quinta-feira, 29 de agosto de 2019

ARZ014.12 Nova emboscada durante a fuga

O local estava protegido do vento do Norte por um desnível cortado a pique, e que interrompia a monotonia da imensa pradaria.
Entre uns álamos serpenteava um riacho que proporcionava erva tenra e viçosa aos cavalos. Foi Cliff quem o escolheu para passarem a noite. As montanhas ficaram já muito para trás, mas antes do dia seguinte não chegariam a Tonopah.
O jovem, antes de decidir-se, olhou pensativo para o fatigado Bobby, que parecia prestes a dormir nos seus braços.
— Não o podemos obrigar a seguir. Se se tratasse só de si e de mim poderíamos fazer um esforço e viajar toda a noite até chegar a Tonopah. Mas Bobby precisa dum descanso, não poderia resistir a um esforço tão grande — murmurou Nancy.
Cliff assentiu.
— Tem razão. Teremos de passar aqui a noite.
Depois de comerem uma refeição frugal, deitaram o pequenito imediatamente. Entre o calor das mantas, adormeceu quase em seguida.
Cliff enrolou um cigarro e começou a fumar. As chamas da pequena fogueira iluminavam o seu rosto com resplendores avermelhados. Nancy, sentada um pouco mais afastada, contemplava-o em silêncio.


Decorreram uns minutos antes de perguntar com voz muito baixa:
— Cliff, porque não matou você o Hudson, quando o tinha à sua mercê?
O jovem enrugou a fronte e atirou ao ar uma espessa fumaça.
— Não sei — respondeu secamente.
Nancy não afastava dele o olhar.
— Você teve uma oportunidade para se desfazer dum inimigo mortal, dum inimigo que não ficará satisfeito enquanto não acabar consigo.
Cliff chupou uma fumaça do cigarro.
— É verdade. Hudson odeia-me e não descansará até matar-me.
— Então arrepende-se agora de não lhe ter dado um tiro esta manhã, quando ele estava inconsciente no chão?
O jovem fumou pensativo durante uns momentos.
— É curioso, mas não lamento ter procedido assim. Penso que não devem ter-se escrúpulos quando se trata de tipos como Hudson. Mas embora ele estivesse disposto a matar-me quando eu tinha o revólver descarregado, para mim foi impossível disparar contra um homem indefeso. Nunca o fiz, e creio que nunca o farei. Provavelmente portei-me como um imbecil.
— Eu não o julgo assim — murmurou ela, com voz muito suave.
Pela primeira vez, Cliff voltou o rosto para a rapariga.
— Porquê?
Nancy contemplou as chamas da fogueira.
— Quando hoje o vi respeitar a vida daquele homem, dum homem que não teria hesitado em o assassinar a si a sangue-frio, senti uma grande alegria, Cliff, porque você mesmo confirmou o pressentimento que tive no dia em que o encontrámos ferido na pradaria. E agora estou mais contente que nunca de ter-me calado sobre a sua identidade, sobretudo sabendo a causa da sua inimizade com Hudson e a sua quadrilha.
Ele atirou a ponta do cigarro para a fogueira.
— Cliff, porque não quis contar-me, porque não me disse que o ódio de Lloyd é porque você enfrentou parte dos seus homens para conseguir que eu pusesse a salvo as crianças da escola quando do assalto a Clarenceville?
Ele encolheu os ombros.
— Que necessidade tinha de dizer-lho?
Nancy fitou-o, desconcertada.
— Mas não compreende a importância que isso tem? É... é a chave para saber que espécie de homem é você na realidade. E tive de sabê-lo por Hudson; você não foi capaz de mo contar. Não consigo perceber que razão teve para não mo dizer.
Cliff parecia incomodado.
— Ora, nem eu mesmo sei porque o fiz. Suponho que foi por estar farto de Hudson.
Nancy pôs-se de pé e foi até junto dele, fitando-o com estranha insistência.
—É possível que isso seja verdade, mas só em parte. Além de estar farto de Hudson, moveu-o outra razão para enfrentar-se com ele; você não podia consentir que atacassem crianças indefesas.
O jovem torcia-se, nervoso.
— Olhe, Nancy...
— Deixe-me continuar, não se envergonhe por ter procedido como um homem bom e corajoso, porque cada vez vou tendo mais a certeza de que você é precisamente isso, um homem bom e valente, que sofreu muito, e a quem os seus semelhantes trataram muito mal. Foi o seu amor à Justiça que o lançou por um caminho errado.
Cliff deitou o chapéu para a nuca e ergueu os olhos para a rapariga.
— Não se deixe arrastar pela imaginação, Nancy. Eu não sou bom, cometi muitos erros na minha vida e ainda não sei porque fui em defesa desses pequenos.
As pupilas dela brilhavam quando disse em tom arrebatado:
— Mas sei eu, Cliff. Você foi em sua defesa porque é um homem dos pés à cabeça, porque é demasiado nobre e honrado para consentir o assassínio de crianças indefesas. E permita-me que lhe diga haver muito poucos, para não dizer ninguém, capazes de enfrentar sem ajuda a quadrilha de Lloyd Hudson. Ouve-me bem? Há muito poucos com a coragem necessária para correr o risco que você correu.
Cliff pôs-se de pé.
— É melhor ir deitar-se, Nancy. Tanto você como eu precisamos dum bom descanso, e o falar demasiado, só contribuirá para aumentar a sua fadiga.
Ela contemplou-o em silêncio durante uns momentos.
— Está bem, Cliff. Mas estou decidida a demonstrar-lhe que a Humanidade não é constituída exclusivamente por canalhas.
A rapariga deu meia volta e afastou-se para o lugar onde dormia Bobby. Cliff embrulhou-se na sua manta e deitou-se no chão a curta distância da fogueira. Mas coisa estranha nele, nessa noite o sono mostrava-se fugidio. Continuou acordado durante muito tempo, pensando nos acontecimentos do dia. Ainda não compreendia porque não disparara contra Hudson, quando o teve completamente à sua mercê. Esteve quase- a fazê-lo, mas uma força misteriosa impediu-o de puxar o gatilho.
De repente, experimentou uma sensação de culpabilidade, como se uma voz íntima o acusasse de assassínio e não pôde fazê-lo, embora com isso entregasse a sua própria vida. Outra coisa que o desconcertava era a conduta de Nancy. Primeiro, ocultara a sua identidade, não a revelando ao xerife e agora, num momento crítico para ele, quando Hudson ia matá-lo, arriscava a vida para salvar-lhe a dele. Porquê? Era uma pergunta à qual, por mais voltas que desse à cabeça, Cliff não encontrava resposta.
Com a impressão de não ter dormido, acordou quando o sol despontou os primeiros raios no horizonte leste. Pôs-se de pé e, aproximando-se do lugar onde Nancy dormia, abanou-a suavemente num ombro. A rapariga ergueu-se sobressaltada.
— Que aconteceu?
— Nada, nada. Não se assuste — tranquilizou-a ele. — Já é dia e convinha que nos puséssemos em marcha.
A rapariga permaneceu uns momentos aturdida. Cliff contemplou-a em silêncio. Com os cabelos em desordem e os grandes olhos velados pelo sono, estava mais formosa que nunca. Levantou-se afastando as mantas e arranjando as roupas. O seu olhar encontrou-se com o do jovem e, durante uns segundos, ficou indecisa, ao mesmo tempo que o rubor lhe subira às faces.
Cliff franziu as sobrancelhas e voltou-se para Bobby que naquele momento se espreguiçava.
— Vamos, levanta-te. Vais passar a vida a dormir? O pequeno esfregou os olhos e ocultou um bocejo.
— Tenho muito sono.
— Quando chegarmos a Tonopah, poderás dormir todo o tempo que quiseres.
Recolheram todas as coisas e momentos depois punham-se em marcha. Tinham já percorrido vários quilómetros, quando Cliff deteve o cavalo bruscamente. Nancy olhou-o admirada.
— Que tem, Cliff?
O jovem continuava completamente imóvel, com todos os sentidos alerta.
— Ainda não sei — murmurou. — Mas qualquer coisa me diz que nos ameaça um perigo.
A rapariga olhou em volta. A pradaria parecia deserta.
— Não se vê nada.
Todavia, o jovem não parecia muito tranquilo.
— Porque não continuamos? — protestou Bobby admirado com a paragem. — Tenho pressa de chegar a Tonopah.
Cliff humedeceu os lábios.
— Sim, continuemos. Talvez fosse uma falsa impressão.
Retomaram a marcha, mas Cliff não recobrou a tranquilidade. Os seus olhos moviam-se continuamente, tentando revistar o terreno por onde avançavam. De súbito, soou uma detonação e Cliff, levando a mão ao ombro direito, caiu da sela. Um novo tiro seguiu o primeiro, e o cavalo do jovem, depois dum breve e desesperado espernear caiu morto. Cliff, no chão, gritou:
— Nancy, deite-se no solo! Você e o Bobby deitem-se no chão!
A rapariga apressou-se a obedecer à ordem, ocultando-se, em companhia do pequeno, num desnível do terreno. Soaram novos tiros, que levantaram pequenas nuvens de terra a curta distância do local onde Cliff se encontrava estendido ao comprido.
Com o semblante crispado pela dor e pela angústia, olhou para uma próxima colina donde partiam os fogachos. Com a mão esquerda procurou o revólver, visto que a mão direita estava imobilizada por causa da bala recebida.
Sentiu desejos, como naquela noite depois do assalto a Clarenceville, de cessar a luta e deixar-se matar. Era uma quadrilha inteira contra ele, um grupo de homens ferozes que o tinham encurralado naquele recanto de Nevada. Fizesse o que fizesse, acabava por tropeçar sempre com eles, cortavam-lhe todas as possíveis saídas e, com o tempo acabariam por liquidá-lo.
Mas agora estavam também em perigo Nancy e Bobby. Só eles o impeliam a fazer urna desesperada tentativa de defesa. Tinha de lutar pela rapariga, embora fosse apenas para demonstrar-lhe o seu agradecimento.
Continuou completamente imóvel, com a esperança de que os seus agressores imaginassem tê-lo morto. Se não desse nenhum tiro e aguentasse impassível a chuva de balas que caía à sua volta, era muito possível que o supusessem liquidado.
Os tiros disparados da colina foram rareando. Cliff procurou olhar de soslaio para Nancy e Bobby. Estes também não se moviam. O jovem sentiu que o outro ombro começava a doer-lhe, e que o sangue ia ensopando a camisa. Apertou os dentes com força para conter-se e esperou.
O tiroteio cessara por completo. Cliff manteve-se com todos os músculos tensos, enquanto a mão esquerda se crispava em torno da coronha do seu revólver. Decorreram uns segundos e apareceram três homens no alto da colina; depois duma breve hesitação, avançaram para eles, brandindo os revólveres.
— Deixámos o Cliff como um sapo. Liquidámo-lo ao primeiro tiro — disse um deles, em quem o jovem reconheceu Tim Lawrence, braço direito de Hudson.
— Tens a certeza? — perguntou outro deles.
— Claro que estou. Cliff é dos que lutam como uma fera enquanto lhes resta um sopro de vida. E como viste, nem sequer respondeu aos nossos disparos. Vamos ver o que aconteceu à rapariga e ao pequeno.
À medida que os outros se aproximavam, o jovem procurava manter-se em absoluta imobilidade. Sabia que disso dependia, não só a sua própria vida, mas, o que era mais importante, as de Nancy e Bobby.
Os três homens dirigiram-se para o local onde se encontravam a rapariga e o pequenito; mas um deles parou um momento e olhou para ele.
— De qualquer modo, Tim, vou certificar-me se está morto. Meto-lhe uma bala na cabeça, e assim não haverá mais dúvidas.
— Faz o que quiseres.
Cliff viu o indivíduo aproximar-se, engatilhando o revólver. Quando o teve a uns passos de distância, levantou a cabeça e apontou-lhe o seu «colt». No semblante do outro refletiu-se o medo e fez o gesto de disparar. Mas o jovem apertou o gatilho antes. O outro deu um grito de agonia e, levando ambas as mãos ao peito, caiu de bruços sobre a erva.
Tim e o seu companheiro voltaram-se surpreendidos, disparando sem apontar. Uma bala furou o chapéu de Cliff, enquanto outra se cravava no chão a pouca distância do seu rosto. O jovem rolou rapidamente sobre ele mesmo, para esquivar os tiros dos seus inimigos e depois, parando bruscamente, voltou a apertar o gatilho.
Desta vez foi Tim que caiu de joelhos com uma dose de chumbo no estômago. Vacilou como um boneco e por fim caiu de cara para o chão. O último dos bandidos começou a recuar com uma expressão de terrível pânico. A sua mão tremia demasiado e os seus tiros eram absolutamente ineficazes.
Cliff, erguendo-se, puxou o gatilho duas vezes. O seu rival deu uma pirueta no ar, caindo no chão, pesadamente. Cliff guardou o revólver e, com o auxílio da mão esquerda, pôs-se de pé lentamente. Nancy e Bobby corriam já para ele com o propósito de o ajudarem.
— Cliff! Cliff! Você está ferido! — exclamou a rapariga, assustada. — Não se preocupe. É pouca coisa. Bobby olhava-o cheio de admiração. — Com os diabos, Cliff, como atiras! E com a mão esquerda!
Nancy parecia muito preocupada.
— Deixe-me ver o ferimento. Pode ser mais grave do que imagina.
Desabotoou-lhe a camisa, pondo o ombro ferido a descoberto. Enquanto o examinava rapidamente, na sua fronte apareciam umas profundas rugas.
— A bala está lá dentro. Era preciso extraí-la imediatamente.
Cliff abanou a cabeça.
— Não, até que cheguemos a Tonopah. Como viu, os homens de Hudson percorrem toda a região à nossa procura. Se nos demoramos, expomo-nos a tropeçar com outro grupo, e não creio que na próxima vez consigamos escapar.
— Mas você não pode seguir viagem nestas condições. Além disso o seu cavalo morreu.
— É preciso tentar. Temos de chegar a Tonopah quanto antes. Faça-me um penso à ferida.
— Mas, Cliff, é uma loucura...
— Ainda maior loucura é ficar na pradaria. Faça o que lhe digo, Nancy. Não devemos correr mais riscos. Já é um milagre continuarmos vivos, trazendo no nosso rasto uma quadrilha inteira.
A rapariga compreendeu que era inútil insistir. Arrancando uma manga da camisa do jovem, utilizou-a para pensar-lhe o ombro o melhor que pôde. Uma vez concluída a operação, Bobby encarregou-se de ir buscar o cavalo que, assustado com os tiros, se afastara uns metros.
— Montem você e o Bobby — ordenou o jovem.
—Mas você está ferido — protestou Nancy. — Eu posso ir a pé.
— Eu também. É num ombro que tenho a bala e não nas pernas. Vamos, montem.
Nancy fez o que ele indicava de má vontade. Logo que ela e o pequeno se instalaram no dorso do cavalo, -puseram-se em marcha. Cliff, agarrando o braço direito com o esquerdo, pôs-se a andar ao lado deles.

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