domingo, 20 de junho de 2021

ARZ002.09 Uma quinta liberta-se de uma hipoteca e o libertador vai para a prisão

Erik manteve-se mergulhado em torpor durante muito tempo. Já tinha anoitecido quando ele despertou, chamando a sobrinha. Dicky aproveitou o momento e deixou-a sozinha com ele. Inspecionou a vigilância montada à volta da casa. Depois, no vestíbulo envolto em escuridão, sentou-se, e durante um bom bocado esteve a fumar cigarros uns atrás dos outros. Até que ouviu lá dentro um significativo alvoroço dos criados, exclamações a meia voz e um choro apagado. Foi verificar o seu pressentimento. Pelo caminho um criado velho informou-o:

— O senhor morreu... A menina chama-o...

Hazel recebeu-o num quarto contíguo àquele em que se encontrava o morto. Quando Dicky apareceu, ela estava pensativa, dando a impressão de grande abatimento. Mas esta atitude desapareceu imediatamente. Como se defrontasse um adversário a quem convinha enganar, dissimulando a própria fraqueza, Hazel adotou uma expressão serena. Os seus olhos brilhavam ainda de lágrimas quando encarou Dicky.

— Eis-me sozinha para enfrentar a situação.

— Seu tio, antes de expirar, falou consigo? —perguntou Dicky, simulando um tom de indiferença. Hazel tomou-se de receio.

—Não — disse, depois de ter perscrutado o rosto do jovem. — Muito pouco... Palavras soltas... Falava melhor por sinais... Pediu-me perdão pelo mal que inconscientemente poderia ter--me causado... Pobre tio Erik!...

A sombra de dor no seu rosto pareceu a Dicky tão sincera, que ficou comovido. Mas, de chofre, aquilo soou-lhe a falso. Foi quando Hazel aludiu à hipoteca. A Dicky ter-lhe-ia agradado que ela abordasse o assunto com toda a franqueza. Que acabava de descobrir que aquela terra possuía um valor incalculável, e que, no curto prazo que lhe restava, dedicaria todos os seus esforços a salvar a propriedade. Dicky, então, ter-lhe-ia respondido que poderia contar com a sua ajuda... Isto pensava Dicky, sem se lembrar que era pedir de mais a quem mal o conhecia, a quem, afinal, tal como ele, tinha motivos de sobra para rechear toda a gente. O que a Dicky pareceu mais intolerável foi ela situar-se num plano sentimental.

— O tio Erik gostava muito desta quinta... A sua ideia de transformá-la num parque era qualquer coisa de muito belo. Custar-me-ia que ela fosse parar a outras mãos que não soubessem respeitar a sua ideia... Quero dizer com isto, Dicky...

Ele não a deixou prosseguir.

— Percebo. Quer conservar a propriedade...

— Sim — e o receio com que ela o fitava acabou por feri-lo.

-- Bem. Tudo se há de arranjar.

— Gostaria que fosse o mais depressa possível. Esta noite, se pudesse ser.

— Claro que pode ser. Trouxe comigo a documentação.

— Magnífico! Posso assinar um recibo no valor da hipoteca, mais o juro que o senhor queira exigir. Antes do meio-dia de amanhã, terá o senhor a importância total. Tenho a quem recorrer em São Francisco...

— Não duvido. Espere um momento.

Dicky saiu. Foi até ao carro que Hazel havia utilizado para vir da cidade e sacou de sob o assento um rolo de papéis. E com eles regressou a casa. A rapariga esperava-o com ansiedade, temerosa.

— Tome.

Ela verificou os papéis durante uns momentos, com a respiração agitada.

— Sim!... É isto! — Extraiu um papel do decote. — Passei-lhe este documento... Acha bem?

Dicky não sentiu nenhuma emoção com o leve calor que emitia aquele papel escrito com letra tremida, que a rapariga acabava de tirar do peito. Apesar do nervosismo da letra, os conceitos eram bastante claros e justos, até do ponto de vista jurídico.

— Escreveu-o esta manhã o advogado West, para o caso de chegarmos a acordo, o senhor e eu... Se está de acordo, assine-o, e imediatamente faremos uma cópia assinada por mim, que o senhor poderá guardar...

Dicky, por momentos, pareceu mais sombrio. Assentiu, sem sequer deixar ouvir a sua voz e mudaram-se para o escritório, onde tinham uma escrevaninha à disposição. Mal os documentos ficaram prontos, cada um guardou o seu. Então, Hazel, parecendo que olhava Dicky de muito alto, começou a rasgar a escritura da hipoteca. Dicky mantinha-se inexpressivo, olhando-a como quem olha nem de muito baixo nem de muito alto, e a rapariga deu por isso.

— Que se passa? — perguntou ela, de chofre.

—Não sei... A senhora causa-me frio. Ia a dizer medo...

Os olhos verdes pareceram emitir relâmpagos.

— Porquê? Por estar a falar de negócios, enquanto naquele quarto há um morto? Porque ainda não me ouviu falar em castigar os culpados dessa morte?... E censura-me o senhor, que está a conduzir a sua vingança com a frieza de quem trata de um negócio seguro!... O senhor, que se, deixou enganar pela mulher de quem gostava, e pelo amigo, e agora alterna entre os dois, julgando castigá-los, quando, na realidade!...

Não prosseguiu, assustada pela mudança operada na expressão dele.

— Continue! — insistiu Dicky. — Que ia a dizer?

—Nada — respondeu ela, cada vez mais assustada de ter cantado vitória antes de tempo. —Desculpe... Estou muito excitada...

Dicky deixou-se cair numa cadeira. O seu semblante mostrava agora uma expressão sarcástica.

— Vim a São Francisco disposto a valer-me de certas correntes que me levariam a terra firme — declarou lentamente, num tom surdo. — Mas entre os assuntos de Dave, encontrei-a a si. Estorva-me tanto a senhora como a sua feliz hipoteca... Agora já me desembaracei dessa, carga. Os restantes assuntos que ficam em meu poder referem-se a bagatelas pouco mais ou menos da estatura de Dave e Hutchinson. E esses não me pesam.

Calou-se, ao aperceber-se de que estava a denunciar o segredo da hipoteca. Neste momento, sentia tal desapego por Hazel, que a simples ideia de que ela interpretava as suas palavras como um desejo de que lhe agradecesse, o impeliu a dar por terminada a conversa.

—Bom, Hazel — disse, levantando-se. — Ao menos para guardar as aparências perante os criados, não acha que deveria voltar ao quarto onde estão a velar o cadáver de seu tio?

Como ela estava intimamente a censurar-se do mesmo, as palavras de Dicky soaram extremamente cruéis. Muito antes do tio se ter aberto com ela, deixara de guardar-lhe rancor. E se agora se aturdia naquela operação de recuperar a hipoteca, era por mil forças que se haviam desencadeado na sua alma, sem ela ter suspeitado antes que existiam.

Nunca havia ambicionado a riqueza. Agora, porém, desejava a riqueza e o máximo poderio. Que toda a cidade de São Francisco vivesse dependente do que ela fizesse... Que todos os homens — e entre eles devia encontrar-se em primeiro lugar o homem que tinha agora diante dela — vivessem fascinados, dobrando-se como verdadeiros escravos e chegando a extremos a que nunca tivessem chegado com Romelle...

Em mau momento surgiu tal recordação no espírito de Hazel. Exasperou-a ainda mais. E antes de que Dicky tivesse acabado de recomendar--lhe que se fosse embora, atirou-lhe:

— Gostaria de não lhe dever nada! Desejo-o com toda a minha alma! Porque sei que o senhor e eu... nunca poderíamos ser amigos.

— Não interessa — respondeu ele, muito calmo. — Os nossos caminhos vão ser tão diferentes, que dificilmente voltaremos a encontrar-nos.

Ela, que já se encontrava de costas, perto da porta, quase a sair, deteve-se de súbito. O seu primeiro impulso foi voltar-se com rapidez, mas reprimiu-se e fê-lo devagar.

— Que quer o senhor dizer? Que se vai embora de São Francisco?

— Nada disso. Mas São Francisco, como todas as grandes cidades, tem muitas camadas. E o caminho que eu vou seguir afasta-se bastante do seu.

— Sim. O seu caminho, como o de Dave, encontra-se no subsolo.

— Exatamente. Tem os seus perigos, mas é mais rápido. E se desta vez o túnel tiver de abater, não serei eu quem fique lá dentro.

Por instantes, assomou aos belíssimos olhos de Hazel uma nítida expressão de amargura. Isto intrigou Dicky. Mas a rapariga mudou logo de atitude. Num acento desprezível, replicou:

— Depois de tudo... que se podia esperar?!

Foi-se embora. Durante muitas semanas, muitos meses, foram estas as últimas palavras que trocaram. Tal como Dicky previra, os caminhos de ambos tendiam a afastar-se. Meia hora depois desta conversa, a distância entre um e outro já começava a fazer-se sentir.

Quando, altas horas, os vaqueiros regressaram da cidade, não veio só o médico, mas também um inspetor da polícia e vários ajudantes, prevenidos por um daqueles. Como se Dicky adivinhasse o que ia acontecer, antes da polícia chegar, chamou Jimmy e Grotto de parte e entregou-lhes os documentos que lhe restavam, recomendando-lhes:

—Escondam-nos em lugar seguro. Mas, pela importância que têm, procurem que ninguém suspeite que estão em vosso poder. São a chave dos negócios de Dave... A estas horas já deve estar escondido. Terei de pagar por ele. Mas isso interessa-me de certo modo...

Mal chegou, o inspetor fechou-se com Hazel. A conversa foi bastante substancial para que o polícia já soubesse contra quem teria de actuar. Depois de falar com Hazel, chamou Dicky. Este explicou a sua condição de «sócio» de Dave, e as circunstâncias que tinham concorrido para isso.

meio do relato compreendeu que o polícia quase não lhe prestava atenção, como se tudo aquilo já fosse do seu inteiro conhecimento. Na realidade, sabia-o pela boca de Hazel.

— O que interessa — disse o polícia — é saber em que qualidade se encontra o senhor nesta casa, ao lado da menina Kelly... Representava o senhor o papel de bonzão?...

A Dicky pareceu-lhe aquilo tão grotesco, que largou uma gargalhada. Isto acabou por indispô-lo com o inspetor.

— O senhor sabia que ia dar-se esta agressão?

— Esta, precisamente, não... Mas esperava que acontecesse qualquer coisa.

— Porquê? — perguntou, rápido, o polícia.

— Porque este assunto desenrolava-se de uma forma tão estranha...

— Tão estranha! Mas tudo se há de esclarecer em resultado do que esta quinta contém... — mordeu a língua. — Que valor atribui o senhor a esta propriedade?

Dicky encolheu os ombros.

— Não faço a menor ideia. Não sou técnico...

O inspetor era baixito. Agora encontrava-se junto de Dicky, os dois de pé. Esticou-se todo e fitou-o nos olhos.

— O seu olhar é demasiado inteligente para papel de parvo que se empenha em representar... Trate de o mudar, pois não lhe fica nada bem. Fale claro! — e desferiu uma palmada nas costas duma cadeira. — Comece por me dizer onde se encontra o seu «sócio» ...

— Se não estiver em casa, ignoro-o em absoluto — respondeu Dicky, muito calmo.

Enquanto durou o interrogatório, não se fez a menor alusão a Hutchinson e à entrevista que Dicky tivera com ele e Romelle no «Fortune». Isto agradou-lhe. Enquanto pudesse, manter-se-ia independente, à margem de toda aquela embrulhada... Assim, quando o polícia lhe disse:

— Não há remédio senão metê-lo na cadeia... Ficam muitos pontos obscuros... — Dicky esteve prestes a confessar que o desejava ardentemente...

 

 

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