4. Jogar com um pau de dois bicos
Alan convencera-se de que tinha acertado ao colocar o filho ao lado de Stanley. Via-o trabalhar com afinco, como se lhe agradasse aquele emprego. O administrador não se queixava e antes pelo contrário fazia-lhe os maiores elogios. Todos estavam satisfeitos.
Todos... menos o próprio interessado.
Alan sentia-se melhor da sua lesão cardíaca; Grunder entregava-se às suas atividades com o entusiasmo de sempre; os vaqueiros, não tendo que suportar aquele rapaz embirrante, andavam contentes, cantando modas alegres.
Quanto a Marcus, tinha feito as pazes com Bernard, que não hesitou em receber de novo o cão fiel que lambe as mãos de quem o maltrata. Dir-se-ia que nada existia entre os dois.
Tal atitude por parte de Marcus desagradou a Jerry; teve dó dele porque de facto era ajustado o qualificativo que ele dera a si próprio. Não merecia que o estimassem ou que tivessem por ele um mínimo de consideração.
No entanto a curiosidade acerca da psicologia de Marcus voltava à mente de Jerry, causando-lhe certa inquietação e estranheza.
Certa tarde, Bernard, excitado, chamou Marcus de parte:
— Tenho novidades!
Sentia a necessidade de falar a alguém e ninguém melhor do que o vaqueiro.
— Boas?
— Espero que sim. Nell e a mãe vêm ao rancho «Branco».
— Que me dizes?
— O que eu te digo, homem. Como eu tardo em voltar a San Diego, porque as coisas se complicaram, sugeri à Nell que viesse para conhecer o meu pai. Estou certo de que ele ficará encantado com ela e assim será mais fácil obter o dinheiro para voltarmos à vida antiga. Hoje recebi resposta. Chegará em breve.
— Estupendo!
— Achas que sim?
— Não há dúvidas nenhumas. A tua noiva vale muito sob todos os aspetos. Verás que vai ser fácil convencer o velho de que este ambiente não é apropriado à vossa maneira de ser.
Comentaram depois largamente o caso antes de se separarem. Meia hora depois, Whitted fez-se encontrado com Jerry, que andava a passear pelos arredores:
— Anda aborrecido?
—Eu não me aborreço nunca.
— A solidão é má companheira.
— Para quem gosta dela, não.
— Quando você o diz!... De qualquer maneira, penso que uma pessoa é mais feliz, tendo ao lado quem saiba querer-lhe. Há muitos que partilham desta opinião. Bernard, sem ir mais longe, é um deles. Mandou chamar a noiva e deve chegar em breve.
Grunder fez um gesto de estranheza e olhou fixamente para Marcus:
— Oiça, Whitted, porque é que você vem falar-me dessas coisas? Não me importa nada que se relacione com Bernard.
— Desculpe. Supunha que sim. O plano do «meu amigo» é que Nell consiga influir no ânimo do patrão para que este largue dinheiro e eles possam viver na cidade. E é provável que o consiga. A pequena é encantadora, tem uns olhos escuros que eletrizam, uma boca feiticeira, um corpo escultural... E no fundo é boa, mesmo. O seu único defeito é ser um pouquito ambiciosa. Bernard falou-lhe sempre muito das suas riquezas e eu apostava em como isso contribuiu muito para ela aceitar o namoro. Quanto a Fanny, a mãe de Nell é uma pessoa engraçadíssima. Não digo que seja doida, mas não tem a cabeça a regular muito bem. Não diga o que acabou de me ouvir a ninguém. Bernard quer que a chegada da noiva seja uma surpresa.
— Porque é que então mo disseste?
— Ora... fraquezas! Pensei: «a Grunder deve interessar que eu o previna, para poder anular em parte a influência que a rapariga venha a exercer sobre o patrão».
— Sabe, Whitted, que me cheira que você anda a jogar com um pau de dois bicos?
— Não tem mau olfato, não senhor. A coisa é natural num indivíduo da minha espécie. No entanto, repito que seria bom que Bernard não o suspeitasse. Percebe?
Afastou-se sorrindo de maneira especial. Jerry ficou convencido de que tratava com um homem absolutamente fora do vulgar. Parecia que se comprazia em acentuar o seu cinismo. Perdido em reflexões, Grunder empreendeu o caminho de casa.
Próximo do portão descobriu Stanley Kasbert que lhe fez sinal para parar e se dirigiu a ele, dissimulando o melhor que podia. Tratava-se de um indivíduo pequeno, calvo e muito nervoso. Desde novo — e tinha já 65 anos — administrava os bens dos Batterby com eficiência e honestidade. Admirava e queria muito a Jerry para quem não tinha segredos de espécie alguma.
—Tenho de falar contigo... sobre qualquer coisa do grave.
Deu-lhe o braço e ambos se embrenharam nas sombras das árvores.
— Sabes... Bernard dá-me que fazer. Já tenho dito muitas vezes ao patrão que ele é bastante esperto; mas à tua frente tenho que, dizer a verdade: é demasiado estúpido... para não dizer outra coisa!
—Explique-se!
— Já conto. Sabes que gosto de trocar impressões contigo e ouvir os teus conselhos nos momentos difíceis, e parece-me que temos agora um bico de obra a resolver. Escuta pois: desde que Bernard veio para junto de mim mostrou-se sempre muito humilde, prestável e afetuoso. Eu estava encantado com ele e quase que cheguei a não dar razão a vocês. Mas agora comecei a ver claro e percebi que o que ele quer é submeter-me à sua vontade e conseguir que altere a minha conduta recta e limpa.
— Caramba, Kasbert!
—Nem mais, nem menos. Há poucos dias, depois de muita conversa, pediu-me que lhe entregasse quinhentos dólares, assegurando-me que se via em apuros e mos devolveria logo. O pai estipulou-lhe, como sabes, um ordenado e não lhe dá nem mais um centavo além do que lhe é devido. Escusado será dizer que, muito diplomaticamente me neguei ao que ele pretendia e dei-lhe do meu bolso particular algumas notas. Até aqui a coisa não tem nada de extraordinário; mas a de hoje tem.
— Que sucedeu hoje?
— Entrei no meu escritório mais cedo do que costume. Bernard já lá estava e ficou atrapalhado ver-me. Não liguei importância, mas reparei que de vez em quando me dirigia olhares receosos. Há poucas horas tive que fazer uns pagamentos. Eu guardo a chave do cofre forte numa pequena caixa de aço, que guardo numa das gavetas com fechadura dupla. Pois bem: esta fechadura mostrava sinais de que tinham pretendido forçá-la. Estive tentado a dizer alguma coisa, mas lembrei-me de te falar primeiro e fiz de conta que não tinha notado nada. Ao voltar-me, os olhos do rapaz fixaram-me. Continuei a trabalhar com a maior naturalidade, mas desde aí não tenho tido um minuto de descanso. Contar isto ao senhor Batterby é matá-lo e além disso não há provas suficientes. Mas se me calo, corro o risco de me ver roubado.
Calou-se. Grunder pensou ainda um bocado e depois disse:
— Temos que fazer qualquer coisa, menos contar ao meu padrinho. Se você quiser seguir à risca as minhas instruções...
— Mas desde já, Jerry.
— Então escute.
Baixou a voz e, quase em murmúrio, foi expondo o que lhe ocorrera.
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