O cobrador tinha prosseguido nas suas visitas aos diversos ranchos da comarca, avalizados e garantidos pela presença de Bragg e do seu capataz, Sterling.
O resultado obtido foi sempre o mesmo, fosse qual fosse o aspeto por que eles se apresentassem. Os proprietários dos ranchos pagaram com a maior pontualidade as verbas que lhes eram exigidas, sem qualquer objeção, entendendo-se diretamente com Murphy e sem ligarem importância ao velho Bragg.
— Senhor Murphy disse Bragg — como só lhe resta cobrar o imposto sobre as minhas reses, esperá-lo-ei esta mesma tarde.
O jovem cobrador sorriu-se como seu habitual modo cínico e repulsivo.
— Tem sido muito amável connosco, senhor Bragg, e por isso desejaria mostrar-lhe todo o meu reconhecimento perdoando-lhe o pagamento do seu imposto.
—De maneira alguma. Se assim procedi, foi apenas pelo respeito devido à lei. Seria indigno deixar de cumprir as minhas obrigações, depois de ter contribuído para que os outros cumprissem as suas.
E, sem acrescentar mais palavra, fez recuar o cavalo para tomar o caminho que conduzia à sua herdade. Sterling acompanhava-o em silêncio. Na realidade todas as cavalgadas feitas até ali foram praticamente silenciosas, silêncio que apenas era quebrado pelas conversas sórdidas dos ajudantes do cobrador.
Murphy aceitou a ajuda e a companhia do rancheiro logo desde o início, como se fosse a coisa mais natural deste mundo, e sem se dar ao trabalho de lhe perguntar a razão por que decidira constituir-se no seu mais prestante colaborador. Porque, afinal, o velho poucas palavras tinha trocado consigo.
Bragg moderou a andadura do cavalo e Sterling aproveitou a ocasião para lhe dirigir a palavra:
— Que pensa fazer agora, senhor Bragg? Não quer dizer a esse homem que o senhor é pai dele?
O velho rancheiro demorou um pouco a responder e, quando se resolveu a fazê-lo, nem sequer se deu ao trabalho de virar a cara.
— Não sei. A verdade é que não me interessa. Queria que ele desaparecesse da minha vista de uma vez para sempre. Esperemos que se proporcione uma oportunidade. O que eu gostaria era de saber da mãe dele... daquela adorada Ana...
Parou o seu cavalo bruscamente e, virando-se para Sterling, disse:
— Mudei de parecer, meu rapaz: quero que regresses à povoação e que me tragas esse homem... o meu filho...
Deu a sensação de que aquela palavra com que acabara de designar Murphy foi empregue apenas para ver o efeito que em si próprio fazia aquele nome que ele nunca tinha proferido no seu sentido peculiar. Devia ter-lhe soado mal ao ouvido, porque retificou:
— Quero que me tragas esse Murphy..., mas só ele. Os ajudantes não devem acompanhá-lo. Compreendes?
E, ante o gesto afirmativo do jovem, prosseguiu:
— Vou dizer-te qual é o meu plano: mando afastar todos os meus trabalhadores e faço o mesmo às criadas. Quero ficar sozinho com ele; bem sabes que ninguém, além de ti, conhece a minha vergonha de ser pai de um cobarde e de um assassino.
Sterling contemplava-o com uma pena infinita. E essa pena ainda mais se avolumou quando reparou nas costas encurvadas do ancião que ia já um pouco distante.
Sucedeu então qualquer coisa de muito estranho: pelas faces, do mancebo deslizou uma lágrima que ele deixou correr livremente, não tentando dissimulá-la. O isolamento em que naquele momento se encontrava permitiu-lhe que a sua natural sinceridade viesse ao de cima deixando expandir livremente as suas emoções.
Murphy, durante o caminho que os conduzia ao rancho de Bragg, tentara por várias vezes entabular conversa com o capataz que o acompanhava, não conseguindo outra coisa além de um olhar glacial, não obtendo também qualquer resposta às suas capciosas perguntas.
Quando atingiram as proximidades da vivenda, sentiram-se invadir por uma sensação de abandono e de desolação. Para Sterling aquele silêncio não constituía qualquer surpresa; para Murphy, porém, o silêncio que envolvia o enorme edifício do rancho fazia-lhe uma certa confusão, pelo que comentou em voz alta:
— Coisa estranha esta! Visitei uma porção de ranchos nestes últimos dias e em nenhum deles havia um tal silêncio que faz lembrar o cemitério. Muito estranho... muito estranho...
E como tivesse parado a sua montada, o seu companheiro não teve outro remédio se não esclarecer:
— Normalmente há aqui um enorme movimento, tanto mais que se trata de um dos maiores e mais prósperos ranchos da região, mas hoje, como o senhor Bragg deseja falar tranquilamente com o senhor Murphy, mandou retirar para longe todos os trabalhadores, criados e criadas.
O cobrador teve um sorriso enigmático.
— Compreendo — disse, e continuou a marcha.
Sterling dava tratos à imaginação perguntando a si própria que diabo teria o homem compreendido. Dar-se-ia o caso de que ele soubesse os laços que o ligavam ao velho rancheiro?
Chegaram à entrada da vivenda e apearam-se. Dir-se-ia que Murphy ficara subitamente receoso. Fosse como fosse, deixou a montada e encaminhou-se para o interior acompanhado de Sterling. Atravessaram o salão e dirigiram-se para uma porta existente a todo o fundo. Sterling bateu à porta e, obtida autorização, abriu um dos batentes e deu passagem ao outro.
Tratava-se de uma sala ampla, uma espécie de escritório que servia também de biblioteca, a julgar pelos diversos volumes que se alinhavam na rústica estante.
Sentado a uma mesa de aspeto bastante pesado, encontrava-se o velho Bragg que se apressou a levantar-se quando os recém-chegados entraram.
— Obrigado, Sterling, não duvido de que foste diligente. Agora peço-te que te retires... olha, podes ir visitar a Lucília se isso te interessa; não devo precisar de ti durante todo o resto do dia.
O capataz saiu sem proferir palavra, ficando os dois homens em frente um do outro. O rancheiro ofereceu ao forasteiro a cadeira em que ele próprio se sentava, indo Bragg ocupar um cadeirão que se encontrava por detrás da secretária.
Nem um simples cumprimento se tinha trocado entre os dois e o velho, grandemente excitado, não sabia por onde havia de começar. O outro, pelo seu lado, encontrava-se absolutamente tranquilo, fitando os seus olhos pardos na face avermelhada do ancião, com um sorriso burlesco nos lábios. Onde tinha ele visto já aqueles olhos? Não se pareciam em coisa alguma com os de Ana...
— Quer fumar, amigo? — perguntou Bragg, oferecendo ao visitante uma ampla caixa de charutos, tendo este retirado um que acendeu com todos os seus vagares. — Finalmente terminou já a sua missão, senhor Murphy. Que pensa fazer agora?
O jovem contemplou distraidamente o seu charuto, apreciando o fumo que se evolava para o espaço.
— Tenho uma casa de residência em Wyoming, onde minha mãe aguarda o meu regresso. Devo passar ali uma temporada com ela.
O velho passou um momento angustioso. Quando retomou a palavra, a sua voz era insegura:
— Ah! O senhor vive com a sua mãe?... E sua mãe como se chama?
— Ana Murphy. Em que é que isso poderá interessá-lo?
Pelo rosto do Bragg subiu uma onda de sangue que o deixou da cor da púrpura, mas, instantes depois, a viva vermelhidão que o assaltara deu lugar a uma intensa palidez.
—O apelido de sua mãe surpreendeu-me, sabe? Durante a minha juventude vivi em Prescott e conheci uma mulher com esse nome. Não deve passar de mera coincidência. E seu pai? Como se chama seu pai?
Esta pergunta pareceu ter deixado o jovem um tanto embaraçado, respondendo um minuto depois:
— Como o senhor Bragg foi muito bom para mim, vou ser-lhe sincero: eu não conheci meu pai: o apelido que uso é o de meu avô. Esta revelação foi de efeitos surpreendentes para o velho.
Quem o visse iria jurar que acabara de adoecer repentinamente. As mãos tremiam-lhe. Apoderou-se de uma pequena chave que repousava sobre a mesa, e foi ela que lhe deu o pretexto para se livrar de embaraços naquele momento.
Afastou-se da mesa com passos inseguros e encaminhou-se para junto de uma arca que se encontrava a cerca de meio metro de distância da mesa a que ambos se sentavam. Com voz débil e hesitante, acabou por dizer:
— Bem, parece que chegou a altura de liquidar o meu imposto. Suponho que são catorze mil dólares.
Tinha-se ajoelhado junto da arca, cuja tampa abriu com a chave de que pouco antes se apoderara e começou a separar vários maços de notas do banco que se amontoavam no interior.
Quando se dispunha a erguer-se, apercebeu-se de que Murphy se encontrava atrás de si, debruçado sobre a arca e examinando cuidadosamente o seu contendo, tendo nos olhos uma expressão que lhe não agradou.
— Quanto dinheiro guarda o senhor nesse móvel? — perguntou o visitante.
— Talvez uns cinquenta e seis mil dólares, ou, talvez um pouco mais.
Uma das mãos de Murphy apoiou-se no ombro de Bragg, impedindo-o assim de se pôr em pé.
— O senhor não passa de um velho tonto, senhor Bragg — disse vagarosamente o forasteiro. — Cinquenta mil dólares... sozinhos, eu e o senhor... o caminho livre para a fuga. Não devia ter feito uma coisa destas. A tentação é muito grande e eu, pobre de mim, tão fraco de ânimo, não poderei resistir.
O cobrador expressava-se num tom de voz que não dava a perceber o terrível significado das suas palavras, falava quase com meiguice. Por isso o ancião as não compreendeu ou recusou-se a compreendê-las.
— Que disseste, meu rapaz?
A mão de Murphy passou rapidamente do ombro para os cabelos encanecidos do ancião, puxando-o violentamente para trás, enquanto a outra mão sacava de uma algibeira posterior um refulgente estilete que manteve suspenso sobre a sua vítima.
— Não, por Deus, meu filho!... Tu não podes matar teu pai!...
Uma gargalhada feroz e estranha, saída do esquelético peito do homem, foi a resposta à observação patética de Bragg. O seu riso, porém, não se extinguiu voluntariamente; uma bala certeira arrastou consigo, tanto o riso como o punhal.
Aquele que esteve à beira do parricídio ergueu-se, largando os cabelos do velho para ver quem fora o autor de tão intempestiva intervenção: Sterling que, transpondo a porta de entrada, se dirigia de arma aperrada para o forasteiro. Este procurou levar a mão ao revólver que momentos antes desprezara por ser demasiado ruidoso, mas uma segunda detonação estendeu-o ao comprido no meio do pavimento.
Bragg, com um rugido de fera, precipitou-se para o corpo do cobrador cuja eterna cara de cadáver pouco teve de variar para passar, como passou, da vida para a morte. O velho olhou para Sterling com olhos mortiços e ameaçou-o com o punho, enquanto gritava agarrado a uma das mãos de Murphy:
— Maldito sejas! Mataste meu filho! E tu bem o sabias. Era um assassino e um ladrão... até quase um parricida; mas era meu filho!
O capataz avançou em passos precipitados e agarrou pelos ombros o pobre velho que continuava com as suas lamúrias. Sacudiu-o com a maior violência, obrigando-o a abandonar o cadáver a que se abraçava.
— Mentira! — gritou. — Esse homem nunca foi seu filho!... O seu verdadeiro filho sou eu! Está ouvindo? Chamo-me George Bragg. Tenho o mesmo nome e o mesmo apelido de meu pai e sou filho de Ana Murphy.
***
Mike Taylor acabou de ler a minuciosa descrição que se continha nos três papéis amarelecidos que Bragg lhe estendera bem como a documentação comprovativa da identidade de Sterling, e colocou-os sobre a mesa, perto da qual se encontravam sob o alpendre e enxugou uma lágrima furtiva que persistia em deslizar-lhe pela face.
— Estamos velhos, George — comentou. — Emocionou-me profundamente a leitura da mensagem de tua mulher que só agora, ao cabo de tanto tempo, chegou ao teu conhecimento por intermédio de teu filho, Sterling. Perdão, queria dizer George, mas não sei se chegarei a habituar-me a tratá-lo assim. O grandíssimo patife! Andar todos estes anos junto de nós e não revelar nunca a verdade!
— A nobreza do seu coração impedia-o de falar; ele sabia que eu o apreciava muito como capataz, mas não sabia qual seria a minha reação se me dissesse que era meu filho. Davis, um dos irmãos de Ana, também soube que a irmã não tinha morrido e que mais tarde teve um filho. Escreveu aquela carta, imitando a letra da irmã. Inventou a personalidade do cobrador de impostos, para extorquir dinheiro aos fazendeiros, bem como falsificou a pseudo documentação oficial. Quando ele viu que eu tinha caído na grosseira tramoia que me preparou aquele javardo do Davis, enviando o seu próprio filho muito bem ensaiado para se fazer passar aos meus olhos como se fosse realmente meu, e que eu não só o não repudiei mas até o auxiliei, lamentando que em vez de um cobarde não fosse um homem honrado e digno, decidiu-se a contar-me toda a verdade o que não fez antes para que se não pensasse que a sua presença se relacionava apenas com a herança e não com a ternura que sentia por mim.
Fez-se um pequeno silêncio, quebrado por Bragg pouco depois:
— Talvez me tivesse sido agradável assistir à montaria que fizeram aos ajudantes do tal falso cobrador — disse ele com entusiasmo. — Que tal? foi emocionante?
—Já...! — disse Mike a rir. — Havias de ver como eles corriam que até pareciam ratos. O que mais lamentei foi que eles se não deixassem apanhar vivos: ser-me-ia muito agradável vê-los baloiçar na ponta de uma corda.
— Minha pobre Ana! Quanto deve ter trabalhado e sofrido para fazer do nosso George um homem a valer. Uma coisa que muito me agrada saber é que ela não voltasse a pôr os pés em casa da família... Hão de sentir o remorso correr-lhes o resto da existência, em paga da ação miserável que nos fizeram... A pobre, soube-o agora, morreu já há anos, mas, embora sabendo onde eu estava, nunca se quis aproximar de mim, com receio de que os irmãos procurassem de novo exercer sobre mim qualquer vingança — disse Bragg, que pareceu não ouvir as palavras do outro.
Mike levantou-se, obrigando Bragg a imitá-lo. Dando-lhe pancadinhas amigas nas costas foi-se encaminhando para a varanda do alpendre onde ambas se debruçaram. E para arrancar o seu amigo às tristes ideias do «passado», mostrou-lhe coisas alegres do «presente» que pressagiavam um feliz «futuro»: um casal de jovens inundados de luar que, uns trinta metros adiante, confundindo-se quase com a sombra do poço se beijavam apaixonadamente. testemunha — riu-se alegremente o velho Mike.
— O teu filho beijou a minha neta. É imprescindível realizar o casamento...
FIM
ESTE LIVR O É TRANSPORTADO PARA TODO O PAIS NOS COMBOIOS DA
CP
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