sábado, 11 de setembro de 2021

BIS020.01 O filho pródigo regressa em estranha companhia

 1. O filho pródigo regressa em estranha companhia

Os vaqueiros estavam entusiasmados com a luta amigável que se travava entre Joe e Mike, os dois homens mais fortes do rancho «Branco». Cada um tinha os seus adeptos, que, levados, pela paixão, aplaudiam e discutiam uns com os outros com a maior violência e calor. Pouco faltava para que a luta se generalizasse quando alguém gritou: 

— Aí vem Grunder! 

E, como por encanto, todos se calaram, cessando imediatamente a luta entre os dois vaqueiros. Alguns cheios de medo meteram-se no meio do grupo; outros fingiam brincar e sorriam forçadamente... 

Grunder desceu do cavalo a poucos passos do terreiro onde tinha tido lugar o encontro. O olhar penetrante dos seus olhos escuros percorreu um a um o dos «cow-boys». 

— Que se passa aqui? 

— Pois... Nada...


Por fim, Mike decidiu-se a dizer em tom pouco firme: 

—Joe e eu entretivemo-nos a lutar... 

Seguiu-se uma pausa. Não era preciso que o recém--chegado fizesse um discurso para que eles compreendessem até que ponto podia ser perigosa a sua atitude. Limitou-se a dizer: 

—Podem procurar emprego. Dentro de uma hora espero-os no rancho para vos pagar. 

— Mas, Grunder!... 

— Silêncio! Já disse tudo quanto tinha a dizer. 

Voltou as costas, montou com agilidade e afastou-se a galope. Os «cow-boys» ficaram quietos e abatidos. O respeito que lhes impunha aquele homem tocava as raias do inconcebível, não só porque ele era o capataz do rancho «Branco» como por ser o afilhado de Alan Batterby, proprietário do mesmo. 

Era um homem valente até ao heroísmo; forte como um roble, invencível com um revólver na mão. Muitas vezes arriscava a vida tanto para defender os interesses de seu padrinho como para acudir a qualquer que precisasse do seu auxílio. Os vaqueiros atendiam sempre as suas ordens com satisfação, porque obedeciam a uma pessoa de superioridade indiscutível. 

A medida que Jerry Grunder acabara de tomar deixara-os aflitos, mas nenhum se atreveu a dizer que fora injusta. Houve alguns comentários e discussões. Mas um dos vaqueiros atalhou, demonstrando prudência e tacto: 

— Perdemos o juízo ou quê? Estamos à beira de nova luta; acham que adiantaremos alguma coisa com isto? 

Todos concordaram com o rapaz e tentaram depois encontrar a melhor solução. Puseram de parte a ideia de pedir desculpa a Jerry. Quando este dizia uma coisa era impossível fazê-lo voltar atrás. Impunha-se, portanto, apelar para outros meios. 

Uma hora mais tarde, Grunder, sentado à secretária da cave, revia as contas que acabava de fazer. Tinha diante de si tantos montinhos de dinheiro quantos os vaqueiros despedidos. 

Bateram à porta; o capataz mandou entrar e, na sua frente, estava o proprietário do rancho «Branco», Alan Batterby. Tratava-se de um simpático sessentão, sempre sorridente, sempre bonacheirão embora nos seus olhos bailasse por vezes a sombra da tristeza. Talvez quem o visse não desse conta da sua inteireza de carácter sobretudo quando as circunstâncias assim o exigiam. 

Grunder levantou-se. 

— Que brincadeira é esta de bater à porta, padrinho? 

— É que eu não venho sozinho, Jerry. Presido a uma comissão. — E dirigindo-se para fora: — Entrem rapazes! 

Um a um, foram entrando na cave, humildes e cabisbaixos, os vaqueiros que Grunder despedira. Alan Batterby continuou: 

— Calcula, Jerry... estes homens vieram despedir-se de mim. Reconheço que merecem o castigo que lhes impuseste, mas... alguns há que nos servem lealmente há muitos anos; têm pena de se ir embora... e eu que eles se vão. Não se podem fazer exceções, claro; não vamos despedir uns e ficar com outros. E por isso aqui estou à cabeça de todos a pedir-te que lhes perdoes. 

Grunder mordeu os lábios e replicou: 

— Padrinho, você é o patrão e eu o capataz. Se acha que eu fui injusto, readmita-os e nomeie o que terá de me substituir, pois dessa maneira apresentarei a minha demissão... 

Batterby atalhou: 

— Aqui não há patrão nem capataz. Depositei em ti a minha confiança toda e o que fizeres está bem feito. Nunca te desautorizei nem consinto que te vás embora. Poderás pensar que estou a meter-me em coisas que são da tua exclusiva competência, mas não. Eu resolvi vir com eles e fazer-me intérprete do seu arrependimento e das suas pretensões. 

Jerry viu-se obrigado a sorrir. A sua atitude nada tinha de caprichosa e se tomara tal procedimento alguma coisa a isso o obrigava. Meses atrás tinha havido no rancho um «match» amigável e o resultado fora desastroso. 

Os lutadores, cegos pela ira e calor da luta, lançaram mão das armas e mataram-se um ao outro; os «cow-boys» que os incitavam tomaram cada um o seu partido e o conflito quase redundou em tragédia. 

Grunder viu-se obrigado a pôr em jogo a sua valentia e em resultado da questão deu as seguintes ordens: 

«Acabaram-se para sempre os encontros de qualquer espécie entre o pessoal; quem quiser que procure um inimigo fora do rancho e lute. A desobediência ao que eu determino implicará a expulsão imediata dos lutadores e de quantos se convertam em espectadores e aplaudam os que lutam.» 

Batterby reparando no irreprimível sorriso do capataz, tomou de novo a palavra: 

— Calculo o que estás pensando: recordas a maldita hora em que aqueles rapazes perderam a cabeça e nos deram um dia de luto; também eu pensei nela e recordei-a a estes homens, mas eles deram-me a sua palavra de que o facto não se repetirá e confio plenamente. 

As feições de Jerry perderam toda a sua dureza: 

— Padrinho... você é raposa velha que sempre encontra saída para aquilo que quer. Está bem. Venceu-me. Ficaremos todos. 

Voltou-se para os vaqueiros cujos rostos e feições se animaram logo: 

—Creio que é esta a primeira vez que volto atrás com uma ordem. Sabem até que ponto sou capaz de os beneficiar e defender; mas lembrem-se de que quando se desobedece a uma ordem minha sou rígido e inflexível. O patrão conseguiu hoje o que ninguém ainda tinha conseguido. Tomem boa nota disto e... cada qual ao seu trabalho! 

Murmurando frases de agradecimento, os vaqueiros foram saindo. Tinha sido terrível se perdessem o emprego! A maioria eram bons trabalhadores e experimentados no seu ofício; depressa teriam encontrado outra colocação. Mas como aquela não havia nenhuma; Alan Batterby, por desejo expresso de Grunder pagava aos seus «cow-boys» o dobro do que os outros rancheiros; tinha constituído um fundo para viuvez; tratava-os carinhosamente; o trabalho não era pesado e... estar às ordens de Jerry era, na comarca de Big Tree Johns, um motivo de orgulho, uma garantia de bravura e disciplina. 

— Ri agora, se quiseres — murmurou Alan, deixando-se cair sobre uma cadeira —; embora seja melhor que o não faças. Estou muito desgostoso. Tive notícias de Bernard... 

Bastou aquele nome para que Jerry afastasse do seu espírito todas as demais coisas.

Bernard, filho único de Alan, era um rapaz estúpido, má pessoa, sem coração e sem escrúpulos. Podia dizer-se que era ele o culpado da lesão cardíaca que desde anos se apoderara do velho rancheiro. Desde muito pequeno que ele manifestava as suas más intenções: soberbo, déspota, rancoroso, inimigo do trabalho... 

Fez o pai grandes esforços para que ele seguisse o mesmo trilho, trabalhando e procurando aumentar os seus bens. Tarefa inútil; o pequeno Batterby revoltava-se contra a disciplina, exteriorizando o seu desagrado por tudo quanto cheirasse a vacas. 

Desesperado, Alan internou-o num colégio em San Diego. «Pode ser que ele seja uma sumidade. Não quero que por minha culpa se perca um cérebro privilegiado». Isto dizia Alan com um acento irónico e ao mesmo tempo triste por ter que recorrer àquela solução. Mas Bernard era, simplesmente, um caso vulgaríssimo de egoísmo e orgulho. As suas notas de estudante, sempre fracas, eram uma vergonha e as queixas dos professores não paravam. «Algum mal deve haver na minha vida e este é o castigo — admitia Alan com tal infortúnio —. Suportarei... até que me seja possível». 

As férias do filho constituíam para o rancheiro uma tortura em vez de um prazer. O rapaz tratava mal toda a gente; não convivia com os amigos do pai e considerava os vaqueiros pouco menos do que a continuação das próprias vacas. 

Quanto a Jerry, órfão do antigo administrador da fazenda, Bernard não o via com bons olhos; media-o de alto a baixo e nunca permitiu que ele se juntasse para tomar parte nas diversões que a vida do rancho podia oferecer. Gozava por o humilhar, fazendo sobressair sempre a distância que separava os dois e obrigando-o às vezes aos trabalhos mais penosos. 

O facto de Jerry, sempre rebelde, se negar a servi-lo, fazia com que ele o odiasse. E nunca esquecera o pontapé que uma vez lhe dera o órfão e que o tinha deixado sem sentidos. A partir daí, passou a chamar-lhe «intruso» e odiava-o o mais que podia. 

— Notícias boas ou más? — inquiriu Jerry, depois de curto silêncio. 

— Vem respondeu Alan com tristeza —. O natural e lógico seria que, como pai, me regozijasse com o facto; mas, embora me seja doloroso dizê-lo, não sucede o mesmo comigo. Estou convencido de que, no pouco tempo que me resta de vida, ele há de fazer-me infeliz e desgraçado. 

— Não diga isso. Sabe-se lá! 

— Sei-o eu. Farto já de que ele desperdice dinheiro e mais dinheiro, resolvi reduzir a mesada. É esse e não outro o motivo da sua viagem. 

Grunder gostaria bem de encontrar palavras que animassem o velho Alan, mas não lhe ocorreram. Deu uma palmada no ombro de Batterby: 

— Não se aborreça. Talvez tenha mudado para bem. 

— Ou para mal. 

— Se assim for, mostre o patrão a retidão e inteireza de carácter que o caracteriza e obrigue-o a seguir o caminho que deve seguir. 

—É esse o meu propósito! Já fiz bastante e cumpri com o meu dever. Quase que me alegro por ele ter resolvido vir. Vou traçar-lhe um programa. Se se conduzir com decência, tudo irá bem, se não... 

Não terminou a frase, mas a sua expressão era por demais eloquente. 

Dois dias depois apresentou-se no rancho, Bernard Batterby. Era alto, moreno, de feições corretas. Havia, no entanto, qualquer coisa no fundo das suas pupilas que repugnava quem olhava para ele. 

Não vinha só. Acompanhava-o Marcus Whitted, homem baixo, meio cacunda, de olhos sem cor e sem vida. Quem o visse diria que era um anormal. Não era bom nem mau. Talvez porque a Natureza o não favorecesse muito, nem a bondade nem a maldade se destacavam no seu carácter. Mas no fundo, lá bem no fundo da sua alma, existia um rancor surdo por todos aqueles que se serviam da sua deformidade física para dele mofarem e fazerem troça. 

Bernard e os amigos viam em Marcus uma espécie de lobo que tudo suportava em troca de boa vida e gozo na companhia deles. Quando o corcunda soube que o jovem Batterby se dispunha a deixar San Diego, pediu-lhe choroso: 

«Leva-me contigo. Não quero separar-me de ti e verás que eu posso ser-te útil. Saberei convencer o teu pai de que és um modelo de homem e que ele não deve reduzir-te a mesada». 

Não tardou muito que Bernard se não convencesse. Pensou que, de facto, Whitted lhe poderia servir não só para o que tinha dito como também para continuar gozando à sua custa e despejar sobre ele a ira quando as coisas não corressem à medida dos seus desejos. Os vaqueiros que estavam no portal de entrada, ao reconhecerem Batterby, acharam-se no dever de o sondar, perguntando pela sua saúde. E secamente, Bernard respondeu: 

— Estou bem obrigado. Tomem conta dos nossos cavalos. — E, caminhando altivo, de cabeça erguida entrou no edifício, seguido por Marcus. — Fica aqui — ordenou a este. 

— Como queiras, mas... seria mais conveniente que me apresentasses já a teu pai, a fim de que se torne menos difícil o meu trabalho. 

— Está bem. — Veremos se serves para alguma coisa. 

Mudou a expressão do rosto e retomando a marcha, chamou com fingida emoção: 

— Papá!... Onde estás tu metido? Não vens receber o teu filho? 

Logo acorreu Alan, profundamente impressionado apesar de tudo, e abraçaram-se com força. 

— Que tal te parece o meu pai, Marcus? — perguntou Bernard, terminadas as primeiras expansões de ternura. 

— Muito superior ao que tu me descreveste sobre ele. Creia, senhor Batterly, que se há filhos que queiram aos seus pais, o seu é um deles e suplanta todos. 

Alan enrugou a testa, fazendo uma muda interrogação a Bernard que se apressou a explicar: 

— Apresento-te Marcus Whitted, um belo rapaz que me quer como a um irmão. Tanto me ouviu falar de ti que quis conhecer-te. 

Tudo aquilo parecia muito estranho ao rancheiro, mas não querendo aventurar juízos, saudou afetuosamente o corcunda, que durante muitos minutos se desfez em elogios à capacidade e nobreza de espírito do seu «companheiro de negócios». 

— Bem, bem... esteja como em sua casa — atalhou Alan, aborrecido já com aquela lengalenga —. Vou mandar que lhe preparem quarto. 

Chamou Janis, a velha governanta; e deu-lhe instruções nesse sentido. Marcus suspirou fundo, antevendo já uma boa época. Logo que se encontraram sós, pai e filho, aquele perguntou: 

— Que espécie de indivíduo é este e porque o trouxeste? 

— Já te disse, pai. É um excelente rapaz, com pouca sorte, que merece a proteção dos que o conhecem. 

— Estou pasmado, Bernard. Nunca te vi tão generoso!... 

— Que má ideia fazes de mim! 

— Agradava-me muitíssimo que pudesse retificá-la em breve. — Bem... a que se deve esta tua visita... ou, melhor dizendo, vossa visita? 

—Não encontras justificação, papá? 

—Claro que encontro! Não conseguiste resignar-te à redução que fiz aos teus fundos e vens pedir-me explicações, não é? 

— Papá, por Deus!... Sentia vivos desejos de te abraçar e viria •de qualquer maneira. Não nego que a decisão a que te referes me surpreendeu e desgostou bastante, mas relego isso para segundo plano. Agora o que importa é que estamos ao pé um do outro e alegro-me com o teu bom aspeto. Parece-me que, felizmente, tu exageravas quando me escrevias sobre as tuas doenças. 

O velho estava estupefacto. O tom simpático com que seu filho falava, a sua afetuosidade aparente, a pouca importância que ligou ao problema económico, tudo enfim, contribuiu para a boa impressão que ele causara no bom rancheiro. 

— Se fosse possível! — repetia de si para si. 

Falaram de muitas coisas. Bernard desculpou-se das suas loucuras, fazendo propósitos de emenda. Já era um homem! Tinha feito 28 anos e trazia grandes projetos para trabalhar, arranjar fortuna e casar. Desfez-se em elogios a Nell Achermon, sua noiva, linda rapariga de San Diego. 

Alan escutava-o pacientemente. Tinha já muita experiência para se deixar convencer facilmente. Apostaria o braço direito em como e maior parte do que ouvira era falso. Tantas vezes se vira enganado!... Mas, no meio de tudo, sempre via um momento para a luz da esperança. Débil e fraca..., mas sempre era um raio I e esperança. Entrou Grunder. 

— Olá, Bernard, como estás? Soube agora mesmo da tua chegada! 

Estendeu-lhe a mão. O viajante, retomando a sua antipática altivez, correspondeu à saudação sem apertar a mão de Jerry. 

— Bem, obrigado. Desagrada-me, porém, que tenhas vindo interromper a conversa com o meu pai. 

Arrependeu-se de ter falado assim e sobretudo da atitude que tomara, mas já não havia remédio. As suas forças eram por demais inferiores àquele rancor entranhado que votava ao capataz. E a presença de Grunder não o favorecia nada. Alan viu desmoronar-se a ligeira ilusão que concebera acerca do filho. Afinal a soberba voltara. Grunder ia a responder, mas o rancheiro não lhe deu tempo. 

—Suponho, Bernard, que não esqueceste o qui Jerry significa nesta casa. 

—Como o poderia eu esquecer!   — Respondeu quase humilde —. Estava a brincar. 

— Lamento esta interrupção — disse Grunder — Não devia ter entrado assim. Quando cometo uma falta sou o primeiro a reconhecê-la. 

Fez menção de se retirar. 

— Não te vás embora! -- ordenou Alan —. Não estamos tratando de nada que se não possa ouvir e mesmo que fosse grande segredo a tua presença agrada-me sempre. 

Bernard mordeu os lábios. Quis sorrir e não pôde. 

— Obrigado, padrinho. De qualquer maneira, tenho assunto urgente a tratar. Dá-me licença que saia? 

Ao abandonar a sala, Bernard comentou: 

—Noto que a importância do teu afilhado cresceu muitíssimo. 

—Muito menos do que deveria crescer. Jerry é a alma do rancho «Branco». Graças à sua abnegação, aos seus esforços constantes, ao seu desprezo pela própria vida, nossa fazenda continua a progredir e tu tens-te permitido toda a espécie de luxos. Eu já não sirvo para nada. Se não fosse ele tudo teria acabado. 

—Bem, pai; não quero desgostar-te. 

—Mas aborreceste-me. Nota bem isto: quem é inimigo de Jerry é meu inimigo também. 

Bernard cravou as unhas nas palmas das mãos. Que bem soubera «o intruso» apoderar-se do coração do velho! Era ele o culpado. Não deveria ter dado aso a que tal sucedesse, mas para isso tinha sido preciso que vivesse sempre ali, compartilhando dos duros trabalhos do rancho, tratando com gente boçal e rude, e isso era incompatível com a sua esquisitice e ideias. 

Naquele dia, absteve-se de fazer alusões ao único motivo da sua visita e embora não pudesse perder tempo, também não queria que as coisas deixassem seguir o seu curso normal. Percorreu a fazenda, elogiando tudo quanto via inclusivamente o trabalho de Grunder. 

À noite, teve um curto diálogo com Marcus. 

—Como correm as coisas? — quis saber este. 

— Que te importa isso, réptil peçonhento? 

O interpelado acolheu o insulto com um sorriso. 

—Importa-me só pelo que te toca, corno deves compreender. Mas... se te desagrada não falemos mais nisso. 

Bernard encolheu os ombros, desdenhoso. Ao fim e ao cabo, ninguém melhor do que Marcus serviria para que ¡ele confessasse as suas impressões sobre o velho e o seu ódio sempre crescente pelo capataz. Falou durante largo tempo deste assunto e por fim foi Marcus quem admitiu: 

— Bem... ambas as coisas são naturais, mas não esqueças o que te traria aqui. Aguenta, finge; está muita coisa em jogo. 

Bernard estava bem longe de suspeitar que tinha ali na sua frente o seu pior inimigo. Concordou com o que ele dissera e esperou a hora do jantar. mesa já, mal pôde reprimir a sua cólera ao ver que seu pai concedia a direita a Jerry. Este ainda tentou esboçar uma desculpa, mas o velho rancheiro atalhou: 

— Fica no teu lugar, corno sempre. 

— Nada mais natural — comentou Bernard forçando um gesto amável. Desagradar-me-ia que por minha culpa se, alterassem os costumes da casa. 

O jantar decorreu num ambiente difícil. Alan falava pouco; Jerry limitava-se a responder com monossílabos quando algum se lhe dirigia. Bernard focava assuntos vários, mas não conseguia que algum vingasse. 

O mais afortunado foi Marcus. As suas ideias engenhosas fizeram por várias vezes, sorrir o rancheiro. 

Mal acabara a refeição, Grunder levantou-se disposto a sair, mas Alan deteve-o: 

— Fica aqui connosco, Jerry. Repito e repetirei sempre que para ti não tenho segredos e, portanto, podemos falar dos variados problemas que nos ocorram. Diz-me, Bernard, quais os teus projetos para o futuro próximo? 

—Já falámos disso. 

— Não, não; antes tinhas-te referido a coisas distantes; interesso-me agora pelo que vais fazer imediatamente. 

Ligeiramente nervoso, respondeu: 

— Por muito afilhado que seja Grunder e por maior que seja a minha amizade para com Marcus, há coisas que entre pai e filho devem ser tratadas na intimidade. 

Alan, fingindo ingénuo assombro, exclamou: 

—Rapaz!... Que pode haver de secreto ou confidencial na resposta à minha pergunta? 

—Não digo que haja, mas... desejo fazê-lo noutra ocasião. 

— Bem, bem...  seja como queres. 

Ocuparam-se de banalidades durante certo tempo. Jerry conseguiu licença para se retirar. Whitted, demonstrando interesse por tudo quanto se relacionasse com a vida dos ranchos, saiu com ele. 

— Bem, já estamos sozinhos — exclamou Alan --. O teu amigo e o meu afilhado fizeram-te a vontade acedendo ao teu desejo., aliás, pouco elegante. 

— E fizeram-no muito bem. Não posso resignar-me a que me trates de igual modo como o fazes com outros. Nunca te importaste muito em estar perto de mim. 

— Estive e estarei sempre contigo, apesar da distância. 

— Apesar da distância? Significa isso que pensas ir-te embora?

— Não tenho outro remédio. Deixei em San Diego assuntos muito importantes. 

— Assuntos importantes corno os de sempre, não? És um portento a idealizar projetos e a não realizá-los. 

— Asseguro-te que isto agora vai mudar. Já te disse que estou enamorado. Quero preparar o meu futuro e assentar esta cabeça duma vez para sempre. 

—Magnífico! Casa-te e vem para Big Tree Jahns. Aprende a dirigir um rancho... começando por vaqueiro, e terás tudo o que necessitares tu e a tua mulher. 

Bernard riu, pensando que o pai brincava com ele. 

—Que coisas tu vais buscar! 

— Achas que é disparate? 

— Até certo ponto, sim. Sabes bem que não sirvo para isto. Sou um homem habituado à cidade. 

— És um homem inútil. 

— Pai! 

— Que se passa? Mostra-me que estou enganado. Que fizeste durante toda a tua vida? Gozar, tirar o dinheiro que com tanto trabalho se ganha aqui, onde não podes ficar porque tudo te repugna. Afirmas teres mudado. Onde estão as provas? Dize-me onde estão elas para que eu acredite que és um homem de verdade! 

À falta de argumentos decisivos, Bernard apresentou razões sem consistência, negócios inventados, pessoas influentes que o ajudariam a alcançar um bom lugar na política. O rancheiro escutou-o sem interromper e disse quando o filho acabou o sou reportório: 

— Perfeitamente. Convenceste-me em absoluto. Vejo que te aguarda um esplêndido futuro. e não quero prejudicar-te. Vai, vai-te embora e que sejas feliz. Mas nota bem: como eu não entendo nada dessas coisas, nem me interessam para nada, recuso-me a ajudar-te ou dar-te dinheiro. Acho que um rapaz com as tuas virtudes, inteligência, distinção e relações pode vencer sem necessidade de se amparar ao dinheiro, cheirando a vacas que o rancho «Branco» produz. 

Bernard estava furioso, mas não queria dar a conhecer ao pai a sua ira. No fundo das suas pupilas havia um brilho febril. 

— Suponho que não estás a falar a sério. 

—Completamente a sério, filho. A minha bolsa fechou-se definitivamente. Se queres viver, trabalha. 

—Mas!... 

— Já está tudo dito. 

— Não, não está tudo dito — tornou o rapaz deixando cair o punho cerrado em cima da mesa —. Tu não podes abandonar-me! 

— Eu não te abandono. Ofereço-te a regeneração. Já te divertiste bem; gastaste já grande dose de fortuna e de saúde. 

—Palavras vãs! Como podes querer que eu morra neste ambiente grosseiro, rude. 

—O mesmo em que vive teu pai! 

—E porque tu não tiveste outras aspirações devo matar as minhas? A culpa é de Grunder, o grande hipócrita que te amoldou ao seu jeito e que te aconselhou sempre contra mim. 

– Cala-te! 

— Não quero calar-me! Esse maldito intruso conseguiu que tu, em vez de me admirar como um homem que, graças à sua cultura, honra o apelido que usa, conseguiu, dizia eu, que tu me desprezasses e visses em mim um ser inferior e inútil. 

O semblante de Alan refletia bem a sua cólera e a indignação que lhe causavam tais palavras. 

— Cala-te, repito! Não consinto que manches esse homem honrado com insultos e infâmias! Sai daqui! 

— Pai! 

— Sai daqui imediatamente ou parto-te a cara às bofetadas! 

O aspeto do velhote era tão impressionante que Bernard retrocedeu, receoso e espumando- raiva. 

— Fora! 

Deu uns passos em direção ao filho, que se apressou a alcançar a porta. 

— Infame!... — Disse quase num murmúrio. 

E levou a mão ao coração, aquele coração enfermo que todos os médicos lhe recomendavam que dele cuidasse, evitando comoções fortes. Pouco a pouco a dureza das suas feições foi desaparecendo. Respirou fundo, sentindo alívio. Jerry reapareceu à porta e correu para ele: 

—Padrinho! Que lhe sucedeu? 

—Nada! Não te assustes... Já passou o pior. 

— Vou trazê-lo aqui... 

— Não me tragas nada. Acho que estou bem. Excitei-me embora não o quisesse fazer. Ajuda-me a ir para a cama. 

— Bernard é que teve a culpa, não é assim? Vi-o sair furioso. 

— Pois... que vá ter as fúrias para longe, para bem longe! 

Logo que deixou Alan metido na cama, Jerry foi à procura de Bernard, o qual trocava impressões com Marcus. 

-- Quero falar-te. 

— Tu e eu não temos nada a dizer um ao outro. 

Voltou-lhe as costas, mas Grunder pôs-se diante dele. 

— Sei que me detestas — disse — e não me importa; podes continuar a alimentar os teus rancores que eu não os receio nem tu me preocupas. Mas preocupa-me e bastante a doença do teu pai, a quem nunca soubeste amar como filho. Ele está grave, percebes? Bastante mais do que ele próprio supõe. Somente a tranquilidade absoluta, sem desgostos de espécie alguma, poderá prolongar-lhe a vida. E tu tens obrigação de procurar que assim seja. Vai ter com ele e fala-lhe. Se o não fizeres, se por tua culpa ele não viver mais tempo, terei de converter-me no que hoje não sou, embora o merecesses: em teu inimigo! E... como inimigo sou bastante temível... 

Afastou-se depois a largos passos. Bernard ficou imóvel a vê-lo afastar-se, sem ânimo nem forças para lhe responder; sem coragem para fazer só comentário, nem sequer diante de Marcus. Este abrira os olhos desmedidamente, atónito e orgulhoso. Aquilo era novo para ele! Titubeando, viu que afinal havia um homem com coração, com o coração maior do que o resto do corpo. Mas... Seria de facto verdade, que existissem pessoas boas e amando o próximo? 


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