segunda-feira, 14 de junho de 2021

ARZ002.03 Jimmy, o Perna de Pau

Já fora da quinta, Dicky procurou um riacho. O aspeto de Dave não podia ser mais lamentável.

— Lava-te.

Durante um bom bocado, Dave permaneceu inclinado sobre o riacho, atirando ao rosto mancheias de água. Não cessava de cuspir sangue e os lábios estavam agora mais inchados. Encontrava alívio no frescor ida água.

Mas não era só por isto que ele se mantinha inclinado. Esperava um momento oportuno. Julgou enfim encontrá-lo no instante em que Dicky lhe voltava as costas. Havia já algum tempo que tinha escolhido a pedra que deveria apanhar. Agarrou-a de repente, e ia lançá-la quando Dicky saltou para o lado, inclinando-se um pouco e voltando-se em seguida para ele. Dave encontrou-se com o cano de um revólver apontado ao rosto e uns olhos tão temíveis como a arma de fogo.

— Não me obrigues a esmagar-te antes de tempo — preveniu Dicky.

Dave largou a pedra. Pôs-se de pé e retrocedeu uns passos. Agora, que os seus olhos permaneciam desmedidamente abertos, notava-se que o esquerdo tinha a sobrancelha cada vez mais inchada, dando-lhe ao rosto um aspeto grotesco.

Dicky observou-o de alto a baixo. Em mangas de camisa, sujo de terra e de sangue, rosto deformado, dificilmente se reconheceria nele o indivíduo exageradamente bem posto de uma hora antes.

— És o primeiro que me prometi esta manhã — disse Dicky, trocista — quando te descobri a pavoneares-te à frente e atrás da comitiva, inclinando-te agora para dizeres um galanteio às damas que iam neste carro, depois às do outro... Diabo! Tu eras muito mais grosseiro do que eu. Terás de emprestar-me o teu professor de boas maneiras. Não quero destoar...

Sentou-se numa pedra, do outro lado do regato, defronte de Dave. Puxou do maço de cigarros, e, acendendo dois, atirou um aos pés de Dave. Este esmagou-o com o calcanhar. Dicky encolheu os ombros e sorriu defronte de Dave..

— Não me lembrava que a tua boca não está para cigarros... Ah! Terás de recomendar-me ao teu alfaiate. Achas que me arranjará para esta noite um fato de cerimónia? Tenciono frequentar alguns casinos... tanto «nossos» como os dos nossos rivais. E, desde já, não quero privar-me de ver como caminha o «Fortune»...

Dave não pôde evitar um gesto. E só o reprimiu quando Dicky já o havia notado. Gesto que denotava surpresa e, ao mesmo tempo, desejo de que Dicky cumprisse o que acabava de dizer.

— Não achas que vale a pena visitar o «Fortune»? Tenho ouvido dizer que é o «nosso» mais temível concorrente... Dirige-o um tal... Vamos ver se estou bem informado... Um tal Hutchinson. É verdade? Um tipo ambicioso, intriguista, que domina tudo em que toca. Julgo que já te fez passar alguns maus bocados. Começou por te roubar a Romelle...

— Ela nunca me interessou — replicou Dave, embora não tencionasse falar.

— Se eu não conhecesse a Romelle, acreditaria em ti — retorquiu Dicky, com expressão risonha. — Mas essa endemoninhada faz perder a cabeça a qualquer homem que a veja. E a ti interessou-te sempre como mulher e como parceira para o negócio. Uma sala animada por Romelle é negócio seguro... Hutchinson jogou em cheio quando ta roubou. — Vendo o assombro que se pintava no rosto de Dave, perguntou: — O que é que te surpreende? O eu estar tão bem informado?

—A naturalidade com que falas de Romelle! — respondeu Dave, cada vez mais assombrado. --Nunca o poderia supor... Parecias doido por ela.

— Três dias e três noites enterrado numa mina transtornam muitas coisas na cabeça de um homem... Tens um exemplo no que hoje aconteceu contigo: julgaste que eu ia matar-te. Mas não, Dave: pelo contrário. Vim precisamente porque sei que a tua cabeça está em perigo. Hutchinson prepara qualquer coisa contra ti.

Que acertara em cheio viu-se logo, pelo estremecimento que abalou o corpo de Dave, pela expressão do seu rosto e o tremor das suas mãos. Pôs-se a espiar em todas as direções, aterrado, como se de qualquer parte estivesse prestes a irromper um inimigo.

—E deixaste que os meus homens fossem à frente! — exclamou, fora de si. — Claro! Não ia dar-te a oportunidade de os atirares contra mim... Mas não te preocupes. Já tomei as minhas precauções. Jimmy espera-nos com um carro fechado, e poderemos entrar na cidade sem que os teus inimigos nos pressintam. Os teus inimigos, que, por agora, também são os meus. — Atirou com o cigarro, pôs-se de pé e acrescentou: — Vamo-nos embora...

Uma hora mais tarde, depois de terem feito todo o percurso através do campo, entraram numa estrada de segunda ordem.

Num recanto, à sombra das árvores, esperava-os um carro fechado com dois cavalos atrelados. Os cavaleiros aproximaram-se. Em volta do carro não se via ninguém. De repente, abriu-se a portinhola.

Primeiro que tudo assomou a extremidade de uma perna de pau. Depois, uma cabeça maciça, de emaranhada cabeleira grisalha. Um rosto sulcado de rugas profundas e uns olhos pequenos, mas tão vivos, que davam ia impressão de uns olhos grandes, enormes, que dominavam toda a cara.

Esses olhos negros e penetrantes detiveram-se apenas uns segundos no rosto de Dave, desviando-se em seguida. Apareceu então o resto do corpo, de peito robusto. A perna de pau pareceu cravar-se no solo ao descarregar sabre ela todo o peso do corpo. E, quando se endireitou, viu-se que era homem de estatura mediana.

— Olá, Jimmy! Falaste com Grotto? — perguntou Dicky.

— Sim — e olhou para outro lado, como se encarar Dave constituísse um perigo.

Era-o, na realidade, pois a ira mais feroz contra aquele homem que havia sido o causador da sua agonia, da sua perna partida, começava a despertar, ameaçando explodir no desejo de aniquilá-lo quanto antes, embora não fosse esse o plano de Dicky.

— Sobe para a boleia. Eu irei atrás com os cavalos — explicou Dicky. E olhando para Dave: — Entra no carro.

Dave desceu do cavalo e fez um pequeno rodeio a fim ide não passar junto de Jimmy. Este permanecia de maxilares apertados, o rosto cada vez mais vermelho. O espanto constante dos seus olhos provinha das horas de terror no fundo da mina.

Dicky observava o amigo de soslaio. Sabia que era este o momento mais perigoso, em que Jimmy talvez não pudesse reprimir-se, dando livre curso ao seu ódio. Ele, ao menos, lograra um pequeno desabafo atacando Dave, embora correndo um risco de que Jimmy, possivelmente, não teria saído imune. Aliás, o tiro de Dave, no momento em que simulava socorrer Grotto, a verificar-se contra Jimmy, talvez tivesse tido outras consequências. Nada diria deste tiro ao amigo, para não lhe avolumar o ódio. Convinha que Jimmy permanecesse o mais sereno possível. Quando Dave entrou no carro, Dicky bateu no ombro de Jimmy.

— Bem, a caminho — e, em voz baixa, acrescentou: — Adaptou-se facilmente à nova situação.

— Sim — resmungou Jimmy. — Grotto já mo disse. Muito adaptado, sobretudo quando disparou à traição contra ti!... Não sei para que são tantas contemplações com esse bicho!...

Dicky voltou a bater-lhe amistosamente no ombro, e disse, sorrindo:

—A cidade, Jimmy!...

 

 

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