sexta-feira, 17 de setembro de 2021

BIS020.07 Passeio pelos campos que anuncia a paixão

 7. Passeio pelos campos que anuncia a paixão 

Grunder aproveitou a primeira oportunidade para falar com o administrador: 

— Amigo Kasbert, ou eu me engano muito ou o que temíamos vai realizar-se. 

—Referes-te ao roubo?... 

— Exatamente. O nosso homem está em graves apuros e só os pode resolver com dinheiro. 

— Está tudo preparado como me aconselhaste. 

—E você mostre-se sempre confiante. Veremos! 

— Deus queira que não haja nada! 

— Também assim o desejo. 

Separaram-se sem mais comentários. Naquela mesma noite, Grunder distraía-se um pouco cantando e tocando a sua guitarra, quando ouviu perto de si uma voz dizer quase em murmúrio: 

— Olá, Jerry. Levantou-se o rapaz surpreendido, vendo a deliciosa figura de Nell. 

— Você...? 

— Não tinha sono, ouvi-o cantar e lembrei-me de que talvez gostasse de me pedir desculpa pelo que sucedeu esta tarde. 

—Pedir-lhe desculpa? 

— Sim... Ou acha que é bonito tratar assim uma rapariga? Diga-me primeiro: acha bonita a maneira como, me tratou? 

— Bem... reconheço que me excedi em violência. 

— Comece, então, você por me pedir perdão. 

— Que rancorosa! 

— Gosto das coisas claras! 

— Está bem. Desculpe-me. 

— Muito bem. 

— Assim é que é. Isto veio colocá-la outra vez a grande altura na minha consideração. Agora, não só lhe peço que me perdoe, como sob a minha palavra de honra lhe digo que, ao bater-lhe, senti que me doía isto que trazemos aqui do lado esquerdo. 

— O coração. 

— Não queria chamar-lhe assim, mas já que você o faz... Sim; o coração. Nunca senti coisa igual e chamei, a Mim próprio cobarde. 

— Jerry! 

— Mas não se aflija. Se você repetisse a graça, faria o mesmo. Sabemos bem que eu não passo dum animal. 

— Os animais não têm coração. Quem lhe disse? Quero eu dizer, não sentem, não sabem ou não podem sentir. 

—Está enganada. Há-os infinitamente mais sensíveis e nobres que muitos racionais. 

— Talvez. De qualquer maneira tenho também que pedir-lhe desculpa por o ter chamado assim. 

— Ena! Parece que você vem decidida a um acto de contrição e arrependimento absoluto. A que se deve isso? 

— Não sei. Pensei muitas coisas, muitas., muitas e por fim, ao ouvir a sua guitarra... 

— A música exerce grande influência nas pessoas boas e você é uma delas. Acaba de o demonstrar. 

— Obrigada. Gostaria de dar um passeio pelos campos... sem medo dos cães... e sem que ninguém se ria de mim... Está disposto a acompanhar-me? 

— Vamos. 

Durante largos minutos passearam envolvidos naquela beleza estranha e indefinível e sob um luar de sonho. Grunder começou a falar sobre os mais variados assuntos; falou da vida dos campos, dos espetáculos ora sublimes ora monstruosos que a Natureza capricha em nos apresentar, falou da psicologia especial dos vaqueiros, destacando-se a sua valentia e simplicidade... Nell ouvia-o subjugada, incapaz de o interromper, presa daquela suavidade e misto de poesia e de sonho que se desprendia das suas palavras. 

O passeio durou bastante tempo. Quando voltaram, o rosto de Nell animava-se dum novo fulgor que fazia, realçar ainda mais o encanto dos seus olhos. 

— Adeus, Jerry. 

— Adeus, minha senhora. 

— Porque não me chama pelo meu nome? 

— Se o desejar... 

— Pois claro. O senhor Batterby, pai, considera-o família e... eu vou pertencer também a ela. 

— Lembre-se sempre de que o senhor Batterby filho tem a meu respeito ideias bem diferentes... 

— Ora! ... Não se preocupe. Irá cedendo pouco a pouco. E se não ceder, pior para ele. 

— Que quer dizer? 

— Simplesmente isto: se continua teimoso não vira nunca a beneficiar da sua amizade e... a sua amizade é algo de sublime que não se encontra com facilidade ao cimo da terra. 

— Obrigado. 

Despediram-se por fim com um aperto de mão. Grunder ficou pensativo. A atitude de Nell parecia--lhe muito estranha. Sentia-se feliz enquanto a teve ao seu lado, mas... tudo aquilo seria natural? Teria ela nobreza suficiente para tão inesperada reação? E... se a movia apenas um sentimento egoísta, agindo daquele modo para favorecer os planos de Bernard? 

Estremeceu angustiado e não quis pensar mais no assunto. Era-lhe doloroso que fosse verdadeiro, o seu pensamento. Mas... o desenrolar dos factos é que poderia dizer da verdade que existia naquela ideia súbita que lhe aguçara o espírito. 

Entretanto, Nell entrara no quarto de sua mãe e acordava-a com beijos. A senhora estava realmente cómica com a cabeça cheia de papelotes. Levantou-se assustada, olhou a filha e perguntou: 

— Que sucedeu? 

— Estive com ele, mãe; passeámos juntos pelos campos. 

— Mas... quem é «ele» e porque vieste interromper o meu rico sono a estas horas? 

— Não adivinhas, mãezinha? «Ele» é Jerry. 

— Ah! 

— Não pude resistir. Não tinha sono, ouvi a guitarra, a sua voz e... bom, foi como se qualquer coisa me arrastasse. Acabaram-se os rancores e as antipatias; pedimos desculpa um ao outro e depois passeámos os dois, conversando como bons amigos. 

— Mau, mau. Quando isso sucede— é porque estás enamorada. 

— E estou-o... 

— Oh, oh! Temível! Eu nunca devia ter dado filhos ao mundo! Já uma vez te disse e repito-o agora. 

—Mãezinha, se isto que sinto é loucura, bendita seja porque é loucura de amor! 

— A bofetada! Foi a bofetada! 

— Cala-te, mãezinha querida, não me desgostes. Vim acordar-te porque me era impossível dominar tão grande emoção. Necessitava desabafar e quem melhor do que tu estaria indicada? 

— Mas... e Bernard? 

—É verdade, existe Bernard. Mas que culpa tenho eu de que ele exista? 

— Pensa minha filha que ele vai ficar rico, muito rico... 

— Jerry já o é também. 

— Que me dizes? 

— É rico em dignidade, simpatia, carácter... desprezo pelas ninharias e mesquinhices... Como canta bem.!. E que olhar!... 

—Mas com isso não se come nem se compram vestidos. 

—Não seja materialona, mãe! 

—Não sou; eu vivo mais do que ninguém do sonho e da fantasia! Mas por desgraça minha, está a meu cargo pôr a mesa todos os dias, fazer contas e mais contas para que os poucos dólares que nos deixou teu pai não se acabem de repente... 

— Sim.... bem... mas isso agora não importa. 

— Importa, sim! Olha, Nell: eu, a semilouca, vejo-me na necessidade de dar conselhos a todos: Bernard é o teu noivo e deves ter sempre isso em mente. Gostaria que as coisas mudassem e que Joe... digo, Jerry fosse o filho de Alan; mas como isso não pode suceder, deixa-te de fantasias e segue o caminho recto. Pensa nos tormentos que nós Passamos de cada vez que é preciso mudar as «toilettes», pagar ao senhorio ou... 

— Basta, mãe, não digas mais nada. 

— Isso digo-te eu, basta. Basta de faltas e de aflições. Vai dormir e deixa-me em paz... Preciso também de dormir, se é o que posso fazer em meio de tantos papelotes, para amanhã estar bonita. Dorme, filha e espanta • essas borboletas que tens na cabecita. 

Meteu-se na cama dando a conversa por terminada. Nell murmurou ainda: 

— Temos que ir pensando em regressar a San Diego. 

Fanny levantou-se outra vez: 

— Que disparate é esse? 

— Nenhum. Nunca senti por Bernard o verdadeiro amor. Casava-me com ele porque não estava enamorada de ninguém. Agora que sinto esta paixão dentro do peito é que compreendo até que ponto era impossível ser esposa daquele homem. 

— Nell, por favor desce à terra. 

— Na terra estou eu, e nesta terra te digo que para evitar piores males, seria bom que nos, afastássemos daqui.

— Nem penses nisso! Só o bem que me fazem à saúde estes ares!... E o bronzeado que me dá à pele este sol dos campos?! 

A rapariga, sem responder, dirigiu-se lentamente para a porta. 

— Vais-te embora sem me dares um beijo?

 Voltou-se, inclinou-se sobre Fanny que, olhando-a fixamente, acrescentou: 

— Faremos o que tu queres, pequena; não faças caso das minhas palavras. Se resolveste acabar com Bernard, acaba; se for preciso passar fome, passaremos; mas... não te precipites. Embora o amor seja uma grande coisa, tudo o mais é preciso também. Compara, pesa e resolve. 

Voltou a beijá-la e Nell dirigiu-se então ao seu quarto, com o espírito atormentado por um turbilhão de pensamentos e contradições, que lhe tiraram por completo o sono. 

Só muito tarde conseguiu adormecer. O mesmo sucedeu a Grunder. Nada o perturbara tanto como aquele passeio com Nell, sob a bênção duma lua romântica e sonhadora. Aquela mulher começava a atormentar-lhe a alma e o coração e em vão se esforçava por afastá-la dos seus pensamentos. 


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