terça-feira, 20 de agosto de 2019

ARZ014.03 A mágoa da sobrevivência

— Você deve ser feito de aço, Werfel.
Cliff ergueu a cabeça do prato metálico onde comia a sua ração de toucinho, e olhou para o rosto de Wickes, iluminado pelo vermelho resplendor das chamas.
— Só assim compreendo o seu rápido restabelecimento —acrescentou o xerife.
Depois voltando-se para Nancy, perguntou
— Não lhe parece, Nancy?
A rapariga olhou para os dois homens.
— Sim. Werfel deve possuir uma construção extraordinária.
Havia já um bom bocado que a caravana parara para passar a noite. Em volta dos carros acenderam-se as fogueiras, onde os fugitivos tomavam uma refeição frugal. Os pequenitos já dormiam.
Nos breves dias decorridos desde que o encontraram na pradaria, Cliff melhorara de forma surpreendente. Embora se encontrasse ainda fraco, já podia andar a pé e estava em vias de recobrar depressa todas as suas forças. Todavia, por precaução, Wickes deliberara que Cliff tomasse as refeições com ele e Nancy, para assim o poderem vigiar melhor.
— Não quero que cometa uma imprudência — dizia com frequência. — Seria uma perigosa complicação se os ferimentos abrissem novamente.
Nessa noite, quando os três acabaram de jantar, o xerife pôs-se de pé.


— Bem, vou organizar os turnos de vigilância. Não quero que nos façam uma surpresa desagradável.
— Reserve-me um dos quartos de sentinela, xerife — disse Cliff. —Isso não demanda grande esforço.
— Depois veremos. Não lhe garanto nada, mas se me for preciso, recorrerei a si.
Wickes afastou-se, deixando sós os dois jovens. Cliff começou a enrolar um cigarro. Nancy continuava sentada, contemplando as chamas. Estava muito formosa, com os seus cabelos refletindo o avermelhado do fogo e a sua esbelta e elegante figura numa atitude de abandono.
Cliff chegou um pequeno ramo em brasa ao cigarro e começou a fumar. De repente, Nancy ergueu para ele os olhos e disse:
— Vou examinar-lhe os ferimentos.
Cliff desapertou a camisa, pondo a descoberto o forte e musculoso dorso. A rapariga aproximou-se e tirou as ligaduras. Fez-se um profundo silêncio entre ambos, interrompi» pelo jovem para perguntar:
— Nancy, que foi o que estranhou quando eu disse o meu nome a Wickes?
A jovem não olhou para ele, mas, por um momento, as suas mãos tremeram ligeiramente. Depois continuou o seu trabalho.
— Não sei de que está a falar.
— Sabe sim. E quero que me responda a verdade.
Desta vez os olhos de Nancy cravaram-se nos dele
— Está a ameaçar-me?
Cliff fez um gesto de fadiga.
— Ameaçá-la, eu? Para quê? Não, Nancy, eu não tenho interesse em ameaçá-la a si... Nem a ninguém. É apenas curiosidade o que sinto. Não compreende que já nada me interessa?
A rapariga franziu as sobrancelhas.
— Que lhe aconteceu?
Ele fez um trejeito.
—É uma história muito longa e muito aborrecida. A história dum homem que só tem cometido erros. Mas talvez que o maior de todos fosse o vosso por não me terem deixado morrer.
Nancy ficou um momento indecisa. Parecia que ia falar, quando apareceu Wickes.
— Como está isso, Nancy?
A conversa dos dois jovens interrompeu se. Depois de informar o xerife do estado de Cliff, Nancy foi-se deitar. Wickes comunicou ao jovem que, em virtude de estar melhor e escassearem os homens, lhe reservara um dos últimos turnos de vigilância. Depois foram ambos deitar-se.
Nos dias que se seguiram Cliff não teve oportunidade de falar a sós com a rapariga. Em compensação, estabeleceu intimidade com os pequenitos da escola. Não era que ele a procurasse, mas um dos alunos, um pequeno de nove anos chamado Bobby, andava atrás dele a toda a hora.
— Porque não trazes balas na cartucheira? Não tens dinheiro para as comprar?
— Não, Bobby, não é isso...
— Então porque é? Tu sabes disparar um revólver, não sabes?
— Claro que sim.
— Porque não me ensinas? Quando for grande quero ser um grande atirador.
— Bem sabes que não tenha balas. Mas podes brincar com o meu revólver, se quiseres.
Cliff entregou-lhe a arma descarregada e Bobby entreteve-se a brincar com ela, O pequeno aproximou-se por detrás dum dos componentes da caravana, um homem alto e forte chamado Douglas e apontou-lhe a revólver, dizendo:
—Mãos no ar!
O homem deu um salto e voltou-se de repente, olhando para a arma com o pânico refletido no rosto
—Não, Bobby, solta isso. Digo-te que o deixes. Pode disparar-se- Tira o dedo do gatilho.... Por favor, Bobby...
O garoto pôs-se a rir alegremente.
— Mas não tem balas! Olha.
Apontou para o chão e apertou o gatilho. Apenas se ouviu o estalido do percutor bater em falso. As pessoas que presenciaram a cena riram divertidas por causa do susto que Douglas apanhara. Este, com o rosto vermelho de vergonha e de ira pelo ridículo, exclamou furioso:
— Eu já te ensino, maldito ranhoso!
Ao mesmo tempo assentou a sua manápula, brutalmente, no rosto de Bobby, que caiu no chão sem sentidos. Durante uns segundos reinou um silêncio impressionante, silêncio que foi interrompido por Nancy ao precipitar-se no local do incidente, com o rosto descomposto pela indignação.
— Cobarde! Bruto! Bater a uma criança! Oh! É um cobarde!
O homem voltou-se colérico para ela.
— Cale-se, se não quer que lhe feche a boca com um murro!
Não pôde realizar a sua ameaça, porque naquele instante, saído ninguém sabia donde, apareceu Cliff. O punho do jovem, disparado com a força dum projétil, atingiu Douglas na boca, que se viu impelido para trás até cair de. costas. Mas não demorou a levantar-se de novo, cuspindo sangue e vomitando cólera pelos olhos.
Nancy, que se ajoelhara junto do inconsciente Bobby, olhou fascinada para Cliff. O rosto do jovem sofrera uma mudança notável, extraordinária. Nada restava da indiferença de momentos antes, e nos seus olhos brilhava agora uma luz bélica, cortante, ameaçadora.
Esperou o ataque do homenzarrão e, com surpreendente habilidade, esquivou-o, aplicando-lhe ao mesmo tempo uma série de terríveis socos com ambos os punhos.
Douglas recuou hesitante, procurando inutilmente cobrir-se. O seu rosto, e todo o corpo recebiam um selvagem castigo do jovem que combatia com a agilidade e a fúria dum felino. Por fim, um direto ao estômago, seguido duma formidável esquerda ao queixo, liquidou a resistência do gigante. Douglas, com o rosto tumefacto e ensanguentado, caiu pesadamente no solo, onde ficou inconsciente.
O xerife chegou, apressado.
— Que aconteceu aqui? Porque foi esta briga?
Cliff, em lugar de responder-lhe, inclinou-se sobre o pequeno Bobby e levantou-o nos braços. Alguns dos presentes informaram Wickes do que acontecera. Este voltou-se para Nancy e para o jovem.
— Encarreguem-se de levar o pequeno para o carro. Eu falarei com Douglas.
Cliff e a rapariga afastaram-se, um ao lado do outro em silêncio. Ele levava Bobby nos braços. Ao chegar ao carro, ele colocou-o sobre umas mantas, esperando que Nancy o examinasse. A rapariga pouco demorou a vir para junto dele.
— Não foi nada, felizmente. Agora está a dormir. Isto far-lhe-á bem. Reconforta-o do desmaio. Você é quem agora mais me preocupa.
Cliff fitou-a muito sério.
— Porquê? Por causa dos seus ferimentos. Com a briga, podem ter-se aberto novamente.
Ele abanou a cabeça.
— Não creio. Não sinto nada especial.
—Mesmo assim, prefiro certificar-me.
A rapariga assim fez. As feridas, por milagre, estavam intactas e quase totalmente cicatrizadas.
— Bem, é do meu dever ficar-lhe agradecida pelo que fez.
— Esqueça isso.
Os olhos esverdeados da rapariga cravaram-se nos dele.
— Você é um homem muito estranho. Não consigo compreendê-lo.
— Eu também não compreendo muitas coisas suas.
Dito isto, deu meia volta e começou a afastar-se, mas a rapariga alcançou-o.
— Que tem você?
O rosto dele estava crispado por um trejeito doloroso.
—Estou farto cie tudo, ouve? De tudo! Porque se lembraram de me salvar a vida? Teria sido melhor deixarem--me morrer; assim evitavam que eu continue a sofrer.
Nancy parecia desconcertada.
— Mas nós queríamos socorrê-lo.
Cliff já não a ouvia. A grandes passadas, afastara-se dela

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