Flanagan encontrava-se no vestíbulo.
— Admirável! — disse. — Que desafio! Diabo, nunca vi coisa igual!
Roy olhou-o de lado.
— Ainda bem que gostou do espetáculo. Para a outra vez terá de pagar entrada.
— Não se ponha assim, homem. Parece que não está alegre.
— Não, não estou.
— Convido-o a beber um capo. Tenho uma garrafa de uísque que acabam de me trazer diretamente da Escócia. Sabe o que isso significa? Deu quase a volta ao mundo. Não estranha que as garrafas deem voltas ao mundo.
— Nós damos voltas em redor das mulheres — disse Roy. — Está bem, aceito esse copo.
Enquanto subiam as luxuosas escadas de mármore, Flanagan comentou:
— Sabe? Estou encantado por ter contratado os seus serviços, amigo. Por este andar já sei o que vai suceder aos da «Amalgamated».
— Então já sabe mais da que eu.
Flanagan não fez caso do seu tom brusco.
— Verão que encontraram um osso demasiadamente duro de roer — e como além de assassinos são comerciantes perceberão que o negócio não lhes convém. Deixar-nos-ão em paz e passarão a aborrecer outros mineiros. Ou quem sabe se resolverão até ir mudar de ares.
Roy não respondeu. Estava a pensar que tinha feito mal em aceitar o convite de Flanagan porque em cima estaria Hada.
Com efeito não se enganou. Além disso Hada estava mais bonita, mais jovem, mais desejável do que nunca. Hada percebeu que Roy sofria. E enquanto beijava Flanagan olhava-o com uns olhos onde brilhava uma expressão de zombaria.
Por fim Flanagan afastou-a.
— Bom, o amigo Roy é de confiança. Serve-lhe um copo de uísque.
Hada afastou-se, pegou numa garrafa de uísque recentemente aberta, num copo e encheu-o antes de o entregar a Roy.
— Agora que já tens o teu amigo servido dedica-te um pouco a mim.
— Mas...
— Por favor...
Naquele momento ouviu-se um estalido. Roy tinha apertado tanto o copo de vidro que este acabara por se partir. Nem sequer tinha dado por isso. Os cristais enterram-se-lhe nos dedos e o sangue brotou. Mas ele parecia nem dar por isso. O seu rosto parecia talhado de pedra. Os seus olhos, como dois pedaços de metal, encontravam-se fixos nos lábios gulosos de Hada.
— Mas o que se passa? — perguntou Flanagan. — Não compreendo...
— Desculpe — murmurou Roy. — Foi um acidente.
E acrescentou, enquanto se dirigia para a porta:
— Os copos hoje em dia, não valem nada.
Saiu.
*
Hada examinou os planos.
— Está bem — disse pensativamente. — O engenheiro abriu a galeria nesta direção porque disse que o terreno era muito mais seguro. Primeiro não compreendi, mas agora, com o plano diante de mim, vejo muito bem porquê.
O homem que se encontrava com ela assentiu. Era um homem dos seus cinquenta e cinco anos, que desde o início administrava a mina de Hada.
— De qualquer maneira isto vai custar mais dinheiro — disse — por isso queria conhecer a sua opinião e desejava que visse os planos.
— Tudo isso me parece correto — disse Hada. — Quanto aos dois mil dólares necessários para isso tê-los-á amanhã mesmo.
— De acordo. E agora, se me permite...
— Vai-se já. embora?
— Tenho que pagar a três mineiros que a semana passada se encontravam ausentes, comprando material. Estão à minha espera.
— Muito bem. Vá.
— Não vem comigo?
— Não. — Hada olhou à sua volta, observando o lugar em que se encontrava. — Gosto de ver isto. Há tempos que não vinha aqui.
— Neste sítio começaram os sonhos do senhor Flanagan — disse o administrador.
— Na realidade foram os sonhos dos dois... Aqui ficava o primeiro terreno que comprámos, julgando que havia prata. Construímos este pequeno edifício para instalar o que haviam de ser importantes oficinas... e tudo fracassou. Nem prata, nem nada..., mas da segunda vez tivemos sorte.
O administrador sorriu.
— Não sei porque recorda isso com tanto carinho. Na verdade, já deveria ter-me ido embora.
Hada aproximou-se da única janela existente no rústico edifício e olhou nostalgicamente para fora, onde só se viam uns troncos caídos e terra. Os troncos tinham sido comprados para apoiarem as galerias abertas, que mais tarde se verificou serem inúteis.
— Isto está muito perto da cidade — disse o administrador. — Muito mais do que as minas que exploramos agora. Por isso gosto que trabalhe aqui. No entanto qualquer dia mudaremos tudo para lá.
— Como queira, senhora. Não vem?
— Não. Ficarei ainda um bocado. Gosto de recordar.
— Como queira. Quando se for não esqueça de apagar a lanterna.
— Não esquecerei. Ah, oiça... Cada vez temos mais cavalos para transportar material. Precisamos de um ferrador.
— Todos os de Tonopah estão já contratados... não julgue que não pensei já nisso... Enfim, procurarei um.
— Faça-o depressa.
O administrador saiu. Hada viu-o montar no seu cansado, mas seguro cavalo e empreender o regresso à cidade, que se encontrava apenas a sete quilómetros de distância.
Hada fechou momentaneamente os olhos. Parecia-lhe que tinha decorrido uma enormidade de tempo desde que aquilo começara. E tinham sido apenas dois anos! Parecia-lhe que a sua vida já estava tranquila, segura, quando de repente Roy voltava.
Voltou a abrir os olhos.
Ouviu um leve estalido junto dela, como se alguém andasse ali perto. Voltou-se.
— Roy...
Roy encontrava-se à entrada da porta, apoiado a um dos batentes. Os seus olhos pareciam, como das outras vezes, dois pedaços de metal gelado. Hada apertou os lábios.
— Que fazes aqui?
— Sabia que as tuas oficinas eram aqui e pensei que talvez viesses.
Ela disse:
— Sim, aqui tenho as minhas oficinas. Foi aqui que eu e Flanagan começámos tudo. Conservo-as por carinho.
A atitude dela era firme, desafiadora.
— Boas recordações, não? — murmurou sombriamente.
— Pelo contrário: Más recordações. Foram tempos duros e difíceis.
Roy avançou dois passos. Lentamente fechou a porta atrás de si. O ruído da porta de madeira ao fechar-se deu--lhes a sensação de uma enervante solidão. Hada desafiou-o com um olhar.
— Estou apaixonada pelo meu marido e isso não é nenhum pecado. Gosto que me beije.
Roy sentiu no seu interior uma coisa muito amarga, muito estranha e muita violenta.
Bruscamente, como se se visse velhas fotografias passarem diante dos seus olhos, viu Hada dizendo-lhe o mesmo a ele: — Beija-me... Preciso de ti. Pões-me louca. — Julgou sentir de novo o hálito ardente dos seus beijos. Viu-se a si próprio junto dela, prometendo ambos que nunca se separariam.
Ele cumprira a sua promessa. Hada não.
A mão direita moveu-se violentamente, quase sem que ele desse por isso. A pancada surpreendeu-o. Viu Hada levar a mão à cara magoada, soltar um gemido, indo quase cair por terra. Só então percebeu o que fizera.
Mas não se arrependeu.
Uma espécie de frenesim parecia ter-se apoderado dele.
Prendeu a formosa mulher pelos ombros, agitando-a violentamente.
— Não és mais do que uma cadela maldita! — disse. — Tudo o que disseste, tudo o que me juraste não passava de uma mentira miserável.
Hada não pedia defender-se. Não podia dominar aquele ciclone em que se transformara o homem que um dia tinha amado. Com os olhos cheios de lágrimas, ergueu o rosto, sem medo, mas com um profundo desgosto e murmurou:
— Sei o que vai fazer, Roy. Sei que não poderei defender-me da força dos teus braços, mas tenho mais pena por ti do que por mim... custa-me que tenhas descido a isto, porque te amei de verdade. Disse-te que estou apaixonada por Flanagan — pois não é verdade. — Os olhos de Hada entrecerraram-se e durante um instante adquiriram um brilho fulgurante. — O único homem por quem senti paixão foi por ti. O único homem que me fez sonhar... foste tu. O único que me fez sentir. o que jamais senti... foste tu! A voz de Hada transformou-se num grito doloroso. — Mas toda a mulher quando ama, quer ser correspondida. Não existe nada mais triste do que um amor vazio, o amor dedicado a um fantasma. E tu ias ser isso, Roy. Um fantasma... Que me oferecias em troca do meu amor? Uma aventura constante? Um sobressalto cada dia? Um perigo de morte que se repetiria a toda a hora? Porque tu te estavas a transformar num profissional do gatilho, Roy, se bem que defendesses a lei. E eu não queria estar casada com um homem que tivesse urna etiqueta, dizendo: «Vivo hoje, morto amanhã». Não queria ter um filho a quem tivesse de ensinar o caminho que conduzia à tumba do pai. Por isso te arranquei da minha memória, te arranquei dos meus sentidos. Foi como se arrancasse pedaços da minha própria carne, mas por fim consegui. Fugi para bem longe, para onde não pudesse ver-te e então apareceu Flanagan. Um homem sensato, honrado, bom. E além disso valente... Foi ele que me ajudou a esquecer-te definitivamente, se bem que às vezes tivesse de esforçar-me para pensar, enquanto o beijava, por exemplo: É este o homem a quem amo.
As mãos de Roy que apertavam selvaticamente os braços de Hada foram-na largando pouco a pouco. Uma expressão amarga apareceu nos seus lábios. Durante alguns instantes esteve quieto e com a cabeça caída; era impossível adivinhar qual seria a sua decisão.
Uma expressão triste e vagabunda pairava nos seus olhos. Parecia lutar entre a recordação do que havia perdido por sua culpa e o desejo de possuir aquela mulher maravilhosamente bonita, rodeada de solidão.
Aquela mulher fora a única a quem realmente desejara e que por sua vez lhe jurara não pertencer nunca a nenhum outro homem. Aquela situação tensa, quase insuportável, durou alguns minutos. Foi então que a porta se abriu. O vulto de um homem recortou-se no umbral.
Era Flanagan.
Os seus olhos calmos, ao princípio inexpressivos, contemplavam a cena.
Não fechou a porta.
Parecia ter compreendido tudo ao ver a expressão dos dois.
Roy ergueu a cabeça e cravou os olhos no recém-chegado com ar de desafio.
— Precisa de alguma explicação? — perguntou.
— Não, não preciso de nenhuma... — disse lentamente Flanagan. — Na realidade pareceu-me notar qualquer coisa estranha na atitude dos dois. Por isso aqui vim. Pode saber-se a que se deve esta paixão tão repentina, Roy? Já conhecia a minha mulher?
— Foi minha noiva.
— Quando? Há dois anos.
Flanagan olhou Hada, mas ela não disse uma só palavra. Começou simplesmente a chorar.
— Saiamos — disse Flanagan.
Roy sabia o que aquilo significava. Fez um gesto de desafio enquanto Hada caía de joelhos no chão, a soluçar.
Na penumbra cor de violeta do anoitecer, os dois homens olharam-se cara a cara.
— Suponho que um de nós dois está a mais —disse Flanagan.
— Tem razão amigo. Um de nós tem de deixar o caminho livre ao outro.
E acrescentou, com voz rouca:
— Mas se alguém aqui pode considerar-se ofendido, esse alguém é você, Flanagan. Por isso tem o direito de escolher a forma porque quer que combatamos.
Flanagan baixou a cabeça por uns momentos. Sabia que era um soberbo atirador, mas não podia esquecer a maneira como Roy tinha eliminado, sem mudar de posição, os dois pistoleiros da «Amalgamated».
— Com os punhos — murmurou. — Um combate até que um de nós caia para sempre.
— Quer ter vantagem, hem? És tão forte como eu.
— Não se trata de falar, mas sim de actuar... Prepara-te — A última palavra foi acompanhada de um movimento fulminante com a direita.
Roy recebeu a pancada antes de poder sequer preparar-se. Tentou cobrir-se para evitar novo golpe — que supôs viria do mesmo sítio — mas Flanagan desviou à última hora a direção; do seu punho esquerdo.
O soco atingiu o estômago de Roy que, desprevenido, teve que encolher-se. Então Flanagan dobrou com a direita. O seu punho atingiu o queixo de Roy que caiu para trás, fulminado, erguendo uma nuvem de pó, com a queda.
Flanagan não o deixou respirar.
Ia dar-lhe com a bota na cara, mas de repente Roy prendeu-a com ambas as mãos, deu uma volta ao pé e fez com que Flanagan fosse atirado para o lado, soltando um grito.
Os dois homens puseram-se de pé ao mesmo tempo. Sem pensar, sem vacilar, lançaram-se ao ataque.
Mas agora Roy estava prevenido e começou a saber responder à técnica do inimigo. Flanagan era um tipo a quem não convinha lutar nem a pequena, nem a média distância. Só ao longe.
Entrava em guarda, desferir o golpe e voltar a pôr-se em guarda era a sua técnica. Roy começou a responder a adotar essa técnica valendo-se da agilidade das suas pernas.
De repente encontrou-se sobre Flanagan, socando-o sem piedade, numa curta e rápida série de socos. Quando Flanagan quis responder, já Roy se encontrava fora do seu alcance.
— Chega aqui. Aproxima-te mais, cobarde.
— Pois, rapaz...
Atacou de novo, atacando agora o lado direito de Flanagan. Dois curtos golpes seguidos, sobre o fígado, deixaram-no ofegante. Depois um forte soco na boca, que fez com que o sangue lhe aparecesse nos lábios.
Flanagan atacou por sua vez, mas em vão, porque Roy já se encontrava fora do alcance dos seus punhos. Os bons boxeurs dizem que os combates não se ganham com os punhos, mas sim com as pernas. Dominar a distância, entrar e sair no momento oportuno...
Roy dominava perfeitamente essa técnica, enquanto Flanagan só tinha potência.
Dois golpes seguidos nos olhos, deixaram Flanagan quase cego e com a estranha sensação de que os seus pés já não tocavam no solo.
«Da próxima vez agarrá-lo-ei...» pensou. — Com certeza que quando o agarrar já não o largo...»
Mas Roy parecia adivinhar os seus pensamentos. A sua entrada e saída foram muita mais rápidas da que das outras vezes. Deixando o nariz de Flanagan convertido numa fonte de sangue, Roy ficou imediatamente fora do alcance dos punhos daquele.
Flanagan compreendeu que ia ser derrotado. Por um terrível momento passou-lhe pela cabeça a ideia de que ia perder e que Hada pertenceria àquele homem.
Atacou.
Sabia que se conseguisse apanhá-lo duas vezes o deixaria quase morto. Tratou desesperadamente de fazer com que os seus punhos atingissem o rosto de Roy, mas este prosseguiu com a sua tática elástica. Se Flanagan avançava um passo, ele retrocedia outro. De vez em quando atacava como um ciclone, dava dois socos rápidos e recuava.
O rosto de Flanagan era urna máscara sangrenta. Cada um dos golpes tinha atingido um ponto vital. Flanagan não se atrevia a saltar, porque tinha a sensação de que os seus pés já não tocariam o solo. E a sua lentidão tornava-se cada vez maior.
Roy continuava a atacá-lo implacavelmente.
Flanagan já não via...
No entanto atacou outra vez.
Poder-se-ia dizer qualquer outra coisa a seu respeito, mas não se podia negar que era valente.
Dessa vez apanhou Roy com uma pancada que lhe fez estremecer todos os ossos. O silêncio foi quebrado pelo som brutal do impacto. Flanagan julgava ter já a vitória assegurada, quando vacilou e se sentiu quase a cair. Imediatamente se sentiu penetrado por um sentimento de raiva.
Manteve-se a pé firme. Aguentou os golpes que Roy desferia sobre si. Os dois homens, separados apenas pela distância entre dois braços, golpearam-se sem se cobrirem, com determinação, procurando atingir todos os pontos vitais um ao outro, querendo terminar rapidamente o combate.
Agora eram os rostos dos dois que se encontravam cobertos de sangue.
Foi um duelo terrível, titânico, que pareceu durar uma eternidade. Mas a vitória tinha que pertence ao que estava em melhor condições e esse era Roy. Aguentando os socos que Flanagan desferia sobre si, empreendeu novo ataque, furiosamente.
Flanagan sentiu as pernas vacilarem.
— Vou morrer — pensou. — Vou morrer...
Era urna coisa estranha, como se estivesse a pensar aquilo de outra pessoa. Um último e terrível soco no queixo fê-la saltar literalmente do solo e atirou-o para trás. Flanagan caiu sobre a terra, com a cara voltada para o céu, como um condenado. Roy cambaleou também, devido à violência dos últimos SOCOS recebidos, mas as suas fortes pernas conseguiram aguentar-se.
O seu inimigo tratou de se levantar outra vez, fazendo um esforço sobre-humano, mas caiu novamente para trás. Da garganta saiu-lhe um gemido. de desespero.
Roy acariciou o revólver.
Os seus olhos encontraram-se com os de Flanagan.
E viu que nos olhos dele não havia medo, mas sim uma expressão de desafio. Eram os olhos de um homem que queria morrer cara a cara.
— Acaba comigo — sussurrou. — Que esperas?
Roy sacou do revólver. As suas feições eram como uma máscara. Sentia o olhar do homem caído pousado nele, ainda com um ar de desafio. De súbito Roy soltou uma maldição e meteu novamente o revólver no coldre.
— Não posso matar um homem que me olha assim — murmurou. — Não posso!
Voltou as costas brusca e raivosamente.
— Que tenhas sorte, Flanagan! — disse com voz rouca. — Que tenhas sorte! Amanhã vou-me embora!
E afastou-se a grandes passadas, deixando as suas pegadas impressas na terra.
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