A chegada de Nell e de Fanny foi um facto novo para os vaqueiros que, acabado o trabalho, se espalharam no terreiro. Bernard, sabendo a hora a que chegavam, foi recebê-las à aldeia próxima, levando consigo o automóvel do pai. De facto, as duas mulheres correspondiam aos dizeres de Marcus.
Nell era uma rapariga bonita; a mãe relativamente nova e bem-parecida era um feixe de nervos, de cabeça e nariz sempre no ar, sempre a mexer-se, e dizendo disparates que faziam rir meio mundo.
Bernard, orgulhoso da sua noiva, ajudou-as a descer e nem se dignou olhar os vaqueiros. Do grupo destacou-se Marcus, que se aproximou humilde:
— Boas tardes, senhora Achermon; boas tardes, menina Nell. Alegra-me vê-las por cá.
A rapariga sorriu e estendeu-lhe a mão:
— Olá, Marcus. Eu também gosto de te ver por aqui. Mas ... que traje é esse? Está mascarado?
— O meu fato de trabalhador, menina.
Fanny perguntou muito séria:
— Como está você, Charles?
—Não, mamã, não é Charles, e sim Marcus Whitted. Não te lembras, dele?
—Ah, é verdade! Como não hei de eu lembrar-me? Marcus Whitted, o que se encarregava de levar o teu noivo a casa quando se embriagava. Muito gosto em vê-lo.
Soaram risos discretos. Bernard fingiu o melhor que pôde a irritação que lhe fizera aquela graça e disse a Marcus:
— Trata de guardar o carro.
Ao entrarem a porta, Jerry vinha a sair. Afastou-se para lhes dar passagem e saudou levando a mão ao chapéu. O seu olhar cruzou-se com o da rapariga ambos tardaram em desviá-los um do outro.
— Que homem estupendo! — exclamou Fanny. — Quem é?
—O capataz do rancho.
— Jerry Grunder? — perguntou Nell.
—Ele próprio.
Ela já o conhecia através do que lhe dissera Bernard e sabia que não era pessoa de boa índole. Batterby descrevia-o sempre como o homem mais grosseiro, ambicioso e repugnante da terra. Chamava-lhe «o intruso». Chegaram junto da porta do quarto onde se encontrava o velho rancheiro.
— Esperem uns segundos — pediu Bernard.
Entrou no quarto, dizendo:
— Pai, trago-te uma visita. Trata-Se dumas pessoas que fizeram a viagem desde San Diego com o objetivo principal de te conhecer.
—Caramba!
Abriu a porta de par em par e fez as apresentações. A surpresa de Alan foi enorme. Nell deixara-lhe muito boa impressão. Já há muito que ele acariciava a ideia de que uma mulher digna de tal nome levasse Bernard pelo caminho do bem. Embora não se deixasse guiar nunca pelos primeiros impulsos, teve um toque no coração que o levava a acreditar que Nell era a pessoa ideal.
— Ai, ai, senhor Batterby! — exclamou Fanny. — Você tem muito má cara, muito má cara.
—Mamã, por Deus!
Fanny reparou que tinha cometido falta e quis emendar:
— Sei o que digo, filha; tem má cara, mas não vai morrer já... Ainda lhe ficam uns meses de vida.
— Não ligue ao que diz minha mãe, senhor Batterby. Agrada-lhe muito brincar com toda a gente.
—E, sobretudo, brincadeiras de bom gosto — comentou o rancheiro, sorrindo amável.
Nell estava envergonhada. Antes de vir, tinha feito várias recomendações a sua mãe, obtendo dela a promessa de que falaria o menos possível e logo de início começara a fazer das suas. De boa vontade a teria deixado em San Diego, mas achou que não era muito aconselhável apresentar-se em casa do noivo sozinha e por isso a trouxera.
Quando por fim, Janis conduziu as duas senhoras aos aposentos que lhes eram destinados, Bernard perguntou:
— Que tal te parece a minha noiva, pai?
— Um encanto. Se as suas virtudes corresponderem ao seu físico, és um rapaz de sorte se casares com ela. Quanto à mãe...
— Não digas mais. É muito disparatada e parece não regular bem.
— Enfim, o que importa é a filha e esta parece boa. Agradeço muito que se tenha incomodado em vir ver-me. Teria preferido que me avisasses.
— Quis fazer-te a surpresa...
— Sim, de facto, foi uma surpresa muito agradável. Vê lá se as tratam bem e que nada lhes falte. Se não me enganei e se essa rapariga é o que me parece, acho que não deves demorar muito o casamento.
Bernard estava radiante. Tudo corria à medida dos seus desejos. O velho não tardaria a deixar-se convencer!
Nell reapareceu pouco depois, em traje de amazona; mostrando desejos de dar um passeio. Fanny ficara deitada.
Bernard mandou aprontar os cavalos e os dois jovens afastaram-se a trote. A noite principiava a descer, mas ainda podiam visitar os arredores.
Marcus aproximou-se de Jerry:
— Que impressão lhe deixou a rapariga?
Em vez de responder, o capataz fez outra pergunta:
— Donde saiu você?
—Daqui mesmo. Vi que você a tinha seguido com a vista... é na verdade encantadora, não é?
—Nem sequer a fixei.
— Deveras, Grunder? Eu iria jurar que sim. Mas... se você diz que não, não tenho o direito de duvidar das suas palavras. Pois acredite, é simplesmente um encanto, maravilhosa. Digo-lhe mais, é demasiado bonita e demasiado bondosa para Batterby. Vai ver que partilha da minha opinião.
Separou-se de Jerry, levando nos lábios o seu sorriso especial, misto de enigmático e de cínico. Entretanto, Bernard falava novamente à sua noiva da situação em que se encontrava e, como de costume, disse o pior que podia haver de Grunder, tornando-o responsável por tudo quanto- acontecera.
— Não compreendo — disse ela por fim — por que consentes esse estado de coisas. És o patrão e não deves permitir que ninguém te ultrapasse.
— Quando conheceres bem o meu pai, verás quanto e difícil a luta nesse sentido. Jerry é o seu braço direito e seria até os seus dois braços se não chegasse eu a tempo. Temos que ter cautela. Sem descer demasiado, deverás tratá-lo amavelmente, sobretudo na presença do velho. Depois teremos ocasião de o humilhar.
— Não se trata de nenhuma humilhação, mas sim de dar a cada qual o lugar que lhe pertence. O que eu vejo é que tu não tens sabido impor-te. Creio que a minha ajuda te vai ser preciosa.
O passeio durou bastante tempo. Nell estava verdadeiramente maravilhada com a beleza das paisagens que ia descobrindo. Já de regresso, declarou:
— Isto é francamente prodigioso.
—É possível que isto te agrade?
—Encanta-me. Não sabes quanto me alegro de ter vindo. Creio até que vou aqui passar uma temporada deliciosa.
— Nell!
— Desagrada-te que assim seja?
— Ter-te ao meu lado equivale a um prazer sem igual, mas gostaria mais que estivéssemos juntos em San Diego, respirando a nossa atmosfera, entre gente distinta e não entre brutos.
—Compreendo, mas olha... a lei dos contrastes é indiscutível. Estou completamente subjugada por tudo o que nos rodeia e vejo agora aquilo a que nós chamamos civilização com olhos diferentes. Mas não te assustes porque isto é o que penso agora... dentro em pouco aborreço-me e serei eu a pedir-te para regressarmos a San Diego.
Bernard encolheu os ombros. Não percebia como é que Nell tinha gostado daquilo, mas estava certo de que em breve se cansaria e teria saudades da cidade. Chegaram a casa e já a mesa estava posta para o jantar. Alan acenou carinhosamente à jovem, ameaçando-a com o dedo:
—Que é isso de se atrasar em coisa tão importante como o comer?
— Oh, deixe-os, deixe-os! — interveio Fanny. — O campo tem tantos atrativos para os que se amam!... Lembro-me que o meu marido e eu, quando éramos noivos, saíamos muitas vezes dispostos a contemplar as paisagens dos arredores de San Diego. No entanto, lembro--me também, que quase sempre nos metíamos no teatro!
Alan mandou chamar Jerry que inexplicavelmente se atrasara.
— Onde estavas metido?
— Tinha ainda umas coisas a fazer. Além disso... não cabemos todos na mesa e...
— Silêncio! Se não coubessem todos, seria eu que me levantava para que ocupasses o meu lugar. Vem para que eu te apresente. Ao apresentá-lo às duas senhoras, fez-lhe os maiores elogios.
— Senhor Batterby, o seu filho é Bernard ou este? — perguntou Fanny.
— Senhora Achermon, o meu coração é grande e nele cabem todas as pessoas que merecem entrar nele.
— Ai que frase tão bonita! Acho estupendo que você goste deste rapaz. É talvez um pouco rude, mas isso não importa. Você, Jerry, é muito simpático. Tem uma bonita figura. Esses cabelos ondulados ficam-lhe muito bem e esses olhos escuros, melancólicos assentam-lhe maravilhosamente.
—É costume usá-los já há muito tempo, senhora --respondeu Grunder com a maior seriedade.
Fanny riu alegre e divertida. Nell não gostou da ironia do capataz e tocou a sua mãe, que se voltou irritada:
— Por que me fazes sinais? Já sabes que eu por sinais não entendo. O que disse não tem nada de especial. Com a minha idade — e já lá vão 45... se não esqueci nenhum — pode dizer-se o que se sente, sem medo de que se interpretem mal as nossas palavras.
O jantar decorreu alegremente, sendo Fanny a mais divertida. Alan ria com gosto das frases engraçadas que tinha de vez em quando a boa senhora e acabou por lhe dedicar quase toda a sua atenção.
Nell e Bernard falavam baixo, sem ligarem importância a Grunder. Deste modo, pensavam impressionar o rapaz, mas este não se alterou. Pelo contrário, a sua simplicidade de movimentos, o sorriso ligeiramente trocista e certa dose de ironia a bailar-lhe nos olhos, conseguiram perturbar Nell que, pela primeira vez, se sentia pequena diante dum homem. Fanny embora não tivesse muito juízo, notou que Jerry havia sido esquecido.
—Mas... então ninguém faz caso de James!... É assim que se chama, não é verdade?
—Se lhe agrada mais do que Jerry, chame-me James. Quanto ao que diz, não se preocupe. Sou compreensivo. A senhora e o meu padrinho distraem-se à sua maneira; a menina Nell e seu noivo distraem-se à sua... e eu distraio-me à minha. Além disso, sei estar só mesmo que me encontre acompanhado, e acompanhado, ainda que me encontre só.
— Perdoa, Jerry —pediu Alan.
— De quê?
A resposta que Grunder dera a Fanny surpreendeu a jovem. Parecia-lhe impossível que um homem do campo pudesse exprimir-se naqueles termos. «Pensa que é inteligente e vivo. Vou dar-lhe uma lição» — disse de si para si. E a partir daquele momento, mudou de tática. Falou de poesia, de música, de arte, em geral. Passou depois às matemáticas, a temas científicos. Dirigia-se a todos, mas especialmente a Grunder que, com a maior naturalidade, não só se mostrava inteirado de tais problemas, como era ele que, simples e natural, «dava lições».
Bernard apenas podia manter conversação a espaços. Alan, sorridente e satisfeito, escutava com interesse o debate, dizendo por fim a Nell:
—Como vês, o meu afilhado é um sabichão. Só o dinheiro que ele gasta em livros!... E as horas que ele tem queimado as pestanas, a estudar e a querer saber?! Tenho-o repreendido bastas vezes: — que falta te fazem essas coisas para dirigir um rancho? Ah... é verdade, também escreve canções e canta-as com música de que é também autor. Sem ter ido estudar a San Diego, sabe mais do que muitos que por lá passam.
Dirigiu um olhar meio afetuoso e meio trocista a Bernard que, irritado, voltou a cabeça para o outro lado.
— Não faça caso do meu padrinho — disse Grunder. — Distraio-me como posso.
Nell teve que confessar a si própria que o odioso «intruso» parecia um homem bastante interessante. E, aborrecida com isto, mordia os lábios. Fanny não hesitou em lhe tecer as maiores honrarias e elogios, embora no seu pitoresco discurso o nomeasse de várias maneiras e nunca como ele de facto se chamava.
Terminado o jantar, cada qual retirou-se para o seu quarto.
Nell, apesar do cansaço da viagem, não conseguia pegar no sono. Revia agora as paisagens maravilhosas e que ela nunca tivera ocasião de conhecer até ali; vinha-lhe à ideia o seu primeiro encontro com Jerry à entrada do edifício; o carinhoso acolhimento do velho rancheiro... e, de novo, Jerry a dominar-lhe a imaginação, a apoderar-se dos seus nervos, do seu espírito.
Farta de dar voltas na cama, assomou à janela. Lá fora, tudo era quietação e calmaria. No ar andavam hinos de beleza e de frescura que lhe penetravam na alma tornando-a nostálgica e pensativa.
Nell suspirou suavemente. Chegavam até ela os aromas subtis de flores exóticas, aromas perturbadores que excitavam os sentidos. De súbito, as notas sonoras e vibrantes de melancolia duma guitarra fizeram-se ouvir, e pouco depois uma voz quente e varonil elevava-se nos ares:
«Oeste americano!... Soberbo de grandeza!
Tudo em ti é selvagem, encanto sedutor!
Em ti estamos nos braços da bela Natureza
Simples, incomparável, sublime em seu esplendor!»
Nell ficou suspensa. Aquela voz tinha algo de estranho e de irresistível feitiço. Pensou de novo em Jerry. Seria ele? Alan chamara-lhe músico e poeta. Provavelmente tratava-se do desconcertante homem a quem chamara em princípio «rude vaqueiro».
Deixara de ouvir a música e canção. Ao longe, sobressaía o canto dos grilos e dos pássaros silvestres.
Nell não resistiu à tentação e nervosa, vestiu-se à pressa, procurando não fazer ruídos. Saiu de mansinho e começou a afastar-Se. De repente, sentiu medo não sabia de quê. Era muito diferente contemplar a noite duma janela e embrenhar-se nas sombras.
— Boas noites, «senhorita».
Voltou-se rápida, tremendo dos pés à cabeça. Jerry encontrava-se ali. Aos seus lábios aflorou primeiro um sorriso, mas logo, a seguir mostrou-se seca e hostil:
— Boas noites.
— Fez mal em sair a estas horas. O campo, de noite, costuma apresentar-nos fortes surpresas. Abundam os animais perigosos e não faltam homens sem escrúpulos que vivem do roubo e não desdenhariam uma presa como você. Acompanhá-la-ei, se sente desejos de passear.
À jovem não agradou o modo protetor como ele falava e respondeu:
— Obrigado. Não necessito de você.
Fez menção de se afastar. Grunder com as pupilas brilhantes, exclamou:
— Escute, menina soberba e presumida: não tenho o menor interesse em estar ao seu lado. O meu oferecimento equivale a uma honra que poucas vezes costumo conceder e que não penso repetir. Vá onde quiser!
Voltou-se desdenhoso e com passo lento foi-se perdendo entre a folhagem. Nell ficou estupefacta. Era pior do que se lhe tivessem batido. Tratarem-na daquela maneira!... Que pensaria aquele animal? Ela lhe diria... Parvo! Dizer que era uma honra o facto de se oferecer para a acompanhar! No dia seguinte, faria as suas queixas a Alan, exigindo que cada qual ocupasse o seu lugar. Por muito afilhado que fosse aquele grosseiro, ela seria a futura esposa de Bernard e tinha o direito de exigir que a considerassem. Nada de voltar a comer com eles à mesa, como se todos fossem iguais! E se o velho Batterby não tomasse na devida conta a sua queixa, voltaria para a cidade sem mais demoras.
Próximo soou o ladrar dum cãozito. Nell, cheia de medo, esquecendo a atitude altiva que havia tomado, correu quanto pôde até ao edifício parecendo-lhe que não conseguiria atingi-lo. E teria jurado que, misturando-se com aquele latido, se elevava no ar uma gargalhada trocista.
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