terça-feira, 15 de junho de 2021

ARZ002.04 Armas que aparecem onde menos se espera

Não foi preciso que o alfaiate de Dave se apressasse a fazer um fato de cerimónia para Dicky, pois encontrou roupa à sua medida na própria casa de Dave. Foi Grotto quem, depois de haver calculado o talhe de Dicky, desapareceu num dos quartos e logo regressou carregado de roupa.

—Prova para ver... Nem por medida lhe assentaria melhor.

— De quem é esta roupa? — perguntou Dicky.

Grotto atrapalhou-se.

— Não interessa — mas, sabendo que Dicky não ficaria satisfeito com aquela evasiva, explicou: —Quando Dave começou a actuar em São Francisco, um indivíduo muito bem cotado entre as melhores famílias ajudou-o. Um tal Alden Hart, bastante bom sujeito, mas muito pouco esperto.

Grotto interrompeu-se a fim de olhar para a porta, atrás da qual se encontrava Dave deitado. A chave havia sido confiada a Jimmy.

— Pouco esperto porquê? — perguntou Dicky.

— Ignoro em que momento começou a ser para Dave mais um estorvo do que uma ajuda. Apercebeu-se a tempo.

De novo se calou. Mas a reticência falara claramente.

— Total: outra mina abatida e Alden Hart lá dentro — concluiu Dicky.

—Não; mas, de certo modo, foi coisa parecida com isso. Alden era muito dado ao jogo. Mas não costumava jogar nos estabelecimentos de Dave, porque era demasiado conhecido dós «croupiers» e sabia que às vezes lhe faziam «favores». Preferia as mesas estranhas... Dave, uma noite, incitou-o: «Queres uma partida emocionante, Alden? Vai ao «Fortune» e pede a Romelle que se sente a teu lado à mesa de jogo». «Mas ela conhece-me e julgará que é uma provocação...». «Claro! Será essa a emoção da partida...». Alden gostava do perigo. Passaram uns momentos e disse: «Aceito, desde que me acompanhem dois dos nossos rapazes...». Foram designados para acompanhá-lo dois dos que esta manhã estiveram na quinta dos Kelly. Seguramente não teria acontecido nada: Lucas e Moseley não são maus rapazes, embora, chegado o momento, saibam disparar como os melhores... Mas Dave ordenou-lhes que apenas vissem Alden à mesa de jogo saíssem do «Fortune». Obedeceram à ordem, e Alden, distraído com o jogo, não reparou que se encontrava sozinho. De vez em quando dirigia um galanteio a Romelle. Esta permanecia carrancuda...

Dicky, enquanto o ouvia, acabava de vestir-se em frente do espelho. Bem barbeado, o seu rosto moreno, de feições corretas, parecia ainda mais escuro ao contrastar com a brancura da camisa. Antes de enfiar o casaco, ajustou no ombro esquerdo o coldre da pistola. Entretanto, Grotto calara-se, observando-o.

—Continua —pediu Dicky.

— Em pormenor, não sei o que aconteceu. Há quem diga que, numa jogada de sorte, Alden abraçou Romelle e que esta o esbofeteou... A verdade é que se armou um tumulto e soaram dois tiros. Alden caiu com o coração atravessado. Na frente dele, encontrava-se um dos atiradores de Hutchinson... A Alden encontraram-lhe um revólver na mão direita... Mas eu nunca o vi usar armas...

— Isso não evita que em dado momento apareçam onde menos se espera... — comentou Dicky, num tom que parecia de perfeita indiferença. A verdade, porém, é que tinha ouvido tudo com a máxima atenção. A parte outros aspetos do relato de Grotto, havia dois muito significativos e que o afetavam diretamente. Um era que, tanto Grotto como os seus companheiros, se encontravam seguramente numa situação em que temiam tanto o próprio chefe como Hutchinson, cabeça do bando contrário.

— Grotto, faz vir aqui os rapazes — disse Dicky, de repente.

Este parecia estar à espera dessa ordem.

— Sim. Vou imediatamente... Já lhes falei de ti. Estão desejosos de conhecer-te.

Grotto saiu. Dicky foi à procura de Jimmy.

— Abre.

Quando o coxo abriu o quarto em que se encontrava Dave, este acabava de se levantar da cama. Envolto num roupão de seda, passeava no aposento sustendo um lenço contra a boca. Ao ouvir a fechadura, ficou-se a olhar, tomado de medo.

— Olá... Como vamos? — perguntou Dicky com a maior naturalidade. — Chamei os teus homens. Conviria que ouvissem de ti próprio que sou... teu «sócio», e que até que te restabeleças por completo deverão obedecer às minhas ordens. — Sem se importar com o efeito que as suas palavras produziam, acrescentou: — Vou sair. Com certeza virei tarde. De modo que até amanhã não poderemos tratar a fundo do andamento dos negócios. Procura descansar esta noite. Amanhã trabalharemos a sério...

Ouviu-se lá fora rumor de passos e tilintar de esporas.

— Entrem! — autorizou Dicky.

Os homens que tinha visto na quinta de Hazel, acompanhando Dave, apareceram atrás de Grotto. Este fez as apresentações sem olhar uma só vez para Dave.

Quando pronunciou os nomes de Lucas e Moseley, Dicky fitou-os demoradamente.

— Foram vocês que acompanharam Alden, na noite em que ele foi ao «Fortune»?

Ambos desviaram a vista.

— Em princípio, sim — murmurou Lucas.

— Vamos a ver se nos entendemos. O que queres dizer com isso?

— Que logo se mudou de plano — respondeu Moseley, mais decidido que o seu companheiro.

—E Alden, ou seja, a pessoa mais interessada, conhecia o novo plano? — perguntou Dicky, de repente.

—Não.

— Porquê, Dave? — inquiriu, voltando-se de frente para ele.

Dave permanecia rígido. Retirara o lenço da boca e fixava tenazmente os que até àquele dia haviam sido seus contratados, rogando-lhes que se lançassem sobre Dicky. Este compreendeu perfeitamente o seu olhar e advertiu:

— Não te agarres a impossíveis, Dave... Agora, diz-lhes quem sou e em que qualidade me encontro a teu lado.

—Dicky Root é meu sócio — murmurou Dave, depois de uma pausa, ante o olhar inexorável de Dicky. — Partilharemos esta casa, os negócios, tudo...

— Tudo, não — atalhou Dicky, de chofre. — Patifarias como as de Alden, não. Espero não encontrar muitas à tua responsabilidade... Estou certo, até, que não acontecerá mais nenhuma...

Momentos depois, o quarto de Dave voltava a ficar fechado. E quando Dicky se dispunha a sair à rua, Grotto quis acompanhá-lo.

— Não. Nesta cidade não tenho inimigos.

— Mas se vais ao «Fortune»!...

— E vou mesmo!

—E Romelle? Não receias que...?

— Romelle há muito tempo que está convencida de que mais tarde ou mais cedo hei de aparecer diante dela... e não receia esse momento. Estou certo de que o deseja. Prová-lo-ei esta noite...

Romelle não podia surpreender-se de ver Dicky, pois estava exatamente à espera dele. Surpreendeu-a apenas o aspeto do jovem. Os seus grandes olhos negros ficaram uns momentos comovidos, observando a imagem do homem que a defrontava.

De súbito, o seu busto opulento deixou de palpitar. A seda que lhe envolvia o corpo soberbo acentuou-lhe mais os contornos. Instintivamente, Romelle preparou-se para a defesa. O homem que tinha diante de si, sendo o mesmo que ela tão bem conhecera, parecia-lhe diferente, situado num plano de superioridade que ela não podia admitir.

Enroscou-se no ténue vestido, dando ao corpo a fascinação duma chama. Dicky permanecia em pé diante dela, esboçando um sorriso indefinido. O seu olhar resvalava na excitante figura, de tal modo que parecia não a ver, talvez porque a sua atenção se encontrava muito longe dali. Bom.

— É assim que me recebes? — perguntou Dicky, com ar divertido. — Hutchinson disse-me que me esperavas...

— Sim, Dicky. Posso apertar-te a mão?

— Certamente!

Ele mantinha o propósito de lhe tocar apenas. Mas ela agarrou-lha com força. E, retendo-a, semicerrou os olhos, inclinando a cabeça para trás.

— É incrível, Dicky!

Soltou-lhe a mão e sentou-se, convidando-o a sentar-se diante dela. Encontravam-se num gabinete reservado do «Fortune». Podiam ver a sala e tudo quanto ali se passava, mas ninguém podia vê-los por causa das gelosias.

—O que é que te parece incrível?

—Não sei... A tua cara é a mesma, mas, apesar disso... Já não tens aquele ar de menino que por tudo e por nada apanhava um açoite... — a sua boca, de corte voluptuoso, abriu-se num sorriso alegre. — É verdade, Dicky! Parece-me que hoje não me atreveria a brincar contigo, como antigamente. Impões um pouco de... Hutchinson não te definiu bem ontem à noite, quando me disse que tinha falado contigo: «Que te pareceu?», perguntei-lhe. Parecia não acreditar que eu tinha acertado na escolha. «Duvido que seja o homem de que precisamos», respondeu. Pois bem, Dicky, estou mais segura do que nunca de ter acertado. Como é que Hutchinson estava tão cego? Mais desconcertante que a atraente beleza de Romelle só o seu desplante e o seu cinismo. Mas nada disto pareceu influir em Dicky.

— Talvez o fato — respondeu, com uma naturalidade que naquele momento resultava humorística. — Apresentei-me ao teu amigo tal como chegara à cidade.

Romelle fitava-o cada vez mais intrigada.

— Não me perguntas porque me desinteressei de ti?

—Não — replicou ele, indiferente. — Julguei que tinhas morrido numa discussão ao jogo. Quando Dave mo foi dizer a Los Angeles já se tinham passado várias semanas. Depois de tudo, eu não podia sentir qualquer obrigação para contigo. A tua última rabinice parecia definitiva. Partira para Los Angeles convencida de que tu e eu não voltaríamos a dar-nos. É verdade, Dicky, eras um menino insuportável...

Romelle esperava que ele, embora aborrecido, ao menos permanecesse sério. Mas encontrou-se com uma rotunda gargalhada, cheia de funda e plena hilaridade.

— Compreendo.

— Deveras, não te aborrece que diga isso de ti? — perguntou ela, cada vez mais intrigada.

— De mim?... Eu nada tenho que ver com aquele que tu conheceste, Romelle. Ainda não deste por isso?... Pois bem, falemos do que interessa. Associaste-te com Dave...

Demorou uns instantes a responder, espantada com a naturalidade de Dicky.

— Sim... Éramos sócios; simplesmente sócios, asseguro-te...

— Isso não me preocupa. Quando é que se separaram?

— Quando Dave se convenceu que as relações comigo iam ser um estorvo...

— Um estorvo porquê?

— A amizade com um tal Alden permitira-lhe introduzir-se na alta sociedade. Dave preparava certos golpes financeiros, que lhe dariam uma situação definitiva. Compreendi a tempo que o prejudicava e associei-me com Hutchinson...

— Para fazer guerra a Dave?

— Para lhe dar uma lição. Já há algum tempo que Dave impedia Hutchinson de entrar no grande mundo, valendo-se da sua amizade com Alden.

— Alden Hart! — e Dicky, maquinalmente, examinou o fato. — Parece que pagou bem caro as suas torpezas. Não morreu aqui?

— Sim... Mas não foi porque Hutchinson quisesse a sua morte, como com certeza te disseram. Esses rumores foi Dave quem os propalou com más intenções. Assim o grande mundo fechava-se cada vez mais a Hutchinson.

—Então, como morreu ele?

— Alden assediava-me quando eu estava com Dave. Hutchinson é zeloso, mas sempre evitou agredir Alden: primeiro, porque não o considerava um verdadeiro rival; depois, porque sabia do seu ascendente nas altas esferas, e por nada do mundo o agrediria encontrando-se num estabelecimento de que ele era dono...

Dicky havia adotado uma expressão irónica.

— Então... foi ele que se matou?

— Não. Foi um dos homens de Hutchinson. Um homem que recebia de Hutchinson... e também de Dave. Quando o averiguámos, apanhou a sua conta. Mas a manobra de Dave pôs contra nós a melhor gente de São Francisco, não pôde remediar-se... Então decidimos combater Dave com armas tão eficazes como as que ele costuma empregar.

—E para isso estou eu aqui...

— Sim. Numa das minhas viagens a Los Angeles encontrei-me com Jimmy. Soube então o que lhes tinha acontecido com Dave... Disse-me que tu trabalhavas numa quinta, que se alimentavam os dois com o que tu ganhavas, e que ainda poupavam alguma coisa para irem um dia à procura de Dave... Depois, mandei um homem de confiança, avistar-se contigo. Expôs-te claramente a situação, não é verdade?

— Sim, se bem que no primeiro momento não me tenha parecido lá muito clara — respondeu Dicky.

O que o emissário de Romelle e Hutchinson lhe propusera logo de início era que não intentasse averiguar mais do que se lhe dizia, até que chegasse a hora oportuna.

— Queríamos entregar-te Dave no momento mais propício para o teu golpe. Essa hora chegou... É íntimo das melhores famílias da cidade. Muito considerado por todos e a ponto de nos conseguir relações...

Dicky voltou a soltar uma gargalhada.

— Que absurdo, tudo isto! -- exclamou, pondo-se repentinamente sério. — Retiveram-me algum tempo longe daqui, e os meus nervos e os de Jimmy estiveram várias vezes a ponto ide rebentar. «Ainda não é a hora!» era a vossa cantilena habitual. Que hora? Que há por detrás de tudo isto? Dave não tem situação nenhuma! Dave é um animal!

— Já o encontraste?

— Naturalmente! Estou em casa dele!

Romelle mostrou-se alarmada.

— Dicky! Não confies!... Vais meter-te em sarilhos... Falou-te de negócios?

— Ainda não tivemos tempo para isso.

Romelle respirou.

— Por isso falas assim. Quando os conheceres, talvez fiques deslumbrado... — Interrompeu-se ante o olhar duro, inexorável, que Dicky lhe dirigia. — Em que pensas? Porque me olhas assim?

Dicky pôs-se de pé.

—Ao fim e ao cabo, tu e o Hutchinson pretenderam o mesmo ao chamar-.me aqui. — O seu olhar foi percorrendo lentamente o corpo da mulher. -- Sem dúvida, estás mais bonita do que eras, Romelle; mas...

Ela também se levantou, num gesto irado. Nesse momento abriu-se a porta do gabinete, e apareceu um homem elegantemente vestido, de estatura mediana e feições enérgicas. Ao vê-lo, Dicky fez uma careta.

— Hutchinson, o senhor chega a tempo —disse, dando-lhe a entender com o olhar que sabia que ele tinha estado à porta a escutá-los. — Tenho outros encontros esta noite e desejaria ser breve. Poderá o senhor expressar-se mais claramente que Romelle?

Hutchinson sorriu, mordaz.

—Duvido que haja alguma coisa mais clara que Romelle... De que quer o senhor que eu lhe fale?

— Ontem à noite dei-lhe a minha palavra de que não acabaria com Dave no momento em que o encontrasse, e cumpri. Agora cumpra o senhor o que prometeu. Quero saber qual é o vosso interesse para que eu subjugasse Dave em vez de exterminá-lo...

Hutchinson, num gesto repousado, indicou a cadeira que Dicky acabava de deixar.

— Sente-se, por favor. E tu também, Romelle. Vão-nos trazer champanhe.

Mal acabou de o dizer, apareceu um criado trazendo uma bandeja. Foi o próprio Hutchinson quem desrolhou a garrafa e encheu três taças.

— Está claro que se o senhor tivesse acabado com Dave, a estas horas seria o primeiro a lamentá-lo, pois estaria tão pobre como quando chegou a São Francisco e com muitas mais complicações... Ora isso seria absurdo. As informações que tenho a seu respeito apresentam-no como homem de admirável sentido realista. De um dia para o outro, o senhor convenceu-se que o seu amigo lhe havia estafado trinta e cinco mil dólares... Deixemos agora de parte o ele ter atentado contra a sua vida. É importante, já se vê, mas não deve contar agora... pensemos apenas nos seus trinta e cinco mil dólares. Com o decorrer do tempo, esse punhado de notas frutificou. Tem, portanto, direito a participar desses benefícios. E qual a forma de o conseguir? Essa é que é a questão: subir, com os mesmos direitos, ao carro de Dave... Julga que não o poderá fazer?

— Já o fiz — respondeu friamente Dicky.

— Deveras? Então, que mais quer? Com certeza não pretende que lhe digamos o que deve fazer a partir deste momento...

— Hutchinson, quero que me digam com toda a franqueza o que é que os senhores esperam que eu faça.

— Apanhar a direção dos negócios de Dave. Segundo o senhor disse, tem documentos que obrigam Dave a repartir consigo todos os negócios.

—Exato. E uma vez conseguido isso... — ficou-se a olhar para os dois, instigando-os a que falassem.

Hutchinson juntou as mãos e afastou-as em seguida. Depois, encolheu os ombros.

— Depois... — murmurou.

— Acabo com ele — atalhou Dave, com fria calma. — Não é isso o que pretendem? Exijo franqueza...

— Isso dir-lho-ão as circunstâncias.

Dicky fez uma careta. Dirigiu um olhar penetrante a Hutchinson e a Romelle. Um olhar em que havia mais repugnância que ódio.

—Não tendo exterminado Dave esta manhã... sentir-me-ia o homem mais miserável se atentasse depois contra a sua vida com o pretexto de fazer justiça. Que isto fique bem claro!

Hutchinson começou a olhá-lo de outra forma, quase com admiração.

— Gosto da sua atitude... Mas quero que saiba que não necessitamos do senhor para eliminarmos Dave. Bastará que esteja a seu lado e lhe faça sombra. Isso acabará com ele... Onde se encontraram? Na quinta dos Kelly, como ontem à noite lhe sugeri?

Dicky anuiu com um movimento de cabeça; Romelle, que não deixara ainda de fixá-lo, ficou em expectativa.

— E viste essa rapariga? — perguntou, com um interesse que fez com que Hutchinson se voltasse para ela.

—A Hazel?... Sim, vi-a...

—E... parece-te que vale a pena arrebatá-la a Dave? — prosseguiu Romelle, observando com ansiedade o rosto de Dicky.

Precisamente pelo interesse que surpreendeu na voz de Romelle, iludiu a resposta. E levou a conversa para o ponto inicial.

— Suponhamos que chego a dominar todos os assuntos de Dave... Que espera então de mim? — perguntou, examinando Hutchinson.

— Que negociemos. Vou falar-lhe com toda a franqueza. Dave conseguiu introduzir-se em duas companhias mineiras nas quais eu não pude entrar, porque um dos principais acionistas, Erik Kelly, tutor da senhora Hazel, opôs-se sempre a isso, sem dúvida instigado por Dave. Pois bem. Tenho o meu orgulho e ainda que me oferecessem de mão beijada o cargo de presidente dessas companhias, recusá-lo-ia. Apesar disso, hei de vingar-me. Dave tem uma hipoteca sobre a propriedade em que o senhor esteve esta manhã. A rapariga ignora-o. O tio desfalcou-lhe o capital em negócios absurdos aconselhados por Dave. O casamento deste com a sobrinha poderia resolver tudo. Bem. A minha pretensão é esta: venda-me a hipoteca que Dave tem sobre essa quinta. Pagarei pelo seu justo valor. E não receie ferir com isso os sentimentos de Hazel, se, como suponho, essa rapariga lhe interessa. Ela detesta a quinta, precisamente por ser a preferida do tutor... Já a percorreu toda? É a obra dum maníaco: jardins dentro dos bosques mais afastados; caminhos cortados a pique até ao cimo dum monte escalvado...

— Sendo assim, para que diabo a quer o senhor?

— Para dar a esse velho Kelly o golpe que merece. E também a Dave. A hipoteca vence-se dentro de poucos dias. Sem que Dave o suspeite, passe-ma quanto antes. E quando se souber que o dono da quinta sou eu, Dave e o velho Kelly combater-se-ão de morte. Então, o caminho para a rapariga ficará completamente livre, e até favorecido, pois o senhor poderá retratar-se à última hora, já que os escrúpulos o impedem de reter esse dinheiro. Cede-lhe cavalheirescamente o valor da hipoteca, e Hazel fica a dever-lhe uma gentileza e um pesadelo a menos, pois é o que a quinta tem sido para ela.

Dicky receou que as ideias que lhe tumultuavam na mente transparecessem nos olhos e, por isso, os desviou, evitando assim os de Hutchinson e os de Romelle.

— Isso já me parece mais claro — murmurou, em atitude pensativa. — Que o senhor esteja disposto a empregar uma boa soma de dinheiro para satisfazer uma vingança, parece-me perfeitamente lógico...

Reparou que a sua voz havia tomado um tom demasiado frívolo, e calou-se, temendo que eles percebessem que estava simplesmente a desfrutá-los. Porque, para consigo, Dicky pensava: «Agora está mais confuso. Que haverá por detrás de tudo isto?».

— Acha bem? — perguntou Hutchinson.

— Mas certamente! O desejo de vingança pode levar-nos às mais estranhas atitudes... Se, quando eu e o Jimmy nos encontrávamos no fundo da mina, alguém nos tivesse dito que ainda um dia viveríamos com Dave debaixo do mesmo teto... — começou a rir. — Bem. Dê-me umas horas para refletir... Quando quer o senhor uma resposta. Hutchinson?

— Esperava que ma desse ainda esta noite —respondeu o outro, forçando um sorriso. — Ao menos dê-me a sua palavra que Dave não saberá nada desta nossa conversa.

— Pode ficar descansado. Nada mais, Hutchinson?

— Nada mais... até o momento em que o senhor faça um preço à hipoteca, o que, como já lhe disse, terá de ser com urgência...

— De acordo.

Sorrindo, estendeu a mão a Romelle. Esta percebeu então como ele o fazia friamente. Quando, pouco depois, Hutchinson e Romelle ficaram sós, o homem viu que ela se havia transfigurado, e que os seus olhos fulgiam de forma inusitada.

— O que é? Em que pensas.?

Ela encarou-o quase com ódio. E, de repente, lançando a cabeça para trás, rompeu em estrondosas gargalhadas. O seu busto magnífico modelava-se na seda do vestido em estremecimentos muito acentuados. Hutchinson mostrava-se irritado.

— O que é? — insistiu em voz surda.

— Que idiota que tu foste! Que idiota...

O riso não a deixou prosseguir nem ver que a atitude dele não era propícia à hilaridade.

— Fala! O que é? — repetiu. Apertava-lhe o ombro nu.

— Não vês o que pode acontecer?... Pois se tu próprio lhe deste uma pista! Não percebeste que já não era o mesmo homem que tu viste ontem à noite?... Duvidavas que Dicky fosse o homem que nos fazia falta. Pois acertaste, Hutchinson! Acertaste!... Dicky não é o homem de que precisavas. É mais esperto do que tu... Vais ver que te faz alguma!

— Ai dele, se o fizer! — regougou, ameaçador.

— Podes ter a certeza que te enganará... É muito diferente do Dicky que eu conhecia. Muito diferente! — E ficou-se em atitude evocativa, de olhos vagos e tristes.

A ideia de que Romelle relembrava antigas carícias cegou o homem. E, sem hesitar, esbofeteou-a atrozmente.

— Acorda!

Ela afogou um grito e levantou-se, indignada e atónita.

— Que fizeste?!

O rosto de Hutchinson adquiriu uma expressão medonha. Os seus olhos pareciam cheios de fogo.

— Romelle! Desde o princípio que eu hesitei em chamar esse homem. Na tua forma de olhá-lo pude ver que tinha razão. Ouve o que te digo. Sei que estás despeitada por ele se ter mostrado indiferente... Tentarás atraí-lo... Mas lembra-te do que eu fiz a Alden! Embora não me conviesse...

O assombro alterou a resposta que tinha já preparada:

— Tu?! Tu mandaste matar Alden?! Disseste que foi um homem pago por Dave...

—E era. Mas eu soube-o a tempo e não o evitei. Interrompeu-se a fim de respirar e acalmar-se um pouco. Enquanto permaneceram calados, Romelle manteve-se rígida, com ar ausente. — Não te esqueças — disse, numa súbita calma.

Tomou-lhe o braço e acrescentou:

— Vamos. Na sala há uns senhores de Sacramento que desejam ver-te.

Romelle não opôs resistência. Deixou-se levar num passo maquinal, presa a imaginação outra vez ao passado...

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