Antes do julgamento, tinha chamado o xerife interino ao seu gabinete.
— Quem o nomeou para este cargo, Keller?
O aludido era um tipo alto, de aspeto duro e olhar frio como a lâmina de um punhal. Uma cicatriz sulcava o seu queixo do lado esquerdo e a «estrela» de cinco pontas brilhava na sua jaqueta de pele de antílope.
— O alcaide, naturalmente. É a única pessoa autorizada para isso.
— Prestou juramento?
— Claro.
— Conhece as suas obrigações?
— E os meus direitos, sim.
Havia uma implícita entoação na sua resposta. Ken não deixou de captar aquele detalhe e fixou o seu olhar nas pupilas do novo xerife.
— Antes de começar os seus deveres, quero que me oiça por um instante, Keller.
— Escutá-lo-ei com prazer, mas... não temos muito tempo. O julgamento é dentro de cinco minutos e devo levar a acusada para a sala.
— Há tempo de sobra — abriu a gaveta e tirou um dos revólveres que tinha pertencido a Went.
Mecanicamente abriu-o, verificou que o tambor estava cheio de balas e guardou-o na funda sovaqueira sem preocupar-se com o olhar de Keller.
— O seu antecessor do cargo, Kay Went, preferiu passar-se para o lado contrário da lei... e a verdade é que não foi muito afortunado. Outros, cúmplices dele sem dúvida, e de outra pessoa cujo nome sei e talvez você também, tentaram assassinar-me. Uns e outros não se saíram muito bem... Quer isto dizer, Keller, que o meu olhar é muito comprido e os meus movimentos muito rápidos; que desconfio de toda a gente; que estou disposto a implantar a lei em Tombstone; e que todo aquele que se oponha a isso encontrará uma corda, ou um bocado de chumbo...
— É uma alusão pessoal, Juiz? — perguntou o outro, secamente.
— É... um inocente comentário, em vistas das circunstâncias. Ah, já me esquecia; quem não está comigo, está contra mim. É uma última recomendação; quando um acusado vai a um julgamento presidido por mim, se tem de morrer, que o façam com uma corda ao pescoço, e não de outra forma.
— Terminou?
— Isto é tudo.
O julgamento decorreu sem grandes complicações. O momento, no final, era de nervosismo. A assistência aguardava as palavras de Ken Adams, enquanto Eva Fraser se mantinha de pé, esplêndida dentro do seu maltratando vestido, aguardando o veredicto. Ken estalou os dedos.
— Sou homem de poucas palavras. A defesa demonstrou que Eva Fraser não pôde matar Joe Patton porque o disparo foi feito de maior distância que a que permitiam as exíguas dimensões do quarto onde sucedeu o crime; também ficou claramente demonstrado que alguém corria pelo corredor dos reservados quando se ouviu o tiro; que o revólver que encontrou nas mãos de Eva não lhe pertencia nem era da vítima; que ambos iam casar, pelo que não havia motivo para a morte de Patton, e um sem fim de pequenos detalhes circunstanciais que vocês ouviram. O veredicto do júri foi «Inocente», e eu declaro livre a acusada Eva Fraser, restituindo-lhe todos os seus direitos de cidadã. Está encerrada a sessão.
O busto feminino estava alterado pela respiração agitada, produzida pela emoção do momento. Quando Ken bateu na mesa com o martelo de madeira, elevou-se na sala um murmúrio de vozes. Mas Adams não se retirou logo. O seu olhar estava cravado em Keller, e este estremeceu debaixo do impacto abrasador. Com secos movimentos libertou os punhos de Eva, bruscamente voltou-se, dirigindo-se para a saída. O alcaide também foi dos primeiros a sair, e o resto dos espectadores encaminhou-se para a rua fazendo comentários.
Os olhos de Ken e Eva encontraram-se durante uns segundos, até que o jovem desviou o olhar, entrando no seu gabinete, onde despiu a toga. Urna vez ali, serviu-se de um copo de «whisky», e então bateram à porta.
— Entre.
Era Eva, ainda malvestida com aquele vestido que mostrava as marcas da sua tragédia. O dourado sol da manhã iluminava a sua silhueta projetando-a no interior do gabinete. Os seus cabelos loiros caiam-lhe pelos redondos ombros, e os lábios tremiam-lhe levemente.
— Porque fez isto? — perguntou ela por fim.
Ken pôs o copo em cima da mesa.
— Não posso estar toda a vida a repeti-lo. Que é que quer de mim? Vamos, diga. Estou acostumada a ouvi-lo... e livrou-me da forca por isso.
Ken ergueu toda a sua estatura e o seu olhar era tão duro como o aço.
— Vai-te embora, Eva. Não quero saber nada de ti. Produz-me nojo a tua maneira de falar.
Ela semicerrou os olhos.
— Não o entendo, Juiz.
— Vai-te ou ponho-te lá fora.
Sacudindo uma melena dourada, Eva saiu sem se incomodar a fechar a porta, e Ken continuou a olhá-la até que a perdeu de vista ao voltar a esquina. Só então o jovem pegou o copo e ingeriu de um trago o seu conteúdo. Sentia nojo por Tombstone e tudo que encerrava os seus limites. Mas não podia deixá-la até que tivesse cumprido a sua missão.
Ken almoçava no «Saloon Fronteiriço». O seu rosto estava sulcado de rugas de preocupação. A notícia do singular julgamento tinha corrido por Tombstone, e as pessoas, ao vê-lo, comentavam a sua audácia. Mabel, olhava-o preocupada.
— É possível que tenha apetite?
Levantou-se.
— Não se senta, Mabel?
Ajudou-a a sentar-se, e Ken respondeu à primeira pergunta.
— Falta-me muito pouco, essa é a verdade.
— As pessoas comentam a sua valentia, Ken. Há numerosas apostas feitas.
O jovem levantou as sobrancelhas.
— Sobre a minha pessoa?
— Concretamente, sobre os dias que lhe restam de vida... As apostas não são muito benéficas para você: os mais otimistas dão-lhe três dias de vida, mas a maioria aposta em que não verá o entardecer de hoje.
— Não é muito animadora a sua conversa, Mabel.
— Lamento-o, mas com isto quero pedir-lhe que tenha cuidado.
Ken olhou em volta. No balcão, três clientes olhavam-no furtivamente, sem dúvida deleitando-se a contemplar um homem «marcado». Era grande o sentido mórbido daquela gente.
— Quem me vai matar?
— Ainda o pergunta?
— Não tenho mais que suspeitas. Julga que um Juiz pode actuar sem provas?
— Nesta terra não são precisas provas, Ken. Quando um homem tem uma conta pendente, praza-a com as armas na mão.
— Não é o meu sistema.
— Não; mas teve de o empregar e empregá-lo-á mais vezes ainda, senão quer ter um lugar de honra no nosso cemitério.
Ken colocou a colher de lado.
— Conseguiu estragar-me o almoço.
Ela estava formosa e tinha uma expressão estranha nos olhos. Dir-se-ia que sentia por ele uma inclinação, mas que a sua consciência a obrigava a conter-se.
— Lamento-o, mas eles vão matá-lo. Melvin Patton?
— Ele, não; é muito esperto para comprometer-se. Mas sim os seus pistoleiros. Tem muitos e um ou outro acabará consigo, se não se mostra inteligente.
— E que devo fazer para ser considerado inteligente?
— Ir-se embora. Dentro de uma hora sai uma diligência de Tombstone com destino à capital. A missão para o qual veio, acaba de ser cumprida; nada tem de fazer aqui.
— Teoricamente, sim, mas você sabe que isso não é verdade. Há um xerife foragido ao qual é preciso deitar a mão e fazê-lo castigar pelo seu crime; e existe um tráfego ilegal de gado roubado de um lado e doutro da fronteira.
— Não é sua a missão de perseguir delinquentes, mas sim julgá-los. Deve regressar à. capital e aguardar que o chamem de novo para fazer justiça.
— Isso não o farão nunca. Precisamente aproveitam a minha partida para ficarem tranquilos e atuarem com toda a liberdade.
— Não pense nisso e não ligue ao caso. Ainda tem de preparar a bagagem e tomar lugar na diligência.
Ken acariciou o queixo.
— Porquê tanto interesse?
Ela cruzou os dedos e baixou a vista.
— Não é preciso responder a isso, Ken. Por favor, vá-se embora de Tombstone antes que seja demasiado tarde.
— Não creio que o faça — disse levantando-se. — Há uma coisa que se chama sentido do dever, e que me retém aqui.
Mabel olhou-o sem mover-se. Os seus olhos brilhavam com sentimentos que pretendia ocultar e os seus lábios projetaram-se para a frente, como se o fosse beijar.
— Louco, teimoso — foi o que disse.
Ken afastou-se com os olhos fixos na porta. Só na rua conseguiu acalmar-se. Não podia evitar que o olhar de Mabel o inquietasse. Adivinhava naquela mulher uma capacidade amorosa sem limites e pressentia que ela, de algum modo, tentava evitar cometer os mesmos erros que tinham marcado a sua vida.
Mabel tinha um passado, que nem a sua forma de vestir nem os seus modos pretendia encobrir, mas naquele momento tentava que tudo isso esquecesse. Era bonita, embora carecendo de juventude. Estava no período crítico em que a mulher floresce pela última vez antes de chegar à velhice, e ela não podia evitar pensar nele como a sua última oportunidade.
O Sol estava no zénite. As ruas de Tombstone encontravam-se vazias, e não voltariam a ter movimento até que o Sol voltasse a declinar. Com passos lentos dirigiu-se para o seu gabinete. Dentro de uma hora sairia a diligência para a capital, mas ele não a tomaria. Precisava averiguar o que se ocultavam detrás dos factos misteriosos que se davam na cidade. Dobrou a esquina e foi quando viu o grupo de cavaleiros. Estavam diante do escritório do xerife e pareciam muito interessados com o que se estava a passar lá dentro.
Notou que eram mexicanos, e debaixo do sol ardente os grandes chapéus projetavam grandes zonas de sombra no chão. Apressou o passo, antevendo que alguma razão especial existia para que os homens do outro lado da fronteira a tivessem cruzado para ver o xerife de Tombstone.
Quando estava próximo, os cavaleiros olharam-no, seguindo-o com os olhos. Não fazendo caso deles, entrou no escritório. Diante do xerife Keller encontrava-se um mexicano alto e espigado, inteiramente vestido de negro, com cinturão e cartucheira guarnecida a prata e enormes esporas feitas de moedas de ouro mexicanas.
Encontrava-se de costas, mas mesmo assim Ken notou que esse jovem era atlético, pois os seus músculos notavam-se debaixo de sua apertada jaqueta.
— Estou certo de que os ladrões de gado passaram para esta parte do Arizona — afirmava com cadenciada entoação, que demonstrava irritação e cólera.
Keller respirou fundo.
— Olhe, amigo, aqui não sabemos nada disso. De modo que será melhor voltar à sua terra e deixe de cruzar a fronteira às boas. Em Tombstone não há ladrões de gado... e não tenho vontade de o repetir.
— No entanto, tenho provas que...
— Basta! — gritou Keller. — A minha paciência esgotou-se. Largue-me.
— 61
O mexicano ergueu o tronco, como um felino pronto a saltar e naquele momento Ken saiu da imobilidade dando a conhecer a sua presença.
— Um momento, amigo. Temo que eu tenha algo que dizer.
O mexicano girou sobre os calcanhares, com um tilintar de esporas. Os seus lábios escuros relampeavam e o negríssimo bigode parecia um traço de carvão sobre o lábio. Era jovem, efetivamente, e parecia decidido a tudo.
— Não creio que seja muito cortês com os nossos vizinhos, xerife Keller — disse o jovem, olhando de alto a baixo os dois homens.
O representante da lei grunhiu algo, e depois elevou a voz.
— Este homem está a acusar-nos de ladrões de gado.
— Eu não disse tal coisa — protestou o mexicano.
— Eu ouvi parte das suas palavras, senhor...
— Raul Aceves.
— Eu sou o Juiz Ken Adams. Que pode dizer-me desses ladrões de gado?
Aceves olhou-o durante um instante com firmeza, como perguntando a si próprio se o jovem seria pessoa honrada. Pouco a pouco afrouxou os músculos.
— Roubaram-me mil reses.
— Quando? Esta noite.
— Onde tem o seu rancho?
— Nas margens do rio S. Pedro, junto ao outro lado da fronteira. Estávamos todos a dormir, quando uns dez ladrões assaltaram o rancho, matando as duas sentinelas. Quando quisemos organizar a defesa, estávamos sob a vigilância de vários pistoleiros, enquanto os seus companheiros levavam o gado para aqui.
— Como sabe que foi esta a direção?
— As marcas de mil reses não podem ser apagadas senão pela chuva ou por um furacão. Nenhuma destas coisas aconteceu nestas últimas horas.
Ken olhou para Keller.
— Tem alguma notícia sobre isto?
— Não, com mil diabos! Já o disse várias vezes. Foram ladrões mexicanos que quiseram despistar os seus perseguidores, dando uma volta para de novo se internar em terras mexicanas.
— Como o sabe?
O xerife soltou um palavrão.
— Demónios! Suponho que seja assim!
— Você é um xerife com muita imaginação, Keller. É capaz de adivinhar qualquer coisa que não viu.
As faces do representante da lei tornaram--se púrpuras.
— Tenho experiência — gritou.
Aceves estendeu a mão a Ken.
— Se você é honrado como suponho, Juiz, deve prestar-me ajuda. Não é a primeira vez que me roubaram, mas quero que seja a última. Nas ocasiões que os ladrões visitaram o meu rancho vinham de Tombstone, e para aqui trouxeram as minhas reses. É uma proposta formal que estou a fazer.
Ken compreendeu que aquele homem estava dizendo a verdade e concordou.
— Acredito-o, Aceves. E vou tomar medidas para que não volte a acontecer. Quer levar-me a esse ponto onde estão essas marcas? Gostaria de segui-las.
— Com todo o prazer, Juiz. Venha connosco.
No gabinete, Keller ficou cravando as unhas na palma da mão. Momentos depois, da janela do seu gabinete, viu o grupo de cavaleiros pôr-se em marcha, com Aceves e o Juiz à frente. Em voz alta amaldiçoou o intrometido Juiz Ken Adams, que estava tornando as coisas mais difíceis.
— Não pode continuar a viver... — decidiu, mordendo as palavras. Depois saiu do gabinete com passo apressado.
Os cavaleiros detiveram-se diante de uma ampla facha de terreno, com cortes de marcas de gado.
— Veja, Juiz. Este é o rasto do meu gado. Como vê, segue em direção ao norte.
Era verdade. As reses tinham sido dirigidas até às terras do Arizona, cuja divisória acabavam de cruzar por outro lugar.
— Imagino que as terão seguido.
— Exato.
— E aonde conduzem? Isso será uma pista?
— Não é, amigo. Os ladrões são espertos.
— E?...
— Levá-lo-ei lá, e assim evitarei explicações.
Manejou as rédeas do seu soberbo cavalo e lançou-o a trote largo. Ken seguiu-o, e atrás deles continuaram os cinco peões que acompanhavam o seu amo. Muito em breve Ken compreendeu o sentido das palavras de Aceves. As marcas perdiam-se totalmente num terreno rochoso.
— Compreende agora, Juiz?
— Está bem claro. Não há nem uma só marca das suas reses nesta zona?
— Impossível. Procurámos toda a manhã, mas não foi possível encontrar o menor rasto.
— Mas tem de terminar nalgum lugar esta parte rochosa.
— Sim; no rio S. Pedro e em outros sectores, mas em nenhum voltamos a encontrar marcas recentes de reses…
— Está... certo?
— É o meu gado que procuro, Juiz, e tenho verdadeiro interesse em encontrá-lo.
— Queria ver se não havia possibilidade de errar. Bem; se é assim, só fica uma solução, a não ser que as suas vacas tivessem asas.
— Não tinham, palavra.
— Vejamos então o lugar onde as rochas se unem com o rio.
Foram até lá a toda a velocidade, e na margem detiveram-se. O rio S. Pedro nascia ali perto, atrás de uns pequenos montes mexicanos; cruzava a fronteira para atravessar metade do Arizona e desaguava no rio Gila Naquele lugar as suas águas eram claras e mansas, mas escassas. Ken olhou para a outra margem.
— Não pense nisso — disse Aceves, adivinhando os seus pensamentos. Tão-pouco há sinais das minhas reses.
Em silêncio, Ken meteu o seu cavalo m água e fê-lo avançar a favor da corrente em direção do Arizona.
—Eh! Que faz?
Aceves foi atrás dele, e os peões seguiram o patrão.
— Aqui há um mistério que temos de desvendar. Quer seguir-me?
— Mesmo até ao inferno, se ali estiverem as minhas vacas!
Chapinhando na água pouco profunda, foram avançando sem pronunciar palavra. Os olhos de todos estavam fixos em ambas a margens, procurando algum sinal identifica dor que lhes desse uma pista. Mil reses não podiam ser ocultadas tão facilmente, e paradeiro não podia estar longe. Tinham caminhado quase durante uma hora, quando, de repente, de um grupo de árvores, saiu a voz áspera de uma sentinela.
— Eh, vocês! Que procuram aqui?
Ken puxou as rédeas do seu cavalo e deteve-o, sendo imitado pelos demais. Os seus penetrantes olhos examinaram os arbustos, e pelo reflexo do sol viu brilhar nas águas o cano de uma espingarda.
— Represento a lei! — disse. — E quem é você?
Aceves e os seus homens tinham as mãos próximo das armas, pensando que tinham encontrado os ladrões de gado. O desconhecido que lhes tinha dado voz de alto vacilou, e começou a gaguejar ao falar de novo:
— Quem quer que sejam, devem saber que se encontram em propriedade particular e que não podem entrar nela sem autorização do dono. Têm-na?
Ken manobrou o cavalo e Aceves aconselhou:
— Não o faça. Podem disparar contra você.
O vigilante gritou:
— Quieto!
Mas Ken não obedeceu e continuou avançando, oferecendo o peito, impassível.
— Sou o juiz Ken Adams. Quem é o seu patrão?
Tinha chegado à outra margem, descobrindo o homem que lhe tinha dado voz de parar. Era um tipo corpulento, barbudo e com os olhos escondidos debaixo de centenas de rugas produzidas pelo sol e pela água. O rifle que sustinha apontava diretamente ao centro do coração do jovem.
— Estas terras são de Percy Craig.
Ken enrugou o sobrolho.
— O alcaide de Tombstone?
— Você deve ser o novo juiz chegado da capital, não?
— Exatamente.
— Deveria conhecer a lei que proíbe, cruzar a fronteira, e depois entrar em terreno particular sem autorização do seu dono. Nunca ouviu falar disso?
O vigilante tinha uma expressão dura.
— O que me lembro é algo relativo a ladrões de gado e às suas atividades do outro lado da fronteira, no México, de onde passam para o Arizona manadas de reses que aqui marcam com outro ferro.
O silêncio que se seguiu era de gelo.
— Que quer dar a entender, Juiz?
— Creio que as minhas palavras são claras como as águas que acariciam as patas do meu cavalo. Vamos, afaste esse rifle. Já durou demasiado esta estúpida conversa.
Os olhos escuros de Ken fulminaram o vigilante, que pouco a pouco se sentiu dominado pelo magnetismo do administrador da lei, obedecendo à sua ordem. Ken fez subir o cavalo e uma vez em cima, fez sinal aos outros para se aproximarem.
— Isto é urna violação de propriedade, Juiz — disse o do rifle.
O jovem não se preocupou em responder e olhou em volta.
— Marcas de reses — apontou Aceves e lançou o cavalo pela suave ladeira que conduzia ao rio, uns metros mais abaixo.
Ken olhou para o lugar assinalado pelo mexicano e depois para o homem que os tinha detido. Este encolheu os ombros.
— É o bebedouro do rancho Craig — disse entre dentes.
Aceves, voltava já, excitado.
— Encontrámo-la, Juiz.
— É o lugar onde bebem as manadas de Craig.
O excitado mexicano ficou de boca aberta, estupefacto.
— Oiça... começou.
— É o que acaba de dizer-me este indivíduo — informou Ken. — Não inventei nada.
Aceves lançou o seu cavalo contra a sentinela.
— Maldito! Eu te farei soltar a língua...!
O alazão do mexicano atropelou o tipo da espingarda, que caiu todo ao comprido, mas do chão apontou o rifle metendo o dedo no guarda-mato para apertar o gatilho. O movimento de Ken foi infinitamente rápido e na sua mão apareceu o «Colt» sovaqueiro, disparando quase sem apontar.
A espingarda saltou das mãos do homem, e em seguida Ken advertiu:
— Quieto, Aceves! Não gosto desse procedimento!
O mexicano ficou imóvel, tenso, disposto a desobedecer à ordem, mas ao notar o brilho perigoso do olhar de Ken, relaxou os músculos.
— De acordo, Juiz, deixei-me levar pelos nervos.
O jovem volteou o «Colt» e carregou a bala gasta, guardando-o em seguida.
— Será melhor não perdermos a serenidade — opinou. — Eh, tu — acrescentou, dirigindo-se à sentinela, caída, que apertava a mão ferida pelo balázio. — Conduz-nos ao rancho. Queremos ver Craig.
Este levantou-se, infinitamente aborrecido, ainda que só na aparência; montou o seu cavalo, que se encontrava perto e, depois, a trote, atravessaram diferentes pastos até divisarem o edifício do rancho. Ao deterem-se em frente dele, vários peões olharam-no com curiosidade. Na porta, apareceu Percy Craig, atraído sem dúvida pelo ruído que faziam os cascos de tantos cavalos. Ao ver o patrão, o sentinela explicou, rapidamente:
— Estava vigiando quando estes homens chegaram pelo leito do rio, vindos do lado do México, e entraram nas terras do rancho. Dei-lhes voz de alto, mas não me obedeceram e dispararam, desarmando-me. Depois obrigaram-me a conduzi-los até aqui. Lamento, patrão, mas não pude fazer nada. O alcaide olhou um por um os cavaleiros, deixando para o fim Ken. — Isto é um delito, Juiz.
— O seu vaqueiro não soube explicar as coisas, Craig. Viemos do México, é verdade, seguindo as marcas de mil reses pertencentes ao senhor Aceves, a quem lhas roubaram ontem à noite. Caminhando pelo rio não pudemos observar onde começavam os limites do seu rancho. Em todo o caso, as marcas conduzem até ele.
— Que quer dar a entender?
O vigilante avisou:
— Viram as marcas no bebedouro e imaginaram que eram as das vacas deste mexicano!
— Mande calar o seu vaqueiro, Craig.
— Cumpre o seu dever, informando-me.
— E qual é a sua resposta?
— Uma só! Desapareça. Não consinto que entrem no meu rancho sem minha autorização. A sua visita... não é grata.
— Você sabe que posso ordenar uma rusga ao seu rancho, alcaide, e que posso fazer a mesma coisa em todos ranchos de Tombstone. Se nada tem a ocultar, não oponha dificuldades... ou pensarei outra coisa.
— Que é que pode pensar, Juiz?
— Simplesmente, que o seu rancho está situado tão estrategicamente, que é possível passarem as manadas do México sem que as reses deixem uma só marca da sua passagem. Primeiro, existe uma zona rochosa onde as patas dos animais não marcam; depois, um rio, e por fim o bebedouro do seu rancho. Tudo isso dá que pensar, não crê?
— Não me dá cuidado!
— De verdade? — Ken moveu a cabeça, infinitamente seguro. — Você tem muito medo, Craig, demasiado para a sua segurança. Você teme que eu averigue demasiadas coisas e, na verdade é o que eu vou conseguindo a pouco e pouco. Disse-lhe, não há muito tempo, que lhe convinha demonstrar-me a sua inocência... e não fez caso do meu conselho. Agora dou-lhe outro: Apresse-se a lavar as mãos!
Puxou as rédeas do seu cavalo e pô-lo em movimento, voltando a garupa.
Aceves, depois de um instante de vacilação, imitou-o.
— Oiça, Juiz; vamos deixar isto assim? A: minhas reses estão neste rancho!
Ken sacudiu a cabeça.
— Demasiado tarde, amigo. Esta gente muito esperta e souberam fazer as coisas, ma descanse que havemos de descobrir tudo.
A segurança do Juiz acalmou o mexicano.
— Não sei porque tenho confiança em você, Ken. Permite-me que o trate assim?
— Porque não, Raul — e sorriu. — Mas estou demasiado só nesta luta. Importa-se de me dar urna ajuda, quando lha pedir?
— Você manda! Estou às suas ordens!
No rancho, Craig gritava como um louco.
— Quem o nomeou para este cargo, Keller?
O aludido era um tipo alto, de aspeto duro e olhar frio como a lâmina de um punhal. Uma cicatriz sulcava o seu queixo do lado esquerdo e a «estrela» de cinco pontas brilhava na sua jaqueta de pele de antílope.
— O alcaide, naturalmente. É a única pessoa autorizada para isso.
— Prestou juramento?
— Claro.
— Conhece as suas obrigações?
— E os meus direitos, sim.
Havia uma implícita entoação na sua resposta. Ken não deixou de captar aquele detalhe e fixou o seu olhar nas pupilas do novo xerife.
— Antes de começar os seus deveres, quero que me oiça por um instante, Keller.
— Escutá-lo-ei com prazer, mas... não temos muito tempo. O julgamento é dentro de cinco minutos e devo levar a acusada para a sala.
— Há tempo de sobra — abriu a gaveta e tirou um dos revólveres que tinha pertencido a Went.
Mecanicamente abriu-o, verificou que o tambor estava cheio de balas e guardou-o na funda sovaqueira sem preocupar-se com o olhar de Keller.
— O seu antecessor do cargo, Kay Went, preferiu passar-se para o lado contrário da lei... e a verdade é que não foi muito afortunado. Outros, cúmplices dele sem dúvida, e de outra pessoa cujo nome sei e talvez você também, tentaram assassinar-me. Uns e outros não se saíram muito bem... Quer isto dizer, Keller, que o meu olhar é muito comprido e os meus movimentos muito rápidos; que desconfio de toda a gente; que estou disposto a implantar a lei em Tombstone; e que todo aquele que se oponha a isso encontrará uma corda, ou um bocado de chumbo...
— É uma alusão pessoal, Juiz? — perguntou o outro, secamente.
— É... um inocente comentário, em vistas das circunstâncias. Ah, já me esquecia; quem não está comigo, está contra mim. É uma última recomendação; quando um acusado vai a um julgamento presidido por mim, se tem de morrer, que o façam com uma corda ao pescoço, e não de outra forma.
— Terminou?
— Isto é tudo.
O julgamento decorreu sem grandes complicações. O momento, no final, era de nervosismo. A assistência aguardava as palavras de Ken Adams, enquanto Eva Fraser se mantinha de pé, esplêndida dentro do seu maltratando vestido, aguardando o veredicto. Ken estalou os dedos.
— Sou homem de poucas palavras. A defesa demonstrou que Eva Fraser não pôde matar Joe Patton porque o disparo foi feito de maior distância que a que permitiam as exíguas dimensões do quarto onde sucedeu o crime; também ficou claramente demonstrado que alguém corria pelo corredor dos reservados quando se ouviu o tiro; que o revólver que encontrou nas mãos de Eva não lhe pertencia nem era da vítima; que ambos iam casar, pelo que não havia motivo para a morte de Patton, e um sem fim de pequenos detalhes circunstanciais que vocês ouviram. O veredicto do júri foi «Inocente», e eu declaro livre a acusada Eva Fraser, restituindo-lhe todos os seus direitos de cidadã. Está encerrada a sessão.
O busto feminino estava alterado pela respiração agitada, produzida pela emoção do momento. Quando Ken bateu na mesa com o martelo de madeira, elevou-se na sala um murmúrio de vozes. Mas Adams não se retirou logo. O seu olhar estava cravado em Keller, e este estremeceu debaixo do impacto abrasador. Com secos movimentos libertou os punhos de Eva, bruscamente voltou-se, dirigindo-se para a saída. O alcaide também foi dos primeiros a sair, e o resto dos espectadores encaminhou-se para a rua fazendo comentários.
Os olhos de Ken e Eva encontraram-se durante uns segundos, até que o jovem desviou o olhar, entrando no seu gabinete, onde despiu a toga. Urna vez ali, serviu-se de um copo de «whisky», e então bateram à porta.
— Entre.
Era Eva, ainda malvestida com aquele vestido que mostrava as marcas da sua tragédia. O dourado sol da manhã iluminava a sua silhueta projetando-a no interior do gabinete. Os seus cabelos loiros caiam-lhe pelos redondos ombros, e os lábios tremiam-lhe levemente.
— Porque fez isto? — perguntou ela por fim.
Ken pôs o copo em cima da mesa.
— Não posso estar toda a vida a repeti-lo. Que é que quer de mim? Vamos, diga. Estou acostumada a ouvi-lo... e livrou-me da forca por isso.
Ken ergueu toda a sua estatura e o seu olhar era tão duro como o aço.
— Vai-te embora, Eva. Não quero saber nada de ti. Produz-me nojo a tua maneira de falar.
Ela semicerrou os olhos.
— Não o entendo, Juiz.
— Vai-te ou ponho-te lá fora.
Sacudindo uma melena dourada, Eva saiu sem se incomodar a fechar a porta, e Ken continuou a olhá-la até que a perdeu de vista ao voltar a esquina. Só então o jovem pegou o copo e ingeriu de um trago o seu conteúdo. Sentia nojo por Tombstone e tudo que encerrava os seus limites. Mas não podia deixá-la até que tivesse cumprido a sua missão.
Ken almoçava no «Saloon Fronteiriço». O seu rosto estava sulcado de rugas de preocupação. A notícia do singular julgamento tinha corrido por Tombstone, e as pessoas, ao vê-lo, comentavam a sua audácia. Mabel, olhava-o preocupada.
— É possível que tenha apetite?
Levantou-se.
— Não se senta, Mabel?
Ajudou-a a sentar-se, e Ken respondeu à primeira pergunta.
— Falta-me muito pouco, essa é a verdade.
— As pessoas comentam a sua valentia, Ken. Há numerosas apostas feitas.
O jovem levantou as sobrancelhas.
— Sobre a minha pessoa?
— Concretamente, sobre os dias que lhe restam de vida... As apostas não são muito benéficas para você: os mais otimistas dão-lhe três dias de vida, mas a maioria aposta em que não verá o entardecer de hoje.
— Não é muito animadora a sua conversa, Mabel.
— Lamento-o, mas com isto quero pedir-lhe que tenha cuidado.
Ken olhou em volta. No balcão, três clientes olhavam-no furtivamente, sem dúvida deleitando-se a contemplar um homem «marcado». Era grande o sentido mórbido daquela gente.
— Quem me vai matar?
— Ainda o pergunta?
— Não tenho mais que suspeitas. Julga que um Juiz pode actuar sem provas?
— Nesta terra não são precisas provas, Ken. Quando um homem tem uma conta pendente, praza-a com as armas na mão.
— Não é o meu sistema.
— Não; mas teve de o empregar e empregá-lo-á mais vezes ainda, senão quer ter um lugar de honra no nosso cemitério.
Ken colocou a colher de lado.
— Conseguiu estragar-me o almoço.
Ela estava formosa e tinha uma expressão estranha nos olhos. Dir-se-ia que sentia por ele uma inclinação, mas que a sua consciência a obrigava a conter-se.
— Lamento-o, mas eles vão matá-lo. Melvin Patton?
— Ele, não; é muito esperto para comprometer-se. Mas sim os seus pistoleiros. Tem muitos e um ou outro acabará consigo, se não se mostra inteligente.
— E que devo fazer para ser considerado inteligente?
— Ir-se embora. Dentro de uma hora sai uma diligência de Tombstone com destino à capital. A missão para o qual veio, acaba de ser cumprida; nada tem de fazer aqui.
— Teoricamente, sim, mas você sabe que isso não é verdade. Há um xerife foragido ao qual é preciso deitar a mão e fazê-lo castigar pelo seu crime; e existe um tráfego ilegal de gado roubado de um lado e doutro da fronteira.
— Não é sua a missão de perseguir delinquentes, mas sim julgá-los. Deve regressar à. capital e aguardar que o chamem de novo para fazer justiça.
— Isso não o farão nunca. Precisamente aproveitam a minha partida para ficarem tranquilos e atuarem com toda a liberdade.
— Não pense nisso e não ligue ao caso. Ainda tem de preparar a bagagem e tomar lugar na diligência.
Ken acariciou o queixo.
— Porquê tanto interesse?
Ela cruzou os dedos e baixou a vista.
— Não é preciso responder a isso, Ken. Por favor, vá-se embora de Tombstone antes que seja demasiado tarde.
— Não creio que o faça — disse levantando-se. — Há uma coisa que se chama sentido do dever, e que me retém aqui.
Mabel olhou-o sem mover-se. Os seus olhos brilhavam com sentimentos que pretendia ocultar e os seus lábios projetaram-se para a frente, como se o fosse beijar.
— Louco, teimoso — foi o que disse.
Ken afastou-se com os olhos fixos na porta. Só na rua conseguiu acalmar-se. Não podia evitar que o olhar de Mabel o inquietasse. Adivinhava naquela mulher uma capacidade amorosa sem limites e pressentia que ela, de algum modo, tentava evitar cometer os mesmos erros que tinham marcado a sua vida.
Mabel tinha um passado, que nem a sua forma de vestir nem os seus modos pretendia encobrir, mas naquele momento tentava que tudo isso esquecesse. Era bonita, embora carecendo de juventude. Estava no período crítico em que a mulher floresce pela última vez antes de chegar à velhice, e ela não podia evitar pensar nele como a sua última oportunidade.
O Sol estava no zénite. As ruas de Tombstone encontravam-se vazias, e não voltariam a ter movimento até que o Sol voltasse a declinar. Com passos lentos dirigiu-se para o seu gabinete. Dentro de uma hora sairia a diligência para a capital, mas ele não a tomaria. Precisava averiguar o que se ocultavam detrás dos factos misteriosos que se davam na cidade. Dobrou a esquina e foi quando viu o grupo de cavaleiros. Estavam diante do escritório do xerife e pareciam muito interessados com o que se estava a passar lá dentro.
Notou que eram mexicanos, e debaixo do sol ardente os grandes chapéus projetavam grandes zonas de sombra no chão. Apressou o passo, antevendo que alguma razão especial existia para que os homens do outro lado da fronteira a tivessem cruzado para ver o xerife de Tombstone.
Quando estava próximo, os cavaleiros olharam-no, seguindo-o com os olhos. Não fazendo caso deles, entrou no escritório. Diante do xerife Keller encontrava-se um mexicano alto e espigado, inteiramente vestido de negro, com cinturão e cartucheira guarnecida a prata e enormes esporas feitas de moedas de ouro mexicanas.
Encontrava-se de costas, mas mesmo assim Ken notou que esse jovem era atlético, pois os seus músculos notavam-se debaixo de sua apertada jaqueta.
— Estou certo de que os ladrões de gado passaram para esta parte do Arizona — afirmava com cadenciada entoação, que demonstrava irritação e cólera.
Keller respirou fundo.
— Olhe, amigo, aqui não sabemos nada disso. De modo que será melhor voltar à sua terra e deixe de cruzar a fronteira às boas. Em Tombstone não há ladrões de gado... e não tenho vontade de o repetir.
— No entanto, tenho provas que...
— Basta! — gritou Keller. — A minha paciência esgotou-se. Largue-me.
— 61
O mexicano ergueu o tronco, como um felino pronto a saltar e naquele momento Ken saiu da imobilidade dando a conhecer a sua presença.
— Um momento, amigo. Temo que eu tenha algo que dizer.
O mexicano girou sobre os calcanhares, com um tilintar de esporas. Os seus lábios escuros relampeavam e o negríssimo bigode parecia um traço de carvão sobre o lábio. Era jovem, efetivamente, e parecia decidido a tudo.
— Não creio que seja muito cortês com os nossos vizinhos, xerife Keller — disse o jovem, olhando de alto a baixo os dois homens.
O representante da lei grunhiu algo, e depois elevou a voz.
— Este homem está a acusar-nos de ladrões de gado.
— Eu não disse tal coisa — protestou o mexicano.
— Eu ouvi parte das suas palavras, senhor...
— Raul Aceves.
— Eu sou o Juiz Ken Adams. Que pode dizer-me desses ladrões de gado?
Aceves olhou-o durante um instante com firmeza, como perguntando a si próprio se o jovem seria pessoa honrada. Pouco a pouco afrouxou os músculos.
— Roubaram-me mil reses.
— Quando? Esta noite.
— Onde tem o seu rancho?
— Nas margens do rio S. Pedro, junto ao outro lado da fronteira. Estávamos todos a dormir, quando uns dez ladrões assaltaram o rancho, matando as duas sentinelas. Quando quisemos organizar a defesa, estávamos sob a vigilância de vários pistoleiros, enquanto os seus companheiros levavam o gado para aqui.
— Como sabe que foi esta a direção?
— As marcas de mil reses não podem ser apagadas senão pela chuva ou por um furacão. Nenhuma destas coisas aconteceu nestas últimas horas.
Ken olhou para Keller.
— Tem alguma notícia sobre isto?
— Não, com mil diabos! Já o disse várias vezes. Foram ladrões mexicanos que quiseram despistar os seus perseguidores, dando uma volta para de novo se internar em terras mexicanas.
— Como o sabe?
O xerife soltou um palavrão.
— Demónios! Suponho que seja assim!
— Você é um xerife com muita imaginação, Keller. É capaz de adivinhar qualquer coisa que não viu.
As faces do representante da lei tornaram--se púrpuras.
— Tenho experiência — gritou.
Aceves estendeu a mão a Ken.
— Se você é honrado como suponho, Juiz, deve prestar-me ajuda. Não é a primeira vez que me roubaram, mas quero que seja a última. Nas ocasiões que os ladrões visitaram o meu rancho vinham de Tombstone, e para aqui trouxeram as minhas reses. É uma proposta formal que estou a fazer.
Ken compreendeu que aquele homem estava dizendo a verdade e concordou.
— Acredito-o, Aceves. E vou tomar medidas para que não volte a acontecer. Quer levar-me a esse ponto onde estão essas marcas? Gostaria de segui-las.
— Com todo o prazer, Juiz. Venha connosco.
No gabinete, Keller ficou cravando as unhas na palma da mão. Momentos depois, da janela do seu gabinete, viu o grupo de cavaleiros pôr-se em marcha, com Aceves e o Juiz à frente. Em voz alta amaldiçoou o intrometido Juiz Ken Adams, que estava tornando as coisas mais difíceis.
— Não pode continuar a viver... — decidiu, mordendo as palavras. Depois saiu do gabinete com passo apressado.
Os cavaleiros detiveram-se diante de uma ampla facha de terreno, com cortes de marcas de gado.
— Veja, Juiz. Este é o rasto do meu gado. Como vê, segue em direção ao norte.
Era verdade. As reses tinham sido dirigidas até às terras do Arizona, cuja divisória acabavam de cruzar por outro lugar.
— Imagino que as terão seguido.
— Exato.
— E aonde conduzem? Isso será uma pista?
— Não é, amigo. Os ladrões são espertos.
— E?...
— Levá-lo-ei lá, e assim evitarei explicações.
Manejou as rédeas do seu soberbo cavalo e lançou-o a trote largo. Ken seguiu-o, e atrás deles continuaram os cinco peões que acompanhavam o seu amo. Muito em breve Ken compreendeu o sentido das palavras de Aceves. As marcas perdiam-se totalmente num terreno rochoso.
— Compreende agora, Juiz?
— Está bem claro. Não há nem uma só marca das suas reses nesta zona?
— Impossível. Procurámos toda a manhã, mas não foi possível encontrar o menor rasto.
— Mas tem de terminar nalgum lugar esta parte rochosa.
— Sim; no rio S. Pedro e em outros sectores, mas em nenhum voltamos a encontrar marcas recentes de reses…
— Está... certo?
— É o meu gado que procuro, Juiz, e tenho verdadeiro interesse em encontrá-lo.
— Queria ver se não havia possibilidade de errar. Bem; se é assim, só fica uma solução, a não ser que as suas vacas tivessem asas.
— Não tinham, palavra.
— Vejamos então o lugar onde as rochas se unem com o rio.
Foram até lá a toda a velocidade, e na margem detiveram-se. O rio S. Pedro nascia ali perto, atrás de uns pequenos montes mexicanos; cruzava a fronteira para atravessar metade do Arizona e desaguava no rio Gila Naquele lugar as suas águas eram claras e mansas, mas escassas. Ken olhou para a outra margem.
— Não pense nisso — disse Aceves, adivinhando os seus pensamentos. Tão-pouco há sinais das minhas reses.
Em silêncio, Ken meteu o seu cavalo m água e fê-lo avançar a favor da corrente em direção do Arizona.
—Eh! Que faz?
Aceves foi atrás dele, e os peões seguiram o patrão.
— Aqui há um mistério que temos de desvendar. Quer seguir-me?
— Mesmo até ao inferno, se ali estiverem as minhas vacas!
Chapinhando na água pouco profunda, foram avançando sem pronunciar palavra. Os olhos de todos estavam fixos em ambas a margens, procurando algum sinal identifica dor que lhes desse uma pista. Mil reses não podiam ser ocultadas tão facilmente, e paradeiro não podia estar longe. Tinham caminhado quase durante uma hora, quando, de repente, de um grupo de árvores, saiu a voz áspera de uma sentinela.
— Eh, vocês! Que procuram aqui?
Ken puxou as rédeas do seu cavalo e deteve-o, sendo imitado pelos demais. Os seus penetrantes olhos examinaram os arbustos, e pelo reflexo do sol viu brilhar nas águas o cano de uma espingarda.
— Represento a lei! — disse. — E quem é você?
Aceves e os seus homens tinham as mãos próximo das armas, pensando que tinham encontrado os ladrões de gado. O desconhecido que lhes tinha dado voz de alto vacilou, e começou a gaguejar ao falar de novo:
— Quem quer que sejam, devem saber que se encontram em propriedade particular e que não podem entrar nela sem autorização do dono. Têm-na?
Ken manobrou o cavalo e Aceves aconselhou:
— Não o faça. Podem disparar contra você.
O vigilante gritou:
— Quieto!
Mas Ken não obedeceu e continuou avançando, oferecendo o peito, impassível.
— Sou o juiz Ken Adams. Quem é o seu patrão?
Tinha chegado à outra margem, descobrindo o homem que lhe tinha dado voz de parar. Era um tipo corpulento, barbudo e com os olhos escondidos debaixo de centenas de rugas produzidas pelo sol e pela água. O rifle que sustinha apontava diretamente ao centro do coração do jovem.
— Estas terras são de Percy Craig.
Ken enrugou o sobrolho.
— O alcaide de Tombstone?
— Você deve ser o novo juiz chegado da capital, não?
— Exatamente.
— Deveria conhecer a lei que proíbe, cruzar a fronteira, e depois entrar em terreno particular sem autorização do seu dono. Nunca ouviu falar disso?
O vigilante tinha uma expressão dura.
— O que me lembro é algo relativo a ladrões de gado e às suas atividades do outro lado da fronteira, no México, de onde passam para o Arizona manadas de reses que aqui marcam com outro ferro.
O silêncio que se seguiu era de gelo.
— Que quer dar a entender, Juiz?
— Creio que as minhas palavras são claras como as águas que acariciam as patas do meu cavalo. Vamos, afaste esse rifle. Já durou demasiado esta estúpida conversa.
Os olhos escuros de Ken fulminaram o vigilante, que pouco a pouco se sentiu dominado pelo magnetismo do administrador da lei, obedecendo à sua ordem. Ken fez subir o cavalo e uma vez em cima, fez sinal aos outros para se aproximarem.
— Isto é urna violação de propriedade, Juiz — disse o do rifle.
O jovem não se preocupou em responder e olhou em volta.
— Marcas de reses — apontou Aceves e lançou o cavalo pela suave ladeira que conduzia ao rio, uns metros mais abaixo.
Ken olhou para o lugar assinalado pelo mexicano e depois para o homem que os tinha detido. Este encolheu os ombros.
— É o bebedouro do rancho Craig — disse entre dentes.
Aceves, voltava já, excitado.
— Encontrámo-la, Juiz.
— É o lugar onde bebem as manadas de Craig.
O excitado mexicano ficou de boca aberta, estupefacto.
— Oiça... começou.
— É o que acaba de dizer-me este indivíduo — informou Ken. — Não inventei nada.
Aceves lançou o seu cavalo contra a sentinela.
— Maldito! Eu te farei soltar a língua...!
O alazão do mexicano atropelou o tipo da espingarda, que caiu todo ao comprido, mas do chão apontou o rifle metendo o dedo no guarda-mato para apertar o gatilho. O movimento de Ken foi infinitamente rápido e na sua mão apareceu o «Colt» sovaqueiro, disparando quase sem apontar.
A espingarda saltou das mãos do homem, e em seguida Ken advertiu:
— Quieto, Aceves! Não gosto desse procedimento!
O mexicano ficou imóvel, tenso, disposto a desobedecer à ordem, mas ao notar o brilho perigoso do olhar de Ken, relaxou os músculos.
— De acordo, Juiz, deixei-me levar pelos nervos.
O jovem volteou o «Colt» e carregou a bala gasta, guardando-o em seguida.
— Será melhor não perdermos a serenidade — opinou. — Eh, tu — acrescentou, dirigindo-se à sentinela, caída, que apertava a mão ferida pelo balázio. — Conduz-nos ao rancho. Queremos ver Craig.
Este levantou-se, infinitamente aborrecido, ainda que só na aparência; montou o seu cavalo, que se encontrava perto e, depois, a trote, atravessaram diferentes pastos até divisarem o edifício do rancho. Ao deterem-se em frente dele, vários peões olharam-no com curiosidade. Na porta, apareceu Percy Craig, atraído sem dúvida pelo ruído que faziam os cascos de tantos cavalos. Ao ver o patrão, o sentinela explicou, rapidamente:
— Estava vigiando quando estes homens chegaram pelo leito do rio, vindos do lado do México, e entraram nas terras do rancho. Dei-lhes voz de alto, mas não me obedeceram e dispararam, desarmando-me. Depois obrigaram-me a conduzi-los até aqui. Lamento, patrão, mas não pude fazer nada. O alcaide olhou um por um os cavaleiros, deixando para o fim Ken. — Isto é um delito, Juiz.
— O seu vaqueiro não soube explicar as coisas, Craig. Viemos do México, é verdade, seguindo as marcas de mil reses pertencentes ao senhor Aceves, a quem lhas roubaram ontem à noite. Caminhando pelo rio não pudemos observar onde começavam os limites do seu rancho. Em todo o caso, as marcas conduzem até ele.
— Que quer dar a entender?
O vigilante avisou:
— Viram as marcas no bebedouro e imaginaram que eram as das vacas deste mexicano!
— Mande calar o seu vaqueiro, Craig.
— Cumpre o seu dever, informando-me.
— E qual é a sua resposta?
— Uma só! Desapareça. Não consinto que entrem no meu rancho sem minha autorização. A sua visita... não é grata.
— Você sabe que posso ordenar uma rusga ao seu rancho, alcaide, e que posso fazer a mesma coisa em todos ranchos de Tombstone. Se nada tem a ocultar, não oponha dificuldades... ou pensarei outra coisa.
— Que é que pode pensar, Juiz?
— Simplesmente, que o seu rancho está situado tão estrategicamente, que é possível passarem as manadas do México sem que as reses deixem uma só marca da sua passagem. Primeiro, existe uma zona rochosa onde as patas dos animais não marcam; depois, um rio, e por fim o bebedouro do seu rancho. Tudo isso dá que pensar, não crê?
— Não me dá cuidado!
— De verdade? — Ken moveu a cabeça, infinitamente seguro. — Você tem muito medo, Craig, demasiado para a sua segurança. Você teme que eu averigue demasiadas coisas e, na verdade é o que eu vou conseguindo a pouco e pouco. Disse-lhe, não há muito tempo, que lhe convinha demonstrar-me a sua inocência... e não fez caso do meu conselho. Agora dou-lhe outro: Apresse-se a lavar as mãos!
Puxou as rédeas do seu cavalo e pô-lo em movimento, voltando a garupa.
Aceves, depois de um instante de vacilação, imitou-o.
— Oiça, Juiz; vamos deixar isto assim? A: minhas reses estão neste rancho!
Ken sacudiu a cabeça.
— Demasiado tarde, amigo. Esta gente muito esperta e souberam fazer as coisas, ma descanse que havemos de descobrir tudo.
A segurança do Juiz acalmou o mexicano.
— Não sei porque tenho confiança em você, Ken. Permite-me que o trate assim?
— Porque não, Raul — e sorriu. — Mas estou demasiado só nesta luta. Importa-se de me dar urna ajuda, quando lha pedir?
— Você manda! Estou às suas ordens!
No rancho, Craig gritava como um louco.
Sem comentários:
Enviar um comentário