Nelly Murray estacou e ergueu orgulhosamente a sua linda cabeça para olhar o homem d levita negra, que sorrindo melifluamente, lhe intercetava a passagem.
— Quer fazer o favor de me deixar passar senhor Butte? — perguntou friamente.
O homem não fez nenhum gesto de se afastar.
— Certamente disporá de alguns minutos para Me dedicar, menina Murray — sorriu, olhando de um modo que resultava insultante.
— Sinto muito, mas tenho pressa.
— Se prefere, poderemos falar aqui, mas o assunto é um pouco delicado e seria melhor tratá-lo em privado.
— Muito bem. Nesse caso, minha mãe e eu iremos ao seu escritório esta tarde.
Um relâmpago de ira cintilou nos claros olhos do homem.
— Olha, menina — grunhiu, perdendo o sorriso — acabaste com a minha paciência e vais fazer o que eu te mandar sem mais protestos. Está claro?
Ela ergueu o seu queixo num desafio.
— Já alguém lhe disse que não passa de um inseto repugnante?
— Enquanto segue sonhando, faça o favor de me deixar passar — replicou a rapariga, com desprezo na voz.
— Oh! É mais fácil do que pensas. Não sabes que a tua mãe e tu me devem uma semana de hospedagem? — perguntou o homem, inclinando a cabeça e olhando com ar canalha para a preciosa jovem dos cabelos curtos.
Os sedutores lábios de Nelly abriram-se em forma de «O», tão inconsciente como enlouquecedouramente tentadores, modulando uma surpreendida exclamação que não chegou a formular, mas no mesmo instante apertaram-se em linha recta de um modo que proclamavam expressamente a indignação da sua possuidora.
— Você é um canalha, trapalhão e mentiroso — disse contendo a voz, firmemente cerradas as suas pequenas mãos, como se fosse lutar contra o homem de levita. — Sabe muito bem que a minha mãe lhe pagou dois meses adiantados, há apenas pouco mais de três semanas.
— Está enganada, menina Murray — sorriu o sujeito, cinicamente. — Não só não recebi nenhum adiantamento, como também me devem uma semana, como já disse antes. Claro que se você se mostra amável...
— Cão! — cuspiu Nelly, trémula de indignação. — Se crê que pode apanhar-me, pelo facto de sermos duas mulheres sós, engana-se. E tenha cuidado, porque sei defender-me muito bem.
Butte riu levemente.
— Pensa bem, preciosa. Tudo o que desejes será teu, tão depressa sejas razoável. Caso contrário, na semana próxima, ponho-as na rua, a ti e à tua mãe, sem mais aquilo que levarem em cima. Claro — repetiu o seu risinho trocista — a bagagem será para me compensar do que devem.
Dizendo aquilo voltou-se, encaminhando-se para o seu escritório, por cuja porta desapareceu.
Demasiado enfurecida para saber que dizer ou fazer nos primeiros instantes, a rapariga olhou ao seu redor procurando algum objeto suficientemente manejável e pesado para partir uma cabeça, mas, no vestíbulo deserto, não havia grande coisa que pudesse servir para aquele fim. Talvez o tinteiro da receção, mas o pequeno balcão estava muito afastado, e Butte desapareceu no seu covil sem ser agredido, já que os olhares não matam.
O homenzinho calvo e de óculos que estava atrás do balcão, pareceu repentinamente atacado por uma virulenta febre de atividade, ao notar que a atenção da jovem se concentrava nele pondo-se a rebuscar atentamente no livro de registos.
Não tendo já contra quem descarregar a sua ira, Nelly girou sobre si mesma, esquecendo que se propunha sair, e subiu novamente as escadas para se dirigir ao seu quarto. Abria a porta 'Miando ouviu que a chamavam debilmente.
— «Miss» Nelly -- chamou uma voz muito baixinho.
A criada que as atendia estava quase ao seu lado e aproximava-se silenciosamente, olhando para todos os lados desconfiada.
— Que se passa, an...? — começou, mas a rapariga colocou-lhe apressadamente um dedo nos lábios, interrompendo-a, e ao chegar junto dela, empurrou-a suavemente, fazendo-a entrar no quarto, cuja porta se apressou a fechar.
— Mas que se passa? — perguntou Nelly, surpreendida.
— És tu, Nel? — perguntou do quarto contíguo a mãe da rapariga.
— Sim, mãe.
A senhora Murray apareceu à porta. Era uma mulher de estatura mediana, muito bem conservada, embora o seu formoso rosto tivesse um selo de amargura, apesar do qual e da diferença de idades a parecença entre mãe e filha fosse assombrosa.
— Esqueceste-te de alguma coisa?
— Foi o canalha do dono do hotel que a obrigou a voltar — interveio então a criada
— Como? — perguntou a senhora, surpreendida.
— Esse homem persegue a sua filha já há algum tempo, mas parece que se cansou de esperar e precipita os acontecimentos. — Mas que está a dizer, Fanny?
— A pura verdade, senhora. Ouvi perfeita mente como ameaçava expulsá-las daqui por falta de pagamento, se sua filha não cedesse às suas sujas pretensões. Isso não pode ser. Adiantámos tudo o que resta deste mês e todo o próximo.
— Pediu algum recibo desse pagamento?
— Não. Para quê?
— Pois agora não poderá provar o que diz.
— E que falta faz demonstrar o que seja? Escuta, mãezinha — interveio Nelly, com um gesto cansado. — Butte diz que lhe devemos uma semana, e que se não lhe pagas, nos porá na rua sem a bagagem. Compreendes?
— Não — exclamou a boa mulher, abanando a cabeça. — Não compreendo nem uma só palavra de tudo isso.
— Butte é um canalha — voltou a intervir veemente a rapariga. E acrescentou com amargura: Eu que o diga! Quer conseguir a menina Nelly por qualquer preço, e perante a sua atitude, recorreu a essa suja manobra, valendo-se de que a senhora não lhe pediu nenhum recibo de lhe ter pago adiantadamente.
— Mas que disparate é esse? Falarei com o senhor Butte e não se atreverá a negar que lhe entreguei esse dinheiro. A senhora não o conhece, eu, infelizmente, sim. Não vê que me enganou com promessas até que se cansou de mim? E então, obrigou-me a servi-lo. Compreende? Tem-me aqui humilhada porque a minha mãe está doente, e vale-se da sua influência para me impedir de encontrar trabalho noutro lado. Assim é Butte, esse vilão —murmurou como se falasse consigo própria. —Mas eu hei-de matá-lo! No dia em que falte a minha mãe, mato-o!
Havia tanta paixão contida naquela ameaça, que as duas outras mulheres se entreolharam comovidas.
— Agora pôs os seus olhos de porco na menina — continuou, após uma pausa, — e recorrerá a qualquer canalhice para conseguir os seus propósitos.
— Mas... — começou a senhora Murray, já seriamente preocupada.
— Fujam — interrompeu Fanny. — Vão-se embora daqui agora mesmo.
— Não podemos — murmurou a dama, movendo a cabeça tristemente. — O meu marido virá buscar-nos aqui algum dia, e temos de o esperar.
— Escute, senhora Murray — disse a criada. — Parece não compreender o risco que corre a sua filha.
— Não exagere, Fanny — interveio a interessada. — Já sou uma mulher.
— Sei que não têm dinheiro, porque o ouvi dizer a esse canalha. Que podem fazer sós, sem meios, nem ninguém a quem recorrer? Butte é como uma grande aranha e irá estendendo as suas redes ao vosso redor até que nem sequer se possam mover.
— Mas o que podemos fazer? —perguntou a senhora Murray, já francamente assustada.
— Ir para onde lhes disse.
— Mas para onde? Já sabe em que situação, estamos.
— Tenho algum dinheiro junto e tinha pensado deixar-lho até que pudesse devolver-mo, mas agora ocorre-me uma coisa melhor. A minha mãe vive só, numa casinha, nos arredores. Porque não vão viver com ela? Assim, se alguém aparece à vossa procura, eu saberei e indicarei onde estão.
— É muito boa, Fanny, mas isso seria demasiado incómodo para si.
— Incómodo? Mas não compreendem que essa é a minha vingança? Esse maldito tem-me aqui à força, mas quase me alegrarei se uma vez por outra lhe puder causar algum prejuízo.
Não serviram de nada os protestos e, naquela mesmo noite, as duas mulheres, abandonaram hotel sem que o resto do pessoal desse por isso levando quanto podiam dos seus haveres.
A mãe de Fanny era uma mulherzinha bondosa e limpa, embora delicada de saúde e as duas mulheres simpatizaram imediatamente uma com a outra e, deste modo passaram rapidamente três semanas, ao cabo das quais Fanny se apresentou com um sujeito que tinha estado no hotel perguntando pela família de Murray.
Aquele homem explicou que o rancheiro tinha chegado muito doente a Bunkerville, e em virtude de não poder seguir até Las Vegas, tinha-lhe pedido que as fosse buscar, dando-lhe algum dinheiro. Segundo dizia, tudo estava resolvido e o «Lucky» voltava a estar libertado de dívidas, pelo que prontamente voltaria a ser como antes.
Desgraçadamente, a senhora Murray estava muito constipada e o médico que a visitava esse opôs-se terminantemente a que empreendesse uma viagem naquelas condições.
Então, o mensageiro propôs que a rapariga fosse com ele a cavalo, e assim chegariam num par de jornadas, enquanto a senhora Murray esperaria uns dias até se restabelecer, empreendendo então viagem até Moapa numa diligência, onde ele próprio a iria esperar numa caleche, no caso de que Michael Murray não estivesse ainda em condições de o fazer.
O homem era bastante tosco, mas não parecia má pessoa e Nelly advogou pela sua parte, com tanto entusiasmo, que acabou por convencer a mãe, que cedeu aos seus argumentos.
Deste modo tão simples, caiu a rapariga em poder de Bloody, que a estava esperando nos arredores de Moapa com outros dois companheiros, encerrando-a no rancho que parecia abandonado, embora o edifício se conservasse ainda em boas condições, mas, extremamente sujo e cheio de teias de aranha.
Com um estremecimento recordou a rapariga a descrição que Fanny lhe tinha feito de Butte. Estaria em poder desse abutre? Desesperou-se, pensando a que conduziria tudo aquilo e, deste modo passou uns dias que lhe pareceram intermináveis, angustiada pela sua própria sorte, que a incógnita tornava ainda mais incerta, e pela dos seus.
Com energias dadas pelo próprio desespero, agrediu o foragido que lhe levava a comida, escondendo-se atrás da porta e batendo-lhe com a tripeça, único móvel de que dispunha para se sentar, mas o amplo chapéu com que o homem cobria a cabeça, ou talvez a dureza do seu crânio, tornaram quase inofensiva a agressão.
No entanto, Nelly dispôs de uns momentos que aproveitou fugindo a toda a pressa, embora uma tentativa daquela natureza estivesse irremediavelmente condenada ao fracasso e, dado o alarme, os quatro «pistoleiros» correram atrás dela até a alcançarem.
A rapariga gritou com todas as suas forças, antes que uma áspera manápula tapasse violentamente a sua boca e, então ainda lutou com toda a energia do seu corpo vigoroso e são.
Ninguém acorreu em seu auxílio e foi devolvida à prisão de uma forma muito pouco amável, apesar dos desesperados esforços que fez para o evitar, distribuindo pontapés, dentadas e arranhões em profusão e eficácia dignos de melhor resultado.
— Maldita gata! — rugiu o que a levava, lançando-a ao solo sem nenhuma delicadeza, uma vez chegados ao cubículo que lhe servia de cela. — Por pouco não me arrancava os olhos!
— Deixa-a por minha conta e verás que depressa a domo! — murmurou turvamente o homem que tinha levado com a tripeça.
— Quietos! Não sejam brutos! — interveio Bloody, que se tinha divertido grandemente com o espetáculo, mantendo-se a distância prudente. — Temos que a tratar com todas as contemplações, visto que o cliente não quer a mercadoria estragada.
Riu grosseiramente, mas ninguém fez coro com ele nem lhes pareceu encontrar a observação engraçada.
— Podem-se ir embora, rapazes — continuou. — Eu tomarei conta dela.
Os três sequazes do «gun-man» abandonaram o cubículo resmungando surdamente. Bloody olhou então para a rapariga, ainda ofegante, o peito túrgido subindo e baixando, e os seus olhinhos porcinos cintilaram luxuriosos.
— Porta-te bem, pombinha, ou o imbecil do Donovan ficará à tua espera, embora me custe um punhado de dólares. Bem visto, parece-me que não seria um mau negócio.
Compreendendo as intenções do bruto, Nelly não voltou a tentar a fuga.
De resto, agora já sabia quem era o responsável do que estava ocorrendo e, embora considerando Patrick Donovan um ambicioso sem escrúpulos, estava certa de não ter a recear nada de pessoal, pois o homem estava tão senhor de si próprio, que nunca consideraria necessário recorrer à violência para vencer a resistência de uma mulher.
Certamente queria-a como refém para obter propriedade de «Lucky» e, estando próximo a expirar o prazo para o leilão, tomava precauções para que não lhe escapasse das mãos.
Seria verdade que o seu pai tinha realmente voltado? Esta esperança reconfortou-a, dando-lhe novo ânimo.
O rancho seria o menos, se pudessem voltar a reunir-se todos, sãos e salvos.
Na noite seguinte tiraram-na do seu cubículo e ao sair ao ar livre não pôde evitar um impulso de gritar pedindo auxílio, embora as palavras do «gun-man» lhe tivessem tirado todas as esperanças.
— Vamos, monta, ou terei de te obrigar à força — grunhiu Bloody, mal-humorado pelas observações dos seus companheiros.
Apenas se tinham posto em marcha quando alguém gritou dando o alto. Então, aproveitando--se do aturdimento dos seus raptores, picou esporas, arrancando como uma flecha em busca da liberdade.
Quase no mesmo instante retumbou o estrondo dos disparos, tão depressa intermitentes como continuados, até cessarem após uma rajada crepitante.
Depressa notou que era perseguida e numa curva do caminho refugiou-se entre a espessura, vendo passar o inconfundível vulto de Bloody. Que teria ocorrido para que fosse sozinho atrás dela? E o seu desconhecido defensor?
Indecisa, permaneceu sem saber que partido havia de tomar, pois temia regressar por medo de cair nas mãos dos bandidos e, por outro lado, angustiava-a a possibilidade de que o generoso desconhecido que acorrera em seu auxílio estivesse só e ferido, moribundo, talvez.
Estava já decidida a regressar pelos seus passos, ou a sair do seu esconderijo, quando o rápido galopar de uns cascos que se aproximavam velozmente, a fizeram voltar a ocultar-se.
Quase imediatamente, à luz da lua, pôde ver um cavaleiro que se aproximava veloz como o vento, sobre um corcel de pelagem clara com crinas que pareciam de prata sob os pálidos raios do astro noturno.
Nenhum dos bandidos montava um animal assim, e Nelly compreendeu que estava em frente do seu salvador.
Impulsivamente saiu ao caminho dando um grito de aviso, e assim conhecera o homem mais encantador de que se recordava desde os seus tempos de colegial. Era um rapaz bem parecido, se não bonito, muito melhor que isso, pois tinha um rosto enérgico e nobre, não isento de certa melancolia, que inspirava confiança e resultava sumamente simpático.
Foi algo fulminante que notou perfeitamente, e a sós, no quarto de hotel onde ele a levara, esteve meditando toda a noite até chegar à dolorosa conclusão de que deveria afastar-se sem perda de tempo.
Não tinha direito a permitir que ele lie introduzisse na sua vida, pois tinha lido no atrevido olhar do rapaz que estava resolvido a fazê-lo e Donovan tinha pistoleiros para que o desembaraçassem de todos os estorvos, e se estes não bastavam, podia contratar muitos mais. Por isso, embora lhe custasse amargas lágrimas, fugiu assim que se fez dia, e no caminho estava esperando-a o infernal Bloody.
— Olá, pombinha — sorriu, aparecendo inesperadamente perante ela numa curva do caminho, quando mais abstraída caminhava sumida nos seus dolorosos pensamentos. — Esperava que te acompanhasse esse porco do Anthony Mills e nesse caso teria que ajustar contas com ele, mas parece que te deixou voar sozinha.
Não havia qualquer possibilidade de fuga, pois o bandido escolhera bem o lugar. Uma passagem estreita entre altos escarpados e, por outro lado, o ânimo da rapariga estava predisposto à resignação pois acabava de renunciar ao que podia ter sido, ao que era de facto, apesar do fugaz encontro, o seu primeiro amor.
— Vamos, beleza — continuou o bandido, apoderando-se das rédeas. — Temos que retroceder umas milhas até uma pequena colina com um pequeno bosque onde poderemos esperar pela noite sem que o calor nos incomode. Sabes? De dia é perigoso viajar por estes lugares, pois é fácil ter um mau encontro.
Riu largamente da sua própria graça, estremecendo-lhe todo o, corpo. Nelly não opôs resistência alguma e deixou-se levar em silêncio, ausente na realidade de quanto estava ocorrendo. Que teria pensado ele ao saber da sua fuga?
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