Pela segunda vez passaram os cavaleiros, contornando o bosque no qual se encontrava a rapariga. Um deles, o que vestia com maior ostentação, um homem novo, corado, bem parecido, não cessava de chamar:
—Hazel!... Hazel!... Onde demónio te meteste? Já basta de gracinhas!
Às vezes parecia adotar uma atitude de bom humor. Porém, quem o observasse — e havia alguém que não o perdia de vista — facilmente se aperceberia que a brincadeira de modo algum lhe agradava. Assim, em certos momentos, assomava--lhe ao rosto uma expressão colérica e feroz.
— Hazel!... Estão todos à tua espera!
Era sempre o mesmo cavaleiro elegantemente vestido quem gritava. Os outros, embora não estivessem malvestidos, notava-se, pela forma como o seguiam, que não passavam de simples subordinados. Por fim, um dos que compunham a comitiva atreveu-se a falar:
— Dave, e se na verdade lhe tivesse acontecido alguma coisa? Embora a menina monte muito bem, parece-me que exagera os galopes...
— Grotto, não dramatizes! — interrompeu Dave, fitando, irritado, o cavaleiro mais idoso de todos. — Não lhe aconteceu nada, podes crer. Conheço-a muitíssimo bem. O que ela quer é isto: trazer-nos a todos em sobressalto... Dar nas vistas, seja como for!
Furioso, cravou as esporas e o cavalo acelerou bruscamente. Os outros seguiram-no. O que Dave Berger acabava de dizer, pôde ouvi-lo a própria interessada, Hazel Kelly.
Encontrava-se sentada num tronco, não para se esconder melhor, pois a barreira de vegetação que tinha na frente era tão alta que podia muito bem ocultar o cavalo, mas por simples comodidade.
Ao ouvir Dave, o seu rosto mimado ensombrou-se desagradavelmente, sob a malha sedosa e longa das pestanas. Pareceu que ia levantar-se e dar um grito, assinalar o local em que se encontrava, e logo montar a cavalo e ir-se embora, voltando-lhes as costas. Porém, apenas fez menção de se mover e continuou imóvel.
Ao cabo de instantes, estendeu uma perna, meteu a mão no bolso do casaco de montar e extraiu um maço de cigarros. Tirou um e acendeu-o. Embora os seus gestos fossem os duma pessoa habituada a fumar, qualquer coisa denunciava neles um excesso de artifício. Hazel julgava-se só e, por isso, não viu nenhum inconveniente em ensaiar atitudes requintadas.
Primeiro, prendeu o cigarro entre o indicador e o polegar; depois, estendendo os lábios carnudos, sugou-o até encher muito a boca; por fim, expeliu o fumo em dois sopros largos, tal como vira certamente fazer a qualquer velho criado ou aos carregadores do porto. Não parecia muito satisfeita com esta forma de fumar, pois tossiu algumas vezes e o brilho dos seus olhos acentuou-se.
Então, pôs em prática um processo completamente diferente. Mudou o cigarro para a mão esquerda, colocando-o entre o indicador e o médio, a brasa voltada para as costas da mão. Cavalgou uma perna sobre a outra, e, em atitude de abandono, deitou-se lentamente para trás. Também com lentidão, os olhos sonhadores perdidos num ponto vago, foi aproximando o cigarro dos lábios. Sugou-o com prazer, muito lânguida, e quando expeliu o fumo fê-lo tão debilmente que, por instantes, o fumo pairou sobre o seu rosto.
— Também não lhe fica bem. Experimente outra forma — insinuou, à sua esquerda, uma voz varonil.
Hazel, neste momento, não tinha fumo na boca, mas havia algum sobre o seu rosto, e ao ouvir a voz mostrou tal espanto, que, inclinando-se para a frente, o fumo envolveu-a. Tudo isto contribuiu para que Hazel tivesse do recém-vindo uma impressão bastante deformada, pois a tosse e as lágrimas que lhe embaciavam os olhos não lhe permitiam uma visão nítida e justa.
— Quem... é o senhor?! Como?...
Um homem nada bem vestido. Um guardador de gado coberto de pó, de rosto enegrecido e barba de muitos dias. Um chapéu de aba larga, tão sujo e velho como o restante vestuário, acabava de ser atirado para trás, deixando a descoberto uma ampla fronte, onde, numa expressão trocista, apareciam umas rugas finas, produzidas pelo cenho franzido, e uns olhos escuros e grandes que reluziam cheios de malícia.
De uma coisa Hazel ficou certa desde o primeiro instante: o intruso não parecia nada embaraçado por haver-se metido onde ninguém o chamara; pelo contrário, divertia-se à grande vendo a rapariga tossir.
A indignação de Hazel secou-lhe as lágrimas de repente. Então, pôde ver o homem perfeitamente desenhado sobre o fundo verde da mata.
— Que faz o senhor aqui?
Ainda tossiu algumas vezes.
— Se o meu cavalo não tivesse ficado tão longe, oferecia-lhe o meu cantil. Um gole de água não lhe faria nada mal...
Era uma voz firme, bem timbrada, que dominava inclusivamente os matizes irónicos, não os deixando acentuar demasiado. A de Hazel, ao contrário, tornara-se hesitante, não conseguindo um tom calmo e seguro.
— Estou a perguntar-lhe o que faz o senhor aqui!
— Até há pouco, estive a observá-la. Agora, estou a falar com uma rapariga deliciosa...
Hazel ergueu-se, e, muito hirta, com toda a autoridade que lhe dava o saber-se proprietária daquelas terras, declarou:
— Se o senhor é novo aqui, fique sabendo que sou Hazel Kelly...
— Obrigado. Mas há pouco andava por aí «alguém» a gritar o seu nome. Ouvi-o perfeitamente. É seu noivo, não?...
Hazel não reparou que na expressão do desconhecido qualquer coisa mudara ao aludir ao homem que tinha estado a chamá-la.
— E ao senhor que lhe importa?
— Simples curiosidade, minha senhora — e a voz dele mostrava-se agora bastante menos segura.
— Parece que não lhe deu abalo saber quem eu sou — disse Hazel, observando com displicente curiosidade o desconhecido. — Concluo daí que o senhor não é um dos nossos criados...
— Oh, não!...
— Tem aspeto de vagabundo.
— Talvez seja. Tem alguma coisa contra os vagabundos?
— Neste caso concreto, sim... Bom. Estamos em festa e sentiria ter de perturbar os meus convidados — acrescentou em tom conciliador. — Se está de passagem, e deseja comer qualquer coisa, dirija-se à cozinha dos criados. É além...
— Eu sei. Conheço perfeitamente a disposição de toda a quinta. Estive algum tempo a observá-la, lá de cima, com isto — sacou um óculo da cinta. — Deixei o cavalo ali atrás...
— Também lhe darão de comer. Nesta fazenda conservam-se muitas tradições espanholas, entre elas a da hospitalidade. Respeite o senhor a da cortesia, agradeça e procure a cozinha... Ah! Não é preciso dizer que me viu...
— Interessa-lhe muito que a procurem?
— Interessa-me estar sozinha.
— Para estudar atitudes?
Indignada, a voz de Hazel soou outra vez:
— Vai-se embora ou não?
— Mas porquê, se ainda mal nos conhecemos?
Tanta desfaçatez irritou a jovem. E, como nesse momento se ouvisse o cascalhar dos cavalos, exclamou:
— Vai ver o bom e o bonito! — e, fechando os olhos, soltou um grito rouco: — Aqui!... Socorro!...
O trote dos cavalos cessou de repente. De pé, no mesmo sítio, o desconhecido permanecia impassível.
— A senhora não queria perturbar os seus convidados, não é isso? Pois bem. Desafiemo-los e vejamos o que acontece...
Primeiro nos dois revólveres que o homem usava à cinta, um de cada lado; depois na dureza daquele olhar, descobriu Hazel qualquer coisa em que não tinha ainda reparado; por isso, logo se arrependeu de ter dado o alarme. Mas, nesse momento, ouviu-se a voz de Dave Berger.
— Hazel! Ondes estás?
— Olá! — insinuou o desconhecido. — Aí tem outra vez o seu noivo... Porque não o chama?
A rapariga, frenética, esqueceu tudo: o que a uns e outros pudesse acontecer, tudo aquilo, enfim, suscetível de estragar a festa.
— Porque não?! Dave! Estou aqui!
De súbito, o desconhecido, com extraordinária agilidade, deu um salto, em seguida outro e desapareceu engolido pela mata. Então, vários cavaleiros irromperam por diversos sítios.
Dave Berger um pouco desequilibrado na sela. Ao ver a rapariga sozinha, de pé, não mostrou a menor estranheza. De antemão, ele já sabia que nada acontecera a Hazel. Aquele jogo de desaparecer, para que todos vivessem dependentes dela, já por várias vezes o havia posto em prática.
— Isto não te aborrece, Hazel? — perguntou, contendo a custo a irritação. — Prepara-te para ouvir o teu tio!
Até há momentos, a rapariga estava disposta a relatar o que tinha acontecido e a assinalar o local por onde desaparecera o intruso. A forma, porém, como Dave acabava de falar-lhe e a alusão ao tio Erik fizeram-na mudar de intenções. Desagradava-lhe tanto a brusquidão com que Dave a tratava como recordarem-lhe que seu tio e tutor era propenso à cólera e muito dado a reprimendas nada fáceis de ouvir.
— Ah, sim? Pois podes ir por onde vieste! E toda a tua guarda também! — atirou, fora de si, abarcando-os a todos com um olhar.
Na realidade, à exceção de Grotto, o mais velho dos cavaleiros, detestava todos os outros. Todos eles, lá porque obedeciam às ordens de Dave, julgavam-se na obrigação de vigiá-la. Em São Francisco, aproveitando qualquer ausência do tio, rara era a vez em que saía sozinha sem que algum daqueles bonifrates a seguisse.
— Ponham-se a andar! Vamos! Depressa!
Alguns iniciaram a retirada. E Dave desceu do cavalo, vexado pela arrogância com que a jovem o tratava na presença dos seus subordinados.
— Vão-se embora! — corroborou Dave.
— E tu também! — ordenou a jovem, dando-lhe costas.
Dave agarrou-lhe os braços e obrigou-a a voltar-se.
— Ouve, menina! Sabes que comigo não se brinca?
Ela, antes de retorquir, observou as mãos peludas que lhe prendiam os braços. Fê-lo com lentidão, sem medo, apunhalando com o olhar as costas de cada mão.
— Larga-me, Dave, se não queres que te faça expulsar de minha casa! Já começo a cansar-me das tuas impertinências!
— Sim? — resmungou Dave, e no seu olhar havia tanto de triunfo como de crueldade. — Pois vais saber o que acontece, se algum dia me canso de ti!
Nesse momento reparou que um dos seus homens não se havia retirado. Era Grotto, que em cima do cavalo, as mãos cruzadas no arção, observava contrariado o seu chefe:
— Tu! Não ouviste? — gritou Dave.
— Espere, Grotto. Vou consigo — disse Hazel, encaminhando-se para o ponto onde amarrara o cavalo.
— Primeiro terás de ouvir-me! — E Dave precipitou-se atrás dela.
Hazel estacou. Lentamente foi-se voltando. Nos seus olhos verdes havia agora um brilho mordaz.
— Claro que te ouvirei, Dave!... Mas só depois de ter ouvido o meu tio: Creio que acabas de dar--me a resposta a muitas perguntas que a mim própria tenho feito nestes últimos tempos. A principal é saber porque é que o meu tio, tão desabrido com outros que valem mais do que tu, te trata sempre com tanta deferência... Vou averiguá-lo. Julgo que me deste os meios para que de futuro, se alguém tiver de decidir alguma coisa desagradável em minha casa, seja eu e não o meu tutor... Se for assim, ficar-te-ei muito agradecida, Dave.
A súbita frieza da rapariga, a ironia com que se expressava, fizeram compreender a Dave que tinha ido demasiado longe, descobrindo o jogo antes de tempo. Com o fim de se reabilitar, largou-se a rir:
— Bom, Hazel! Sabes perfeitamente que é tudo brincadeira. A verdade é que as tuas excentricidades fazem-me perder a cabeça...
Ela permaneceu uns instantes a olhá-lo fixamente, alardeando ironia nos lábios e nos olhos. Nada lhe disse, contudo. E logo se voltou, retomando os passos em direção ao cavalo. O homem, de novo em atitude irritada, fez menção de segui--la, agora certamente disposto a ultrapassar as conveniências.
— Porque não a deixas em paz, Dave? — interpelou Grotto, consciente de que jogava o seu posto de homem de confiança do patrão.
— E a ti, quem demónio te chamou? — rugiu Dave.
— Digo-o para teu bem. Embora conheças a menina, não deves ignorar que nada ganharás em contrariá-la.
— Vai para o diabo! Estás aqui a mais!
Cresceu para ele, brandindo o chicote nos punhos. O cavalo de Grotto recuou. Roçou a garupa numa árvore e, então, arremeteu contra Dave. Este apenas teve tempo de afastar-se.
— Maldito!
Desferiu uma chicotada na perna do cavaleiro, mas apanhou também o animal. Este levantou as mãos, girou sobre as patas traseiras, soltou um relincho, agitando o ar, e Grotto sentiu-se arremessado ao chão.
A queda foi tremenda. Grotto não era mau cavaleiro, mas a montada apanhara-o num momento em que uma das maiores surpresas de toda a sua vida acabava de lhe prender os músculos. Nada tinha que ver com esta surpresa o facto de Hazel, após um salto muito ágil, ter desaparecido velozmente a cavalo, pelo meio das árvores. Grotto já fazia uma ideia mais ou menos aproximada da sua habilidade. Mas da barreira de vegetação, quase no mesmo sítio por onde a rapariga desaparecera, acabava de surgir aquele golpe de surpresa, melhor talvez, uma alucinação, que depois de o deslumbrar o aturdiu.
No preciso instante em que Hazel se esfumava, apareceu ali um homem. Um homem que...
A pancada não o deixou raciocinar. Ficou no chão, apercebendo-se vagamente do que se passava à sua volta. Viu um pé de Dave ameaçando-lhe a cara: a biqueira duma larga e sólida bota.
— E agora? Desfaço-te os miolos? — repontou, furioso, porque, ao fim e ao cabo, Grotto saíra vencedor, dando a Hazel ocasião de fugir.
— É exatamente a pergunta que eu ia fazer-te, Dave — disse atrás dele o homem que, pouco antes, falara com Hazel.
Dave voltou-se, surpreendido, apesar de não lhe ter visto ainda a cara. A presença daquele homem jovem, de sólida aparência, cujo rosto não tinha nada de desagradável, embora a barba descuidada não o favorecesse, parecia destinada a produzir a mais forte indignação ou o espanto mais rotundo.
Agora, Dave, parecia garrotado de surpresa. Manteve-se uns instantes a olhá-lo de alto a baixo, aturdido. E, ao balbuciar-lhe o nome, apenas se apercebeu um leve movimento de lábios.
— Dicky!
— Acode ao Grotto — ordenou o recém-vindo.
Mas o velhote já se havia recomposto um pouco, esforçando-se por sentar-se no solo. O interesse da própria situação fazia-o esquecer qualquer machucadela ou osso partido que pudesse haver no seu corpo. Também ele pronunciou o nome do jovem, não com surpresa feita de medo, mas sim com alegria, ou, quando muito, com receio de que fosse uma alucinação.
Grotto, inconscientemente, pelo simples facto de sentar-se no chão, salvou a vida ao recém-chegado. Isso significava que o auxílio que Dave poderia prestar-lhe não era tão urgente como podia temer-se a princípio.
Dicky Rott acabava de ordenar a Dave que ajudasse o velhote no preciso instante em que este começava a mover-se. Assim, quando Dave se apercebeu da ordem, Grotto já se encontrava sentado. Pôde, pois, renunciar muito bem à sua ajuda.
Admitindo que em outras circunstâncias Dicky tivesse permanecido distraído, agora não aconteceu assim, pois a presteza com que Dave se dispôs a obedecer fê-lo pôr-se imediatamente em guarda. e bastou-lhe ver o pestanejar de olhos de Grotto para logo compreender tudo.
Deu um salto para o lado quase no mesmo segundo em que se produziu um disparo. O tiro saíra por baixo do braço de Dave. Ao inclinar-se, sacara a pistola do coldre, girando levemente a fim de ver melhor o alvo. Mas o alvo desapareceu apenas lhe apontou. E uma bota tão sólida como a que ele levantara à cara de Grotto embateu-lhe na mão armada, fazendo-o largar o revólver. Dicky desferira-lhe um pontapé com toda a força.
— Agora... vejamos isso dos miolos!
Agarrava-lhe, entretanto, as bandas do casaco e obrigava-o a pôr-se de pé. Dicky Root, ao tê-lo já diante de si, mirou-o de alto a baixo, numa expressão quase compungida.
— Vamos! Que fato tão catita! Tira o casaco!...
O outro não parecia disposto a obedecer. O medo fê-lo tartamudear:
— Dicky, deixa-me que te explique...
— Tira o casaco! — esta segunda ordem já foi dada com voz mais exaltada.
Dave obedeceu, mas lentamente, como sé quisesse ganhar tempo. Ao ficar em mangas de camisa, Dicky exclamou:
— Bah! Agora reparo que o teu peito continua tão magro como sempre. Nenhuma das tuas roupas me deve servir... Bem. Comecemos.
Deu-lhe com o punho esquerdo no queixo, não com muita força, mas como um toque de atenção. Dave, cada vez mais pálido, retrocedeu e estendeu os braços, espantado.
— Dicky! Espera!... Deves deixar-me falar!...
— Daqui a pouco. Depois de dormires um bocado. Há três pontos importantes a discutir. Vou assinalar-tos com os punhos... Põe-te em guarda.
Dave leu nos olhos de Dicky que a coisa, irremediavelmente, teria de seguir a marcha traçada e preparou-se para a defesa.
— Primeiro ponto: o que é feito dos meus trinta e cinco mil dólares? — disse Dicky, assestando-lhe um murro no peito. Dave recuou.
— Isso... tem remédio, Dicky!...
— Bem sei!
E o punho esquerdo de Dicky apanhou-o em cheio na boca. Dave emitiu um grunhido.
— Segundo ponto: a mina vazia...
— Não, Dicky! Eu fui o primeiro enganado!
O murro que recebeu na boca propinou-lho Dicky, agora com a direita. Um lastimoso gemido e uma espuma sanguinolenta assomaram aos seus lábios inchados. As escoras estavam tão podres que só o eco das pisadas provocou o desastre — continuou Dicky, com o olhar inflamado, injetado de sangue, como se os socos que ele acabava de dar na boca do adversário tivessem vindo repercutir-se nos seus olhos.
—Foi um acidente!... Fez-se tudo o que se pôde, Dicky! Acredita!
Este permaneceu quieto uns momentos. Parecia prestes a saltar, sobre Dave e a destroçá-lo. A desculpa que acabava de ouvir tornava-se mais intolerável do que a própria verdade, embora sendo esta tão brutal.
— Foste tu que provocaste o desastre — disse Dicky, com voz apagada, dando a impressão de que pensava em voz alta. — Jimmy e eu estivemos três dias a agatanhar a terra. Jimmy com uma perna esmagada. Eu... — fez uma careta, e, agarrando-lhe o peitilho da camisa, com um violento puxão abriu-a e rasgou-a. Apareceu o peito sulcado de cicatrizes. — Conseguimos abrir a barreira de escombros. Mas já não tínhamos forças para sair da mina...
Jamais sairiam dali, se um aguaceiro não tivesse levado um grupo de cavaleiros a refugiar-se na mina.
— Quando saí do hospital, encontrei-me com um terceiro ponto a liquidar. O menos importante, Dave — acrescentou, sarcástico. — Adivinhas qual seja?...
Não. Dave não se apercebia de nada. Sabia apenas que ia morrer às mãos do que fora seu amigo. Morrer precisamente no momento em que a sua vida entrava no caminho do êxito.
— Enterraste-me e levaste contigo Romelle. Que grande patifaria!...
Este nome despertou Dave. Sabia que Dicky se sentira sempre atraído por aquela mulher. Isto fê-lo acalentar a esperança de que ganharia tempo falando-lhe dela...
— Isso não, Dicky! Grotto pode testemunhá-lo! Não te roubei nada Romelle... Dir-te-ei o que sucedeu... Poderás vê-la em São Francisco...
Dave parecia não se haver apercebido da ordem pela qual tinham sido postas as três questões. O ponto que se referia à mulher encontrava-se em último lugar.
— Ouve, Dave — interrompeu Dicky, numa calma desesperante. — Não vim aqui apenas para te matar... Mesmo longe, fui recebendo notícias dos teus êxitos. E, sabes?... Não me desagradava que a vida te corresse bem. Pelo contrário, queria que chegasses o mais alto possível, e quanto mais depressa melhor... E agora aqui me tens. Gostei da tua forma de vestir. E desta quinta, em que eras recebido como convidado de honra. Agrada--me também a tua noiva... Ou não é tua noiva? Melhor para mim. Porque assim as coisas vão ser mais fáceis. Tudo o que é teu virá a ser meu, Dave. Meu e... de Jimmy, «o Coxo». Está à nossa espera perto de São Francisco. Vamos para lá. Agora mesmo. Precisamente agora.
O terceiro murro desferiu-lho em pleno rosto. Dave desmaiou.
— Pelo terceiro ponto — murmurou Dicky.
Voltou-se para Grotto. Nos olhos deste reluzia uma satisfação inexprimível.
— Bem, Dicky. Não sei se poderás ter confiança em mim...
— Grotto — e Dicky estendeu-lhe a mão. — Sei que não intervieste em nada.
Dave, propositadamente, mandou-te para longe enquanto nos enganava, a mim e ao Jimmy.
— É a primeira vez que ouço falar nessa história da mina. Quando me encontrei com Dave em São Francisco, disse-me que tinhas morrido numa discussão ao jogo. Quanto a Romelle, é verdade que se encontra na cidade.
— Eu sei. Mas terás de me informar sobre outras coisas. Principalmente sobre as pessoas que rodeiam Dave... Mas isso ficará para mais tarde. Agora vai a casa e diz que Dave teve necessidade de regressar a São Francisco com toda a urgência. Vai indo à frente, que nós lá iremos ter... Jimmy estará à tua espera no caminho. Dir-te-á o que é preciso fazer.
Grotto, ao montar a cavalo, ressentiu-se da queda. Olhou para Dave, que continuava caído no chão.
— Oxalá não te arrependas, Dicky! — exclamou.
—De quê?
— Do que disseste há pouco: de ocupares o posto dele...
— Não se trata de ocupar o posto dele, mas sim de compartilhá-lo. Somos sócios e ainda conservo os documentos da nossa sociedade... Mas desta vez, se a mina ruir, será ele quem ficará lá dentro...
Enquanto Dicky tentava levantar Dave, a fim de o montar a cavalo, Grotto encaminhou o animal por um trilho que ziguezagueava através do bosque e desembocava diretamente na quinta. A meio caminho, ouviu à sua esquerda um rápido galopar. Para ver de que se tratava, deixou o trilho e atravessou a mata até à parte desarborizada.
Avistou ao longe a silhueta inconfundível de Hazel, que a todo o galope se dirigia para casa.
— Espera! Com certeza viu tudo!...
Sem comentários:
Enviar um comentário