Alan mostrou-se surpreendido perante a excitação e nervosismo que mostrava Bernard.
— Preciso de falar a sós contigo, e com a maior urgência.
O rancheiro, que se divertia ouvindo as frases pitorescas e cheias de graça de Fanny, pediu-lhe licença e saiu com o filho, indo 'fechar-se os dois na sala imediata.
— Bom, que diabo sucedeu para que precises de me falar?
O canalha pôs mais uma vez à prova as suas qualidades de actor:
— Pai... sei que vou dar-te um grande desgosto; daria a minha vida para o evitar, mas... depois de pensar muito, cheguei à conclusão de que devo falar.
— A que vem toda essa retórica? Acaba lá com isso.
— Perdoa que não me dê pressa. Quero que te prepares para sofrer um rude golpe sem que te abale muito o coração.
— Bernard, cheira-me tudo isso a literatura. Farás o favor de me explicar o que há?
— Está bem. Visto que o exiges... trata-se do Ser que é o teu protegido.
— Cá me queria parecer. Que fizeste contra ele?
— Já esperava que reagisses desse modo. Não, pai não. Eu posso ter revoltas, rebeldias, loucuras próprias da minha juventude, mas incapaz de baixezas. Em compensação, Jerry...
— Proíbo-te que o ofendas! Mede bem o que dizes, Bernard. Uma calúnia que tu lhe lançasses, depois de tudo o que tem sucedido, seria fatal para ti.
— Eu não venho aqui para o caluniar, pai. Já há muito que eu sabia que Jerry, abusando da tua confiança, era o maior inimigo dos teus interesses...
— Isso...
— Deixa-me acabar. Ele nunca me foi simpático ao saber disto, resolvi vir até ao rancho para observar com os meus próprios olhos. Entretanto, com a sua autoridade sem limites, ele fez tudo para que tu me desprezasses, enquanto ele se elevava mais e mais. Mas que me importavam as humilhações se eu estava certo de que breve viria o remate final?
Nervoso, fora de si, o rancheiro deu um soco mesa:
— Acabas ou corro-te daqui para fora?
— Sim, acabo. Suponho que sabes quanto dinheiro guardavas no cofre? Bem, pois... vê o que lá há e verificarás que faltam alguns milhares.
Alan, a pontos de cair redondo no chão, deu uns em direção ao filho, o qual recuou medroso:
— Que dizes, canalha?
— Pai, por Deus, não te exaltes e ouve as minhas indicações!
Mas...!
— Continuarei a falar logo que comproves o que acabo de afirmar.
Ainda duvidou uns momentos. Mas por fim, meio tonto e angustiado, dirigiu-se ao escritório e abriu o cofre.
Encontrou apenas lá dentro alguns papéis. Todo o dinheiro tinha desaparecido. Atónito, não querendo acreditar no que via e ouvira; ficou, de olhos esbugalhados, olhando o filho com firmeza.
— Jerry foi o gatuno, pai. Deus sabe quantas vezes te não fez o mesmo já!
O velho respirava com dificuldade. A mão direita sobre o coração, repetia abatido, completamente arrasado:
—Não pode ser... não pode ser...
— A verdade que te cobre os olhos cairá hoje. Revista o teu afilhado, logo que ele chegue. Não lhe dês tempo para nada. Verás se eu tenho ou não tenho razão. Assinalei todas as notas com um triângulo pequeno porque já desconfiava das suas intenções. O roubo deu-se hoje.
— Mas isso... isso é monstruoso, insensato!
— Isto é pura verdade!
Alan desabotoou o botão da camisa para poder respirar melhor.
—Não acredito! Não pode ser! Tudo isso é uma infâmia, urna armadilha!
— Pai, não me ofendas quando trato de te salvar!
— Salvar-me!
— Sim! É esse o desejo que me leva a falar-te. Quando estiveres mais sereno, quando tiveres verificado a verdade das minhas afirmações, explicar-te-ei como descobri tudo. Por agora, nada mais acrescento. Faz o que te disse... ou fecha ainda mais os olhos, se acaso tens empenho em continuar cego.
Saiu do escritório, felicitando-se intimamente. A coisa ia bem. Ganhava bem a corrida que fizera para chegar antes de Jerry. Alan deixou-se cair numa cadeira. Não; aquilo não podia ser; não podia ser! Jerry, o rapaz a quem queria., mais do que a seu filho, um ladrão miserável? Impossível! Ouviu o trotar dum cavalo que se detinha depois no terreiro e logo a seguir a voz de Grunder falando aos vaqueiros que ainda se não haviam recolhido.
— Olá, padrinho. Supunha-o já deitado.
— É que... sucedeu... sucedeu qualquer coisa de... relativamente grave.
— Não me assuste. De que se trata?
— Roubaram-me.
— O quê? Não me disseram nada os rapazes que lá estão fora. Muitas cabeças? Quais?
—Não; verás... não se trata de gado, mas sim de dinheiro. O cofre... compreendes?... Guardava lá oito mil dólares e tal... e não me deixaram nem um.
Jerry mordeu os lábios. Que pouca sorte! Ele que projetava pôr lá outra vez o dinheiro...
— Deixa-me espantado, padrinho. Quem teria sido? De Stanley Kasbert não, se pode desconfiar...
— Claro que não! Tenho-o ao meu serviço há muitos anos e já tem tido sob a sua guarda quantidades infinitamente superiores a esta. Não; Stanley não foi. De quem achas que se possa desconfiar?
A porta abriu-se violentamente dando passagem a Bernard que, desfigurado, rugiu:
— Com essas contemplações não chegarás a nada de prático, pai! Revista Jerry! Tenho o revólver a postos se ele se mexer! Encontrarás nos seus bolsos o produto do roubo!
Empunhava o revólver, pronto para disparar. Grunder ficou estupefacto.
— O meu filho não sabe o que diz, Jerry, — disse o velho, trémulo, ansiando por ver destruída a acusação terrível —. Vamos, defende-te, Jerry, mostra-lhe que está enganado.
Bernard riu sarcástico:
— Demonstrá-lo! Como pode fazê-lo se tem em cima, de si o corpo do delito? — gritou estrondoso —: Aqui vaqueiros; aqui, toda a gente; vão todos presenciar, como cai a máscara dum farsante, dum malfeitor!
Sereno, embora admirado com a canalhice e o sangue-frio do seu inimigo, Grunder cravou nele as suas pupilas:
— Sabia-te capaz de grandes infâmias, mas min, imaginei que chegasses a esta. Superas em perversidade tudo o que se pode conceber!
A sala ia-se enchendo de gente. Entre os vaqueiros que entravam, chegaram também Nell e a mãe, atraídas como os outros, pelos gritos de Bernard.
— Fala, Jerry! — disse Alan.
— Falar!... Defender-me!... Desde que você me pede estas coisas é porque chegou a duvidar de mir. Que pena, padrinho, que pena!
A angústia do velho crescia:
— Não, rapaz; não duvido! O que eu desejo é que demonstres a meu filho que está equivocado e que todos se convençam do mesmo. — Voltou-se para Bernard --, Guarda esse revólver!
— Não, não me fio!
— Obedece ou faço-te sair daqui!
O canalha fez o que lhe mandavam, se bem que não deixasse de manter a mão direita agarrada ao gatilho.
Calmamente, Grunder tirou de dentro dos bolsos o dinheiro, pondo-o sobre a mesa.
— Vês pai, vês?
Alan estava boquiaberto, sem ânimo para dizer uma só palavra que fosse.
— Aí está o dinheiro, padrinho; examine-o e verificará que, com efeito, está marcado… embora não fosse seu filho quem o marcou. «Alguém» o roubou do cofre e eu, secundado pelo «sheriff», recuperei-o há pouco. Queria evitar-lhe este mau bocado e dispunha-me a depositá-lo onde estava.
Bernard interrompeu-o, lançando estrepitosa gargalhada:
— Que patranha tão absurda! Suponho, pai, que não precisarás de Mais pormenores para veres que tenho razão. Ouvi todos: Jerry Grunder, o capataz do rancho «Branco», «o homem honrado e honesto, sempre disposto ao sacrifício para defender os nossos interesses» é um miserável ladrão que acabo de descobrir.
Ouviram-se rumores de assombro e de protesto. Aquilo era absurdo e terrível. Ninguém acreditava nem tomava em consideração o que dizia Bernard. Alan limpava o suor que lhe saía por todos os poros. A voz de Nell, musical embora nervosa fez-se ouvir:
—Não posso acreditar no que dizes, Bernard! Jerry é incapaz de tal infâmia!
O acusador olhou-a com assombro e ira:
— Que sabes tu?
— O bastante para ter a certeza de que este homem está inocente.
— Obrigado, Nell — murmurou o capataz, dominando a emoção que sentia —. E acrescentou, encarando, Alan: — Padrinho, a sua atitude cheia de dúvidas, desgosta-me profundamente. –
— Não, não; eu não duvido de ti. Dize o que quer, que seja e acreditar-te-ei.
—Nada tenho a acrescentar ao que disse já. Disse, a verdade.
Fez menção de sair. Bernard tolheu-lhe os movimentos, exclamando:
—Não te irás daqui! Os ladrões devem ir para cadeia ou para a forca!
Stanley Kasbert, que acudira também ali, adiantou-se dizendo:
— Basta! Não posso permitir que fique manchada a honra deste homem a quem tu, Bernard, deverias beijar os pés se te restasse um pouco de nobreza e de gratidão!
Todos os olhos se voltaram para o velho administrador. O odioso farsante estava fora de si.
— Cale-se, Kasbert! — suplicou Grunder.
—Não! Não consinto que a monstruosa atitude daquele homem continue. O fim que tu querias evitar, tu bom Jerry, já não tem remédio. Teu padrinho sofre de igual modo e talvez mais ainda se se convencer de que és tu o ladrão. -- Avançou uns passos até Alan —: Dou-lhe a minha palavra de honra que Grunder é inocente. O ladrão é...
Soou um tiro. Mas a bala foi cravar-se no tecto. Jerry, de um, salto acabara de atirar-se sobre Bernard, desviando a trajetória da bala com que este enlouquecido, quis selar para sempre os lábios do administrador. Lutaram. A força dó capataz impôs-se imediatamente e o inimigo ficou reduzido à impotência. Sereno, apesar do sobressalto que acabara de sofrer, Stanley acrescentou:
— O ladrão é o seu filho, senhor Batterby! Empregando depois o mínimo de palavras, contou como tudo se passara.
— Mentes, cão tinhoso! — rugiu Bernard —. Também tu és cúmplice dessa gentalha!
Dolorosamente irónico, quase sem poder falar, Alan sussurrou:
— Está visto que aqui todos são maus... menos tu, que és um livrinho de virtudes!
Kasbert tinha a certeza de que já ninguém duvidava de que o gatuno era Bernard, mas ainda quis assentar melhor as suas acusações:
— Revistem Bernard! No cofre havia mais dinheiro (lo que o recuperado por Grunder. É muito possível que o ladrão o conserve ainda em seu poder!
Jerry, que mantinha impossibilitado Bernard, não se moveu; mas Joe e Milce, os dois vaqueiros que mais detestavam o filho do patrão, rebuscaram-lhe os bolsos: e não tardaram a encontrar mais de dois mil dólares O administrador recolheu-os.
— Efetivamente, cá estão as marcas que Grunder e eu lhes fizemos. Pode vê-las quem o desejar.
Aproximaram-se vários. Marcus Whitted esfregava as mãos de contente. A sua satisfação era grande. Alan, cambaleando, deu uns passos para Stanley, mas faltaram-lhe as forças; levou a mão ao peito e teria caído redondo no chão se Grunder não o tivesse agarrado.
— Padrinho!
— Perdoa-me... Jerry... A verdade é que... du… videi de... ti. Agora...
Não pôde continuar. Os seus lábios não se moveram mais.
— Avisem o médico! — implorou Grunder enquanto conduzia nos braços o corpo do ancião.
Dois vaqueiros correram para cumprir a ordem. Mas Joe chegou, profundamente abalado:
— Não chamem. O patrão acaba de falecer.
Dentro, Jerry chorava talvez pela primeira vez, perante o cadáver daquele que fora tudo para ele na vida. Nell e Fanny, profundamente impressionadas, contemplavam o quadro de dor, com as lágrimas nos olhos.
Kasbert mordia os lábios para conter os soluços; os vaqueiros tinham-se ajoelhado e baixaram a cabeça.
Com expressão de idiota, Bernard observava tudo dum canto da sala. De repente reagiu:
— Fora! Fora daqui! Quero estar só com o meu pai!
Olharam-no com rancor, de todos os lados. Jerry ergueu-se e disse solene:
— Saiamos. Veremos se, na verdade, é capaz de ficar a sós com a sua vítima. Porque foste tu, espírito do Inferno, quem assassinou o melhor de todos os homens!
Abandonaram lentamente o quarto. Bernard permaneceu imóvel, de olhos cravados no rosto contraído do que fora seu pai. De repente teve uma alucinação horrível: julgou ver moverem-se os lábios do cadáver e ouvi-lo exclamar:
—Maldito sejas!
Lançou um grito estridente e saiu correndo.
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