domingo, 5 de janeiro de 2020

KNS049.03 As suspeitas que se tornam certezas

Alguém bateu à porta e Ken pós de lado o livro e levantou-se. O candeeiro projetou sobre a parede a sua larga sombra, e andando suavemente chegou até à porta e abriu-a.
Mabel estava ali, formosa e sedutora, envolvida num xaile escuro, que, não obstante, deixava ver o generoso decote.
—Oh!
— For favor, deixe-me entrar — pediu ela num murmúrio.
Surpreendido, o jovem afastou-se permitindo a entrada da dona do «saloon» e esta encostou-se à porta fechada, respirando ofegante.
— Ameaça-a algum perigo?
— Não queria que ninguém me visse chegar.
— Sou um homem marcado ou a minha companhia é perigosa?
Mabel puxou o xaile para os ombros nus. Depois olhou em volta, apreciando os detalhes do quarto do hotel.
— Em Tombstone existem dois grupos: um, você. O outro, eles. Você está sozinho e não tem nenhuma espécie de força; eles, pelo contrário, são duros e implacáveis. Quem está do seu lado, está contra eles, e não perdoam. Não gostaria de ser vítima dessa luta.
Ken sacudiu a cabeça.
— Creio que não a percebi, Mabel.
— Oh, sim. Sabe de sobra que se eles sabem que o vim avisar, me matarão.
— E porque o fez? Ela encolheu os ombros e o seu decote abriu-se uma polegada.
— Chame-me louca, mas você tornou-se-me simpático.
— Obrigado. E quem vai tentar matá-la?
Meneou a cabeça.
— Não sei! Eles, talvez.
Ken aproximou-se mais da mulher, olhando profundamente os seus olhos escuros. Brilhava neles uma ânsia enervante, e o seu olhar era como uma carícia que fazia esquecer todas as coisas do mundo. Agarrou-a pelos ombros, sentindo a fina pele nua.
— Você sabe muito, Mabel. Confie em mim e eu limparei Tombstone.
— Você morreria e eu também. E ainda sou jovem para morrer, Ken. Sei que a vida ainda me há de proporcionar muitos prazeres.
Falava como um murmúrio e os seus lábios vermelhos tremiam. Não soube porque o fez, mas Ken, de repente, encontrou-se abraçado àquele corpo e beijando aqueles lábios femininos numa carícia avassaladora.
Mabel fechou os olhos e entregou-se durante uns segundos. Mas de repente fez-se rígida e afastou-se. Respirou fundo e disse:
— Não volte a fazer isto, Ken.
— Perdão.
— Não o faça. Você é um Juiz e eu... uma aventureira. Não arruíne a sua vida por tão pouca coisa. Não volte a fazê-lo.
Desprendeu-se e recuou até à porta. Tinha ainda o olhar turvo e o peito ofegante. Não havia fúria nela, mas sim anseios selvagens dominados pela sua vontade. Ken sentiu-se de repente envergonhado e desviou o olhar. Mabel, visivelmente nervosa, continuou:
— As mulheres como eu são perigosas, Ken... continuemos a ser apenas bons amigos.
O jovem mordeu os lábios, e Mabel suspirou:
— Na vida tudo é demasiado difícil. Começou a abrir a porta:
— Queria dizer-lhe que pensam assaltar o escritório do xerife para libertar Went. Pensei que gostaria de saber.
Saiu e fechou tão suavemente a porta que um minuto depois parecia que nunca tinha estado ali dentro. Mas Ken sentia nos lábios o sabor do carmim feminino, e em todo seu corpo, o perfume íntimo da formosa mulher. Por fim pôde libertar-se da enervante recordação e pôs-se em movimento.
Do gavetão da cómoda tirou o cinturão de Went com os dois revólveres, colocando-o à cintura. Depois vestiu uma jaqueta em substituição da levita, e saiu do hotel a toda a pressa.
De noite, Tombstone era mais barulhenta do que de dia. Das cidades vizinhas e da próxima fronteira, chegavam abundantes viajantes procurando diversões e alegria ruidosa. Os «saloons» estavam no auge da animação e pelas janelas e pelas portas que davam para a rua principal, saía o ruído dos clientes cantando e dançando, assim como os acordes desafinados do piano ou os gritos incitantes das raparigas.
Com passo rápido, aproximou-se da rua onde ficava o gabinete do xerife, cujos arredores se encontravam estranhamente silenciosos. Pelos vidros saía a débil claridade do candeeiro. Andando com cautela aproximou-se rente com a parede, procurando não fazer ruído. Próximo, um cavalo soltou um afogado relincho e a sua mão desviou-se para a cintura. Espreitou pela janela, olhando para o interior. O gabinete parecia vazio, e não havia rasto de Curtis, o comissário. Começou a sacar e empurrou a porta.
Só então viu as botas de Curtis saindo debaixo da secretária. Conteve uma exclamação e entrou velozmente.
— Sem pressas, Juiz, chegou ao seu destino.
Desde o alpendre na sombra, a voz do pistoleiro anunciava violência.
Voltou o rosto, vendo a figura delgada e vigorosa do que lhe apontava friamente um «Colt» modelo fronteiriço, cujo rosto estava oculto pelo amplo chapéu.
— Que se passa aqui? Do corredor que dava para as celas ouviu-se rumor de passos.
— Solte esses revólveres, Juiz. Não precisa deles.
— Sabes que pode custar-te caro tentar contra a minha autoridade?
O pistoleiro soltou uma gargalhada.
— Sinto-me feliz por ter motivos para rir, Juiz. Largue-o ou parto-lhe a espinha!
A mão de Ken abriu-se para soltar a arma. Simultaneamente, os que vinham das celas detiveram-se na porta aberta.
— Que diabo?... — Disse o que vinha à frente.
— Não me felicitas pela caçada efetuada, Pink? — perguntou, irónico, o que tinha surpreendido Adams.
Atrás do chamado Pink apareceu mais outro pistoleiro, e por fim Ray Went, cujo olhar era viscoso para o jovem. Em último lugar, vinha a jovem, Eva Fraser.
— És um imprudente em citar nomes—resmungou Pink. — Em todo o caso o mais imprudente foi ele em meter o nariz por aqui.
Ken moveu-se.
— Uma linda reunião, amigos. Que fizeram a Curtis?
— Recebeu o que merecia — grunhiu Pink.
— Você está de acordo com o procedimento dos seus amigos, Went? — perguntou Ken, fixando o olhar implacável no ex-xerife.
— Vá para o diabo, Juiz. Desde que chegou a Tombstone, não fez mais que complicar tudo.
— Todavia não lhe dei motivos para estar aborrecido comigo, Went. Ainda não o enforquei. Aguarde para lamentar-se quando chegue esse momento.
 Went soltou uma maldição e rangeu os dentes.
— Dar-lhe-ei o que merece, Juiz. Nunca ninguém me pôs a mão em cima.
Pink começou também a sacar o seu revólver.
— Far-lhe-emos um buraco com simetria, Went. Isso resolverá muitas coisas.
Mas o ex-xerife deteve o seu cúmplice pelo braço.
— Temos de fazer as coisas como deve ser, Pink. Matá-lo aqui atrairia a atenção das pessoas. Levá-lo-emos... e eu mesmo me encarregarei de que nunca mais se saiba do seu paradeiro.
O tipo que tinha sido surpreendido, deu um estalo com a língua.
— Gosto das coisas rápidas e diretas, Went.
— Este é um pássaro perigoso e...
— Quem manda aqui? — perguntou Went. — Creio que ainda sou alguém, e a minha ordem é que o levemos connosco. Tenho uma ideia estupenda, em que entra a nossa linda prisioneira Eva Fraser. Torná-la-emos culpada do assassino do Juiz... e enforcá-la-emos com toda a legalidade. Ninguém poderá demonstrar que não foi ela que o fez.
Ken olhou para a jovem. Só então reparou que estava manietada, e que para fazê-lo, os pistoleiros tinham tratado mal o seu corpo precioso.
— Sois uma pandilha de miseráveis…
— Sim? — riu Went. -- Todavia, ainda não terminámos. Vamos com eles!
Ken adiantou-se um passo.
— Pense o que faz, Went. Com a lei não se pode brincar e quem se põe do outro lado não tem salvação.
— Vai fazer-me chorar, Juiz. Está disposto a seguir-nos às boas... ou prefere que usemos outros métodos?
De repente, Eva entrou em ação. Com fúria cega, lançou-se contra Went fazendo-o perder o equilíbrio e o ex-xerife, ao cair, arrastou consigo Pink, que soltou uma série de palavras injuriosas. O pistoleiro que o vigiava dirigiu o cano do seu revólver para disparar contra o jovem, mas este pôde desviar-se ao ouvir um grito de Eva.
O seu punho golpeou com fúria o rosto do pistoleiro, lançando-o através da porta da rua. Depois voltou-se, empunhando o outro «Colt» e disparou quase sem apontar. Fê-lo a tempo.
Pink apertava já o gatilho do seu «Colt» e ao receber o impacto do chumbo, levantou-se como arrastado por uma peça poderosa desviando a tempo o disparo, o suficiente para não alcançar o Juiz.
Went rastejou procurando proteção atrás da secretária, mas de fora choveram as balas. Ken entrincheirou-se atrás de um «maple», perseguido pelos disparos do pistoleiro da rua, assim como das balas do ex-xerife. Eva arrastou-se até colar-se à parede, e o jovem fez fogo contra a figura furtiva de Went.
O candeeiro soltou-se em mil pedaços ao ser alcançado, e milagrosamente a chama apagou--se com a deslocação da bala, sem inflamar o petróleo derramado sobre a mesa e no chão. O penetrante odor do combustível atingiu o olfato de Ken, distraindo-se um instante pensando que o escritório poderia tornar-se numa fogueira, e aquele momento de vacilação pareceu ser adivinhado por Went.
Saltou como louco para a saída, sabendo que só na velocidade das suas pernas poderia encontrar a salvação. Ken disparou uma, duas, três vezes. Mas o corpo do ex-xerife perdeu-se na noite, e um segundo depois pôde ouvir o relincho dos cavalos ao serem selvagemente esporeados para obrigá-los a lançarem-se num galope louco.
O jovem saiu atrás deles, fazendo fogo na noite, mas os seus tiros perderam-se no vazio. Na porta do escritório sentiu o «frou-frou» de vestidos femininos e voltou-se naquela direção.
Eva, manietada ainda, olhava-o e parecia que os seus olhos adquiriam um brilho estranho iluminados vagamente pelo reflexo lunar. O eco do galope dos cavalos perdeu-se ao longe. Ken, carregou maquinalmente o revólver, e murmurou:
— Jesus! Obrigado. Devo-te a vida.
— Será melhor que me devolva à minha cela, Juiz. Posso... escapar-me.
Ken aproximou-se da jovem.
— Não deverias ser tão sarcástica. Falei sinceramente.
— E eu também.
O jovem guardou o revólver.
— Continuarás a considerar-me teu inimigo?
— Acaso deixou de sê-lo por isto?
Ken riscou um fósforo e entrou no gabinete, seguido da jovem. Havia outro candeeiro e acendeu-o, tendo o cuidado de não pisar o charco de petróleo derramado. Olhou o rosto da formosa mulher.
— Nunca fui teu inimigo, Eva. Tentei dizer-to, mas não quiseste nunca ouvir-me.
— Não podia acreditá-lo.
— E agora?
Ela desviou o olhar e apertou os lábios. Ken deu a volta. Depois cortou as cordas que amarravam os punhos da jovem. Eva friccionou os braços para restabelecer a circulação.
— Meta-me na cela, Juiz. Se me veem, tirarão interpretações que não me convém.
— És terrivelmente pessimista.
— Não espero nada da vida, Juiz, e muito menos dos homens. Todos procuram em mim uma coisa e... Deixe-me em paz e procure condenar-me quanto antes. A verdade é que faz falta a corda à volta do meu pescoço.
Abriu a porta que dava para as celas e voltou à sua, fechando-a. Ken deu volta à chave e deixou-a. A jovem acomodou-se no catre, como se fosse a única coisa que lhe interessasse na vida.
Agitando as chaves regressou ao gabinete, e viu que vários curiosos tinham acudido ao ruido dos tiros. um prisioneiro.
Não os conhecia e eles perguntaram:
— Precisa da nossa ajuda, Juiz?
— Agora já não é necessária, amigos. Uns minutos antes teria sido muito útil. Escapou
— Mas um dos que o ajudou não teve muita sorte — disse um indivíduo de rosto vermelho, olhando o cadáver de Pink.
— Era o mínimo preço — inclinou-se sobre o cadáver de Curtis. Tinham-lhe cravado um punhal nas costas. — Vejam o que fizeram.
Um dos curiosos assobiou:
— Que porco trabalho. Têm alguma coisa urgente a fazer? Preciso de alguém que me ajude.
O que tinha falado avançou:
— Chamo-me Ford e posso dar uma mão, se sirvo para alguma coisa.
— De momento limpem tudo isto. Depois... se você é honrado como parece, poderá ajudar-me na minha ausência.
Ford sacudiu a cabeça.
— Não escolhe bem o momento para fazer--me a proposta, Juiz. Vendo Curtis com um palmo de ferro enterrado nas costas... não me seduz a ideia.
— Lamento-o.
— Não obstante, pensarei.
Ken fez um gesto de assentimento e saiu rapidamente à procura do alcaide, mas encontrou-o logo no alpendre. Vinha agitado e a voz faltava-lhe.
— Encontra-se... bem? — perguntou ao vê-lo.
— Muito melhor que alguns. Como soube a notícia?...
— Informaram-me...
— Melvin Patton, talvez?
Craig protestou:
— Que diz?
— Estou chegando ao fim das minhas suspeitas, Craig. A minha chegada a Tombstone não foi benéfica para vocês, e estou disposto a descobrir tudo. Não ficaram muito felizes ao ver que não era o Juiz que esperavam desta vez, mas pretenderam fechar-me os olhos oferecendo-me tudo pronto e preparado para ditar a sentença. Uma sentença injusta e...
— Senhor Juiz! —gritou Craig. —Devo lembrar-lhe que está falando com o alcaide e que...
— Estou dirigindo-me a Percy Craig. Não sei se são a mesma pessoa!
— Não gosto das suas frases de dupla intenção! — Depois, mudou de tom. — E o que é que vai fazer?
— Continuar a investigar, Craig. Só quando tiver provas atuarei com a máxima decisão. Entretanto deixarei que Melvin Patton ou os seus cúmplices se comprometam na sua própria, rede. Quem sabe se não serão eles próprios que põem a corda ao pescoço, como acaba de fazer Ray Went.
Craig mordeu os lábios, impotente para replicar adequadamente às implacáveis acusações de Ken Adams.
— Está seguindo um jogo muito perigoso, Juiz.
— Já o notei. São vários os atentados que sofri em curto espaço de tempo.
— Você soube livrar-se deles muito bem.
— Com as armas na mão, sim — assentiu o jovem. — De algo me serviu a minha alcunha: sou o «Juiz Tumba», não o esqueça.
— Não, mas saberei informar devidamente o Governador. Não gosto da sua forma de actuar, Ken Adams.
O jovem meneou a cabeça.
— Está certo que vai recorrer a ele? Será divertido enfrentarmo-nos os dois no gabinete do Governador. É muito possível que a ele lhe interesse o que tenho para contar-lhe. Estou certo de que lhe agradarão as minhas informações.
— Não pode provar nada.
— Está certo? —encolheu os ombros. —Bem, é lá com você. Mas eu não me fiaria muito. Quando um juiz deseja, chega sempre ao fim, e as suas sentenças são sempre implacáveis.
No olhar de Craig, o jovem leu uma decisão firme e perguntou a si próprio até onde estaria implicado o alcaide nos acontecimentos de Tombstone.
— Não tem mais nada que dizer-me, Craig? Ainda está a tempo. Deus queira que não tenha nada a ver com tudo isto, mas se não for assim... seria uma ação inteligente proteger-se contra o que pode vir a acontecer em seu desfavor.
— Terei de fazê-lo pagar os seus insultos e ameaças, Adams.
— Encontrar-me-á em qualquer instante. E Melvin Patton também, da mesma forma que me encontraram os seus pistoleiros.
 Craig mordeu o lábio inferior, apertou os punhos e deu meia volta, desaparecendo sem dizer mais palavra. Ken viu-o afastar-se com estranha expressão no olhar.

Sem comentários:

Enviar um comentário