quarta-feira, 16 de junho de 2021

ARZ002.05 Uma jovem assume uma quinta em processo de ruína e hipotecada

Naquela noite, fechado no quarto, sob a vigilância de um Jimmy mutilado que o odiava de morte, Dave Berger teve tempo de meditar.

Sabia que o momento de maior perigo já havia passado. A sangue-frio, Dick não o mataria. Com Jimmy já não se sentia tão seguro, mas, se conseguisse atrair a confiança de Dicky, ficaria a coberto de qualquer ataque de cólera que acometesse o coxo. E, na manhã seguinte, quando se reuniu com Dicky no escritório, Dave decidiu pôr as cartas na mesa. Pôr diante dos olhos de Dicky os livros e documentos que garantiam a posse de numerosas ações de duas companhias mineiras, três salas de jogo na cidade e a hipoteca da propriedade dos Kelly.

Dicky, a fumar, simulou não dar atenção a este último documento.

— Como é que tu conseguiste progredir tão depressa, Dave? — exclamou Dick, adotando um tom admirativo. — A menos que a nossa «mina de prata» tenha sido um logro, nunca pensei que o capital tivesse crescido tanto... Sou levado a pensar que foi tudo por bem...

Dave engoliu em seco.

— Nisso da mina fui eu o primeiro enganado. Quando a inspecionei, é verdade que havia alguma prata...

Dicky atalhou-o, primeiro, com o olhar; depois com um tom que parecia o fio duma navalha:

— Sejamos canalhas, mas de cara descoberta. Entendido? Assim entender-nos-emos. Vamos lá ver as salas de jogo. Como dão tanto lucro?

—É que... — Dave passou a língua pelo lábio inferior horrivelmente inchado, rebentado na comissura esquerda.

— Há truques?

— Os habituais...

— Bem. E estas ações? O acesso a estas companhias está limitado. Rapazes com mais dinheiro do que tu não puderam ser admitidos. Que habilidade foi a tua?

— Dispunha de um bom auxiliar, Alden... Criou-se entre toda essa gente. Conhecia os pontos fracos de todos. Atraía-os às nossas salas. Tenho uma, o «Dragon-fly», com gabinetes muito discretos... Alden sabia organizar festas endiabradas...

A coisa começava a tornar-se clara: belas mulheres, drogas, e, no momento oportuno — chantagem! Embora a indignação e a repugnância por tudo aquilo o assaltassem, Dicky mostrava-se imperturbável.

— Compreendo — murmurou numa voz normal, mas forçada. — E esta hipoteca? Caramba! Uma bonita soma... Erik Kelly? Ouve, Dave. Esta quinta não é da tua prometida?

— Hazel não é minha prometida... E o dinheiro emprestei-o ao tutor e não a ela.

— E o tutor tem poderes para gastar o capital dessa rapariga?

— Tem poderes para fazer toda a espécie de melhoramentos na quinta.

—E desbaratou-o a construir jardins nos bosques, e caminhos até ao alto dos montes...

— Assim é.

— Que absurdo! — exclamou Dicky.

— Todas as manias podem ser absurdas para os outros — pretendeu Dave justificar. — Esse homem tem a obsessão de fazer daquela quinta um parque...

— Não. O absurdo é teres compartilhado dessa mania.... Sabias muitíssimo bem que o capital de Hazel ia ficando comprometido. Porque não a preveniste?

Dave quis sorrir cinicamente, mas as feridas da boca impediram-no.

— Vou falar-te com franqueza, Dicky. Interessava-me ter esse homem nas mãos, e que Hazel fosse menos arrogante...

— Compreendo. Só não percebo uma coisa... Se essa rapariga te interessava, devias calcular, por muito orgulho que ela tivesse, que o dinheiro que tu tão prodigamente emprestaste seria sempre uma barreira... Hum! E o vencimento desta hipoteca está próximo. Depois de amanhã...

— Penso conceder-lhe um prazo.

-- Nem penses nisso. Nada de prazos. Negócio, são negócios. Se depois de amanhã...

Dave estava pálido.

— Dicky! Falas a sério?

— Muito a sério! E para que não se iludam vou agora mesmo procurar esse senhor e preveni-lo de que os teus negócios já não dependem só de ti...

— Dicky! Tu não vais perseguir esse pobre homem e a sobrinha!

— Mas porque não? Eu nada tenho que ver com eles. Aliás, com isto só te favoreço. O papel antipático vem todo para mim. Agora é que tu podes fazer de vítima junto dessa rapariga. Até te conviria apareceres-lhe tal qual como estás. Talvez lhe interesse agora a tua cara...

Enquanto falava ia guardando os documentos no cofre forte. Antes de o fechar, alterou a combinação do segredo. Fez sair Dave com ele, e disse a Jimmy, que se encontrava sentado à porta:

— Dave não entrará no escritório enquanto eu estiver ausente.

— Entendido — respondeu o coxo.

Os três meteram por um largo corredor. A perna de pau produzia um rumor seco e cadenciado. Dave parecia ir a caminho do patíbulo. «Porque diabo o preocupa tanto o que vou fazer? — pensava Dicky, cada vez mais intrigado. — Será que ele gosta dela?». Conhecia Hazel muito mal, mas o bastante para admitir que qualquer homem perdesse a cabeça por ela. Qualquer homem, exceto Dave. Este só podia deixar-se guiar pela ambição.

— Vivem nesta rua, não é verdade? — perguntou a Berger, quando chegaram ao quarto onde este ficaria encerrado.

— Sim, vivem nesta rua... Mas hoje devem estar na quinta. Deixa isso para outra altura. Porque não ficas? Posso informar-te de coisas que devem interessar-te muito mais...

— Quando regressar, Dave. Temos tempo.

Momentos depois, Grotto dava-lhe informações pormenorizadas acerca da casa dos Kelly.

— Estão em casa — declarou. — Soube por um Idos criados que regressaram ontem à cidade quase à mesma hora que nós.

Dicky desceu à rua. Não quis que ninguém o acompanhasse. Julgava que ainda não teria inimigos na cidade. Não obstante, pressentia um surdo rumor na sombra, algo que ferozmente irromperia num dado momento.

Enquanto caminhava rua acima, pensava na consternação de Dave ao saber a sua decisão de apertar inexoravelmente o tutor de Hazel. Também recordava a atitude de Hutchinson e Romelle. Durante longas semanas tinham-no obrigado a permanecer longe de São Francisco, alegando que não tinha ainda chegado o momento oportuno de apresentar-se. Afinal, não teria sido a oportunidade do dia anterior igual à ide qualquer outro dia? Todas as suas conjeturas convergiam para o mesmo ponto: o vencimento da hipoteca. Mas porque tinha tanta importância aquela quinta para alguns homens que operavam com tantos milhares de dólares, se podiam fazê-lo com qualquer outra quinta melhor?

Quando Dicky cruzou o umbral da casa dos Kelly, acreditava menos que nunca no que Hutchinson lhe dissera na véspera à noite: que desejava aquela hipoteca para exercer uma represália de tipo moral. Como também não acreditava que Dave tivesse ficado preocupado com o que Hazel pudesse vir a sofrer, pois estava convencido que ela não era — decerto não era... — o que mais lhe interessava...

Veio um criado abrir-lhe a porta. Dicky fez-se anunciar, acrescentando que vinha da parte de Dave Berger. No mesmo instante foi introduzido num gabinete. Mal se sentou, apareceu Hazel. Ao vê-la vestida de mulher, com aquele vestido que, embora sem a audácia do que Romelle envergava na noite anterior, revelava todos os contornos da sua elegante figura, Dicky já não ficou tão seguro de que fosse aquela belíssima criatura o que menos interessava a Dave... Dicky levantou-se, fascinado.

— Bravo! Agora ficava-lhe bem uma daquelas atitudes que adotou com o cigarro...

No dia anterior parecera-lhe uma garota. Agora via que era uma mulher feita, em cuja escultura cada ano dera um golpe de mestre. Ignorava se andaria sempre assim arranjada em casa. Mas logo compreendeu que havia demasiada premeditação naquele requinte para que fosse uma coisa corrente. Em todo os pormenores, na forma de levar cingido o vestido ao busto, no decote que deixava grande parte dos ombros despidos, no penteado, enfim, em tudo se notava um claro empenho em demonstrar que já era mulher.

— Na verdade, não parece a mesma!

— Nem o senhor tão-pouco — respondeu Hazel.

Dicky lembrou-se então de que Romelle, na noite anterior, lhe dissera a mesma coisa, e começou-se a rir. Hazel fitava-o com evidente espanto.

— A verdade é que se não a visse aqui não a teria reconhecido — disse Dicky.

—E eu, se não soubesse que o senhor nos visitar a esta manhã, também teria hesitado muito... Sente-se, por favor.

Ela sentou-se primeiro, cruzando as pernas, e o vestido ficou entufado nas ancas. Depois, inclinando-se um pouco, alcançou de sobre a mesa um estojo e abriu-o.

— Um cigarro?

Nenhum gesto de Hazel parecia afetado. Na forma de acender, de inspirar e expelir o fumo, havia absoluta naturalidade. No fundo, parecia desafiar o jovem, submetendo os seus movimentos ao mais severo exame.

— A verdade é que estou desconcertado —confessou ele.

— Porquê? A mim, sem exagero, parece-me já bastante natural o seu novo aspeto. É tudo questão de roupa, e de sentir-se cada um nos seus direitos. O senhor não é o mesmo que apareceu no bosque, de barba crescida e, possivelmente, sem um dólar no bolso. Eu também já não sou a menina constantemente atemorizada pelos gritos do tutor. Isso já passou à história... Sabe quem se encontra neste momento na sala aqui ao lado? Um advogado e meu tio... O senhor não conhece meu tio Erik, não é verdade? Que pena! Assim não poderá apreciar a mudança que nele se operou também, de ontem para hoje....

Riu-se com alegria, deixou o cigarro no cinzeiro e pôs-se de pé.

— Tantas mudanças! Isto é muito divertido!...

Começou a passear, muito rápida. Agora parecia a rapariga de movimentos sacudidos do dia anterior. Dir-se-ia alhear-se cada vez mais, como se cada passo que dava lhe servisse para afirmar a sua liberdade.

— Não me pergunta por Dave? — perguntou Dicky. — Não estranha que ele não tenha vindo?

— Oh, não! — exclamou, maliciosa e risonha. — Depois do que ontem lhe aconteceu... O senhor sabia muito bem o que fazia amachucando-lhe a cara. Durante alguns dias disporá de campo livre...

— Quer dizer com isso que assistiu a tudo?...

— Desde o princípio. Foi das coisas mais emocionantes que presenciei até hoje.

Continuava a andar pelo aposento, o olhar cada vez mais vivo.

— Surpreende-me vê-la tão contente.

—Tenho muita alegria recalcada. Ontem foi um dia grande para mim. Fiz duas descobertas tremendas. Descobri que Dave, o homem que todos consideravam meu futuro marido, era um cobarde e um patife — parou a olhar para Dicky, com a curiosidade de quem observa um bicho raro. — Eu, no seu lugar, não me teria contentado em dar-lhe uma tareia...

— Nem eu tão-pouco. O simples facto de ver-me aqui não lhe diz nada?

— Sim. Ouvi-lhe dizer ontem que se encarregara de todos os assuntos de Dave... Mas ouvi mais alguma coisa, e esta relacionada comigo —e de novo parou diante dele, desafiando-o com a sua atraente beleza.

Dicky não se perturbou.

— É verdade. Também se falou de si. Mas o senhor, ontem, não me conhecia. Ameaçou Dave de tirar-lhe tudo. E nesse «tudo» estava eu incluída. Não é verdade?

— Podia muito bem desculpar-me, alegando a minha excitação, o desejo de fazer mal. Dizer inclusivamente que não a conhecia... Pois bem, Hazel — pôs-se de pé, a dois passos dela, e fez resvalar pelo corpo da jovem o mesmo olhar lento que na noite anterior dirigira a Romelle.

Havia-se produzido nele, de súbito, uma estranha mudança de espírito. A mesma sedução, a mesma falsidade que vira em Romelle, julgou vê-la em Hazel.

—Quando encontrei o Dave, estava bastante calmo para me aperceber de tudo. E eu já a conhecia o suficiente para saber se valia ou não a pena roubá-la,

Houve um silêncio. Hazel sustinha o olhar do rapaz, incitando-o a que prosseguisse.

— O senhor ainda não me disse se pensa ou não do mesmo modo. Acha que vale a pena incluir-me nos seus planos?

— Receio que não — respondeu Dicky, sem esboçar sequer um sorriso.

Hazel perdeu o aprumo. Primeiro, empalideceu. Em seguida, o corpo estremeceu-lhe, o olhar cobriu-se de fogo e o rosto de suor. A rapariga de movimentos sacudidos apareceu de novo diante dele.

—Não o convenço, não é verdade?! — a sua voz tornou-se rouca. — Comparada com essa diabólica Romelle!...

Dicky fitou-a com dureza.

— Porque diabo fala nela? Que sabe a senhora a esse respeito?

— O que sei? Ouvi ontem o bastante... — soltou um riso estranho, cheio de ironia e despeito. — Ontem tive a esperança de que o senhor fosse um homem inexorável... Mas, afinal, procedeu tão estupidamente como quando Dave o enganou. À noite o senhor foi ao «Fortune». Esteve a conversar com ela... É essa a sua vingança? Devo declarar-lhe que me dececionou bastante!...

Dicky, perante a excitação da rapariga, optou por uma atitude bem-humorada.

— Dececionei-a!... Diabo! Mas se eu ainda não lhe propus que me admirasse!... A minha visita obedece a assuntos de negócios. Vim falar com seu tio.

— Tudo o que tenha a tratar com ele poderá fazê-lo comigo. Eu também me encarregarei de tudo quanto meu tio tem estado até agora a dirigir... Espero que os seus assuntos tenham corrido melhor do que os meus...

— Não lhe têm corrido bem?

Hazel encolheu os ombros, agora subitamente calma e displicente.

— Três quartas partes do meu capital levaram-nos o diabo. Claro que, para me consolar, restam-me alguns recursos. Um seria processar meu tio... Mas não vale a pena. O outro, tentar prendê-lo a si — disse-o com franqueza, num tom de profunda sinceridade, sorrindo de si própria com ironia. — Mas também não vale a pena... Tenho uma rival que joga com vantagem... Bem. O senhor vem falar-nos da hipoteca? Aqui tem a resposta: os senhores podem desde já considerar-se donos dessa quinta!

— Ainda faltam dois dias...

— Não importa. Não penso aplicar nenhum remédio. Meu tio sugeriu-me alguns, mas renuncio a pô-los em prática. Castigo-o assim, pois sempre foi a sua quinta preferida...

Abriu-se a porta de chofre e surgiram dois homens. Um deles era Erik Kelly. O outro, velho também, era o advogado de Hazel. Ambos pareciam consternados.

— Isso não, sobrinha! — e a figura esquelética de Kelly parecia ter perdido metade da estatura, encurvado, os ombros metidos para dentro, o rosto macilento. — Não leve em consideração o que minha sobrinha acaba de dizer...

Ao falar, observava Hazel e Dicky alternadamente, cheio de angústia. Reparou no frio olhar da sobrinha e calou-se.

—Estavam a ouvir atrás da porta? — perguntou ela, glacial. Dirigiu-se em seguida ao advogado: — E o senhor West prestou-se a isso?

Este parecia interdito.

— Menina Kelly... Foi no momento em que íamos a entrar.

— Sinto muito, senhor West, mas o senhor deixa imediatamente de ocupar-se dos meus assuntos...

— Menina!

— Pode retirar-se. Quando quiser, mande-me a conta das maçadas que teve comigo. Puxou o cordão da campainha e pouco depois apareceu um criado. — Acompanhe este senhor.

O advogado estava lívido. Era um indivíduo baixo e gordo. Durante uns momentos a cólera não o deixou falar. Os seus lábios, contraídos, denunciavam um forte tremor. Os olhos brilhavam ferozmente.

— Está bem! Está bem, menina Kelly! Lembre-se que é a senhora que dispensa os meus serviços!

Antes de sair, dirigiu um olhar fulminante a Dicky. Este permanecia impassível. O advogado saiu furioso, Erik Kelly, imobilizado de espanto, fitou de soslaio, aterrado, o rosto da sobrinha;

depois, correu atrás do advogado, chamando por ele:

— West!... Por favor! Ouça-me!...

Mal ficaram sós, Dicky perguntou, em voz baixa e grave:

— Ouça, Hazel. Que se passa aqui?

Encarou-o bruscamente, e pareceu que iria responder com aspereza. Mas devia ter lido muita sinceridade na expressão de Dicky, pois, em seguida, substituindo o tom irritado por outro de funda preocupação, murmurou:

— Não sei. Mas tenho a impressão de que estão todos contra mim.

— Eu não estou contra si. Nem a seu favor — apressou-se a dizer. -- Julgo que ando tão às cegas como a senhora. Ocultam-nos qualquer coisa, a si e a mim... Seria capaz de vir comigo à quinta?

Ela fitou-o surpreendida, mas sem receio.

—Para quê?

— Para encontrar a explicação de muitas coisas confusas. Não posso admitir que seu tio tenha gasto três quartas partes do seu capital em arranjar a propriedade, sem que a senhora o descobrisse.

— A maior parte do dinheiro empregou-o em ações sem valor, aconselhado por Dave.

—E o seu tio será tão incauto que se deixe levar pelo primeiro que o aconselha? Estou convencido de que houve um interesse especial em que a propriedade ficasse comprometida...

Lá fora, ouviam-se passos cada vez mais próximos. Dicky apressou-se a dizer:

— Dave oculta-me qualquer coisa, exatamente como seu tio a oculta de si. Se confia em mim, iremos à quinta imediatamente.

Nesse momento, Erik Kelly assomou à porta. Olhou para Dicky, examinando-lhe o rosto com enorme ansiedade. Este mantinha uma calma inexpressiva.

— Desculpe. Ainda não fomos apresentados —disse, avançando para ele. — O senhor é amigo de Dave?

— Seu sócio -- respondeu Dicky.

Kelly voltou-se para Hazel, adotando um tom de amável censura:

— Foste um pouco severa com West... Ele não o merecia...

A rapariga, sem deixar de encará-lo, começou a rir.

— O que é que se passa? — disse Erik Kelly, intrigado.

-- Simples falta de hábito... Ainda que perdesse tudo, dá-lo-ia por bem empregue só pela satisfação de ver-te assim, quase carinhoso... quase a receares-me... É estupendo! — E as refulgentes esmeraldas dos seus olhos focaram Dicky. — De acordo com o que o senhor me propôs, vamos à quinta. Estarei pronta dentro de instantes...

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