Entretanto, o «Dragon-fly» começou a ser o casino da moda. A integridade de Dicky chegou a convencer até os mais exigentes, e as suas mesas de jogo serviam de remédio aos magnates do dinheiro, os quais pretendiam distrair-se um pouco. Naquelas mesas — disso estavam todos convencidos — não se fazia batota. Dicky declarava com toda a franqueza: «Ser-se honesto é um bom negócio» ... Quando os tribunais consideraram arrumados os assuntos de Dave e liquidadas todas as despesas, puseram o restante à disposição de Dicky e este destinou tudo a instituições públicas. Guardou unicamente para si as ações das duas companhias mineiras. Com elas, uma tarde, apresentou-se nos respetivos escritórios.
— Aqui têm isto.
— As nossas ações não lhe interessam?
— Pelo contrário. É que se me admitem... quero que me concedam voz e voto.
— Os nossos estatutos dão-lhe esse direito, senhor Root. Foi aquele primeiro passo que «Dicky-35» deu num mundo que não aparecia conhecer. Porém, em pouco tempo, viu-se que era exatamente o contrário. Deslocou-se à zona mineira e ali esteve algum tempo. Ao regressar, convocou uma assembleia extraordinária...
A pouco e pouco, os jornais de São Francisco noticiavam as novas normas adotadas pelas duas companhias mineiras, e as negociações em curso para a sua fusão. Dias depois isto era um facto. E na nova lista de cargos, «Dicky-35» aparecia como vice-presidente.
Mas Dicky só aparecia em primeiro plano por etapas. Após um breve período de publicidade, o seu nome desaparecia, ficava na sombra, e quando voltava a surgir estava uns degraus mais alto.
O mais surpreendente é que Dicky Root nunca parecia ir atrás daquele mundo brilhante, do mesmo modo que também não forçara a clientela a entrar no «Dragon-fly» e transformara aquele local no cabaré da moda. Os factos produziam-se por si mesmos, e quando começou a correr a versão de que «Dicky-35» soubera a tempo quanto valia a hipoteca de Hazel Kelly, e que tinha tido, inclusivamente, a rapariga ao seu alcance, Dicky alcançou a máxima popularidade. Quando Dicky se inteirou do que se dizia dele e de Hazel, berrou a Grotto:
— Juraste que nunca dirias!...
—E não disse nada! — protestou Grotto, verdadeiramente indignado. — Sabes donde venho? De falar com a menina Kelly... Mandou-me um recado...
— Para quê?
— Para o mesmo que da outra vez: se tu sabias ou deixavas de saber... Primeiro com falinhas mansas tentou subornar-me. Mas, como não conseguia nada... Bom! Ainda bem que não a viste... Uma verdadeira fera! O dinheiro subiu-lhe à cabeça e... sabes a que ponto chegou? A dizer que nos há de expulsar de São Francisco, a ti e aos teus «lacaios» ... — terminou Grotto, rouco de cólera.
— Não te preocupes. Essa, em toda a sua vida, nunca pegou numa escova.
Depressa se soube donde havia saído aquela versão: do escritório do advogado West. Durante alguns dias, um jornal dado à chantagem publicou reportagens colhidas «de viva voz» junto duma testemunha do que ocorrera na casa dos Kelly, horas antes da morte do velho. As reportagens não se contentavam em denunciar as intenções de Erik, as manobras de Dave e a rebeldia de Hazel, ao pressentir o desastre económico para o qual a arrastava o tutor, mas também relatavam, com maliciosos detalhes carregados de zombaria, a cena de Dicky e Hazel.
Ridicularizavam-se as atitudes sedutoras da rapariga, tentando fasciná-lo, e o desagrado de Dicky, mandando-a pouco menos que ao diabo... Depois, a súbita aparição do tutor e do advogado, e o descaro de Hazel, tocando a campainha e expulsando o advogado.
— Inconvenientes de ter muito dinheiro — comentou Dicky, quando Jimmy lhe relatou o que dizia o jornaleco.
Deu a impressão que não tinha dado àquilo a menor importância. Mas, naquela mesma tarde, apresentou-se no escritório de West. A porta, na sala de espera, e também no passeio em frente, viu vários indivíduos que certamente estavam ali para defender o advogado. «Dicky-35» foi reconhecido imediatamente e acolhido com toda a confiança. Mal anunciaram a sua presença, o próprio West veio recebê-lo. Estendeu-lhe a mão.
— Feche os punhos! — aconselhou-lhe Dicky. — Vou desfazer-lhe esse focinho de porco!
— Como? Mas... Dicky, não compreende?... Temos nas mãos um rico filão!...
O murro foi tão forte como anteriormente a voz do advogado. Deu-lhe em plena boca, tal como a Dave. E o advogado despenhou-se no meio da sala. Dicky esperou uns momentos a ver se surgia alguém a favor de West. Mas ninguém se mexeu. Então, decidiu ir-se embora.
Ao cruzar a porta, ia tão pensativo que não reparou nas máquinas fotográficas assestadas sobre ele. Horas mais tarde, o jornaleco saía em edição especial. A entrevista de «Dicky-35» e West vinha ampliada, carregada de pormenores melodramáticos...
Naquela noite, Hazel apareceu pela primeira vez no «Dragon-fly». Desde a noite em que Erik morrera, Dicky só a voltara a ver de longe. Desde então, nunca mais se tinham falado. Entrou no casino como uma verdadeira rainha, tal o esplendor da sua figura e o de quem a acompanhava. Sentaram-se à mesa de jogo maior.
Quando Grotto Preveniu Dicky no escritório, este respondeu:
— Que todos procedam como de costume.
À meia-noite, Jimmy abandonou um esconderijo que havia no primeiro andar, cheio de frestas, e que o coxo utilizava como posto de observação, e entrou no escritório, excitado:
—Essa rapariga trazia uma fortuna com ela... Sabes quanto perdeu?
Dicky não ergueu os olhos dos papéis que tinha na frente.
—Não me incomodes, Jimmy. Tenho de fazer.
O coxo regressou ao seu posto de observação. A hora de fechar, Grotto entrou no escritório: — Foram-se embora.
Esperava que Dicky o interrogasse. Mas este continuou a trabalhar.
— Sabes quanto cá deixou? — perguntou, ao ver que Dicky permanecia pensativo.
— Não. E não creio que valha a pena sabê-lo. Esta noite foi uma noite como as outras, percebes?... E os clientes desta noite não passam de clientes...
A frieza da sua voz e do seu olhar levou-o a esconder qualquer coisa. Ouviu-se a perna de pau.
— Caramba! — exclamou Jimmy, abrindo a porta como um furacão. — Mais umas noites como esta e enchemo-nos...
— Já disse que não se fala mais nisso! — gritou Dicky, dando um murro na mesa.
Na noite seguinte, Hazel voltou. A sala encontrava-se repleta quando ela apareceu com os seus companheiros. Não obstante, pouco depois ficou vazia uma mesa de jogo. Notou-se que havia ali gente com a missão de lhe guardar os lugares até que ela aparecesse.
Grotto subiu ao esconderijo onde Jimmy se encontrava, sempre provido dalgumas garrafas. Grotto sentou-se ao lado dele e pôs-se a observar, enquanto bebia com prazer. Fitando Hazel, Grotto, ao segundo trago, parecia embriagado.
— Bom! É mais do que uma mulher... Estás a ver, Jimmy? Que cara! Que ombros!
Hazel encontrava-se sentada no local mais iluminado e refulgia como uma joia. O vestido apenas servia para lhe acentuar a beleza. O tecido muito fino contornava-a com o mesmo sortilégio e maldade com que Romelle envolvia a sua figura soberba. Pressentia-se em Hazel a obsessão de imitá-la, de eclipsá-la...
— Que olhos, Jimmy!... Repara nas vezes que ela olha para a porta do escritório.
Esta encontrava-se no extremo dum largo corredor, e a verdade é que Hazel não deixava nem um instante de olhar para lá.
— Está à espera que Dicky saia — segredou Grotto.
-- É o sais! — respondeu Jimmy.
— Porquê?
O coxo bebeu com avidez.
— Ora, porquê! Toda a gente sabe!... Estivemos três dias enterrados. Eu saí de lá com uma perna esmagada. Ele, segundo julgo, com a alma seca. Essa rapariga não sabe com quem se mete...
Naquela noite, Hazel, embora não tendo perdido a soma fabulosa da noite anterior, fez com que os seus companheiros bebessem do mais caro, até que todos ficassem embriagados. A hora de fechar, muitos deles tiveram de sair à força.
Por sorte, Hazel retirara-se, com umas amigas, pouco antes da cena vergonhosa. «Hazel Kelly desbarata o seu ouro nas roletas de Dicky-35». Isto apareceu nos jornais de São Francisco, e precisamente nos mais sérios. Continham, além da informação do bacanal que todas as noites faziam no «Dragon-fly», declarações que se atribuíam à própria Hazel:
—Dicky é um «cavalheiro» ... Os senhores ainda não deram por isso? Um cavalheiro... E parece que o meu destino é estar em dívida com ele. Há pouco procurou esse patife do West para o castigar duma ofensa... que para mim não era ofensa nenhuma. Mas enfim: o «cavalheiro» assim o entendeu.. Há que pagar-lhe esse faval.. Sim, há que pagar... É mais cómodo pagar do que ficar em dívida...
Isto atribuía-o um jornal à própria Hazel. Dicky, ao lê-lo, ficou em dúvida se devia correr à redação ou avistar-se com Hazel. Optou pela última hipótese. Hazel continuava a viver na casa que Dicky já conhecia. E pela forma como a jovem, mal ele chegou, apareceu arranjada, deduziu que estava à sua espera.
Recebeu-o na mesma sala, vestindo exatamente o mesmo que no primeiro dia em que ele ali estivera. Agora, porém, havia nos olhos de Hazel uma luz diabólica que então não existia. Se ela esperava desconcertá-lo com aquele golpe de surpresa, pôde certificar-se em seguida que havia falhado.
Dicky levantou-se, quando ela entrou, e depois de saudá-la com uma leve inclinação de cabeça, disse, com voz firme, ao mesmo tempo que lhe mostrava o jornal:
— Suponho que a senhora não disse nenhum dos disparates que se lhe atribuem aqui.
— Porque o não supôs, Dicky? Mas sente-se.
— Não. Vou-me embora. Quis apenas ter a certeza.
Hazel tinha começado a olhá-lo ressumando ironia nos lábios e nos olhos. Lentamente, aproximara-se dele, procurando com verdadeira avidez um motivo a que pudesse agarrar-se, para largar uma gargalhada. Não o encontrou, porém, não porque a indumentaria de Dicky fosse impecável, mas porque havia qualquer coisa na sua alma que ela não podia dominar e a cegou no momento mais importuno.
O seu olhar perscrutador converteu-se numa súplica e numa adoração. Nos seus lábios húmidos e vermelhos o sorriso de troça transformou-se num impercetível tremor... ...
— Vou-me já embora...
Ao dizer isto, repetindo a frase, Dicky encontrou-se com o olhar suplicante de Hazel. «Olhas--me assim porque sou o único que até agora te resistiu — pensou. — É a mesma vingança que Romelle procura...».
Sabia-se que Dicky Root tinha as suas pequenas aventuras com algumas das artistas que desfilavam pelo «Dragon-fly», mas sem que nenhuma dessas mulheres pudesse gabar-se de ter prendido a sua atenção. Estas relações vulgares, conhecia-as Hazel muito bem, e muitos jarrões valiosos tinham sido arremessados contra a parede, num paroxismo de cólera cujo verdadeiro motivo ninguém conseguia descobrir.
— Porquê tanta pressa?... Há tanto tempo, que não nos falamos — respondeu Hazel, sentando-se. — Lembrando-me do que o senhor um dia me disse, de que os nossos caminhos seriam diferentes, não vi qualquer razão para não ir ao seu cabaré...
— E porque não havia de ir? Vão ali muitas pessoas como a senhora. Asseguro-lhe que ninguém teria dado por si, se tem sabido comportar-se como os outros.
Assomou ao rosto de Hazel urna expressão de cólera.
— É uma censura?
— Se o de ontem à noite tem que repetir-se... Refiro-me ao espetáculo que os seus amigos deram...
Ela desatou a rir. Pretendia que o riso soasse a ironia, mas, na realidade, dissimulava uma onda de cólera.
— Como o senhor se tornou pretensioso! Desde quando é que o «Dragon-fly», esse antro horrível, cuida das boas maneiras?
Dicky permaneceu impassível.
— Muito bem, minha senhora. Mas voltando ao jornal... Devo ou não concluir que foi tudo invenção dos jornalistas?
Ela pôs-se de pé, fulminando-o com o olhar.
—Não me arrancará uma só palavra sobre esse assunto. Interprete-o corno quiser!
-- Está bem. Não a incomodo mais.
Já se encontrava à porta, quando ela gritou:
— Espere!
Não. Agora, Os seus olhos verdes não imploravam. Foi-se aproximando dele, altiva, o peito agitado.
— O senhor já se esqueceu que a morte de meu tio ainda está por esclarecer?
Ele encarou-a com expressão sarcástica:
— Isso preocupa-a...
— Sim, embora o senhor pense o contrário... Tem-me preocupado a todo o momento. Quer saber uma coisa que o atinge? Consegui averiguar, minuto a minuto, todos os movimentos do senhor e de Dave, durante as horas que precederam a morte de meu tio. Tenho uma declaração assinada pelo criado que os serviu, na noite em que o senhor foi ao «Fortune». Urna declaração em que se repete a vossa conversa... Não. Não pense exercer represálias sobre esse homem, pois já se encontra longe, e se voltar será a meu pedido... E também a visita que Dave fez a Hutchinson, momentos depois do senhor me ter feito sair de São Francisco... Compreende, Dicky? O senhor, Hutchinson, Dave... E Romelle!... Os quatro a conspirarem durante as horas que precederam o assalto....
Calou-se, vigiando com o olhar o rosto de Dicky. Este mantinha-se imperturbável.
— São trunfos que jogarei de um momento para o outro! A polícia vai encontrar aí matéria a que poderá agarrar-se... E a mim sobra-me dinheiro para impedir que o assunto caia no esquecimento! Que lhe parece, Dicky?
— Minha senhora, não sou seu conselheiro. Bons-dias.
Ainda não tinha chegada à porta da rua quando na sala que acabava de deixar se ouviu uma forte pancada, e em seguida o estrondo de um móvel deitado abaixo, certamente uma mesinha com tudo o que tinha em cima...
Sem comentários:
Enviar um comentário