo.

— Isso fazes tu melhor do que eu, não tenho dúvidas. Mas saber ler e escrever?

— Sim. Tom ensinou-me.

— E somar?

— Somar sim, diminuir é que já não sei.

— Se tivesse tempo ensinava-te.

— Porque não o faz?

— Porque tenho de me ir embora, bem sabes. Tenho trabalho em Tonopah.

— E se eu fosse para lá? Se convencesse o velho Tom a mudar de terra?

— Seria um disparate. Ele tem o seu trabalho aqui. Além disso não estarei muito tempo em Tonopah. Percebes? Logo que me façam outra oferta, vou para outro sítio!

 A rapariga apertou os lábios. Uma expressão de rebeldia, de dor oculta, apareceu subitamente no seu rosto como um desespero súbito. Corno se de repente compreendesse que não servia para outra coisa.

Roy disse carinhosamente:

— Estamos ambos a dizer disparates.

— Porquê?

— Porque tu já és uma mulherzinha e não podes ir à escola.

— Não me chame mulherzinha!

— Desculpa. Não pensei que não gostasses.

— Traga aqui o seu cavalo.

Roy ergueu a pata do cavalo, cuja ferradura tinha já um desgaste excessivo.

— É esta. Ouve, não gostas que te tratem como urna rapariga? Porquê?

— Porque as raparigas são todas umas tontas.

— Tens a certeza?

— Foi o que Tom me ensinou e é o que eu vejo.

— Nunca tiveste um vestido largo?

— Não. Nem vontade de o ter.

— E nunca foste a uma festa?

— Nem fui nem irei!

— Bom, bom, não te ponhas. assim. Eu vou ajudar-te.

Os dois mudaram rapidamente a ferradura ao cavalo. Enquanto aquela operação mudou, ambos evitaram olhar-se.

Ingrid, sobretudo, estava nervosa. Por duas vezes esteve quase a martelar um dedo.

No fim, com as costas da mão limpou a testa coberta de suor e a única coisa que conseguiu foi pôr uma cómica mancha de carvão na cara.

— Então vai-se embora, hem?

— Agora mesmo.

— Era melhor que o tivessem ferido.

— Porque dizes isso?

— Por nada. Desculpe...—Ingrid fechou os olhos pelos quais havia passado uma fugidia sombra de

vergonha. — Tive pena de não ver o tiroteio. Só o ouvi.

— Pois não foi longe.

— Sim, mas você estava coberto pelas rochas. Ouvi bastantes tiros de espingarda.

— Eles tinham espingardas disse— Roy cautelosamente não fosse ela pensar que mais alguém

tinha entrado na contenda. Porque do segredo da existência ele Bart dependia a sua própria vida. — Quanto te devo? — perguntou a seguir.

— Nada. Ofereço-te o trabalho.

— Ultimamente toda a gente me dá prendas. Obrigado.

— Não me agradeças. Não vale a pena se bem que nenhuma dessas meninas finas, daquelas que o senhor tanto admira saiba ferrar um cavalo.

— Enganas-te. Eu não as admiro e a prova é que não me casei com ninguém. Nem sequer tenho noiva.

— Mas há de ter — respondeu Ingrid com uma espécie de rancor em que Roy nem reparou.

— É possível. Tudo chega neste mundo, parece — murmurou Roy encolhendo os ombros. — E agora adeus. Espero que algum dia voltemos a ver-nos, Ingrid.

— Já sei que esse dia não chegará nunca.

— Parece que dizes isso com raiva. Ao fim e ao cabo o que é que isso te interessa?

— Sim? — repetiu a rapariga, como um eco. —  Que me interessa isso?

Roy montou a cavalo.

Fez um aceno com a mão e saiu da oficina.

— Destino: Tonopah — disse. — Temos uma grande viagem na nossa frente.

Quando Roy se afastou, Ingrid apertou os lábios. Com gosto teria chorado ou soltado um suspiro

de desespero, de raiva, de solidão. Mas ninguém lhe ensinara a ter uma reação assim, uma reação de mulher. Pelo contrário, o velho Tom sempre lhe tinha dito que ela valia muito mais que os homens.

E a sua reação foi a de um rapaz: pôs-se a golpear furiosamente a ferradura que agora tinha sobre a forja, fazendo-a soltar chispas vermelhas.

 


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