segunda-feira, 19 de agosto de 2019

ARZ014.02 Salvo por uma caravana de fugitivos

— Está a mexer as pálpebras. Creio que não demorará a recuperar os sentidos.
Estas palavras ecoaram no seu cérebro como vindas dum lugar longínquo. De momento não soube o que acontecia, nem onde se encontrava. Depois, pouco a pouco, os seus olhos começaram a ver umas figuras abstratas que permaneciam diante dele como envoltas em bruma.
Sentia-se estranhamente fraco, mergulhado no mais profundo torpor. Que acontecia? Que se passara?
De repente, recordou tudo. Lloyd Hudson, diante dele, disparava o seu revólver, e ele sentia no corpo o choque das balas para depois cair morto. Sim, era isso. Ele morrera... Então quem eram as pessoas que tinha agora ante os seus olhos? Quis mexer-se, mas uma dor terrível percorreu-lhe todo o corpo.
—Está a queixar-se — disse a mesma voz de há pouco. — Isto é bom sinal.
Cliff, fazendo um grande esforço, tentou identificar aquelas duas pessoas. O seu olhar, pouco a pouco, tornava-se mais claro, mais preciso, até que as duas silhuetas tomaram formas mais concretas. Por fim, conseguiu vê-los sem aquela espécie de neblina que os turvava.


Um deles era uma mulher, uma mulher jovem e extraordinariamente bonita. O seu rosto, no qual brilhavam dois olhos grandes, esverdeados e em forma de amêndoa, refletiam uma viva ansiedade. O vento agitava os seus cabelos louros e encaracolados e os seus lábios, vermelhos e juvenis, mantinham-se entreabertos. Não parecia ter mais de vinte e três anos.
O outro era um homem de meia idade, forte e enérgico, com os cabelos grisalhos e o rosto queimado do sol. Trazia um revólver à cintura, chapéu de abas largas e, no peito, do lado esquerdo do colete de couro, a estrela de xerife. Ambos se inclinavam para ele, muito interessados.
A luz viva do dia obrigou Cliff a pestanejar. Depois, o homem perguntou-lhe:
— Encontra-se melhor, amigo?
Cliff passou a língua pelos lábios secos e fez várias tentativas para falar. Por fim conseguiu sussurrar:
— Água...
A jovem pegou num cantil e, levantando com grande cuidado a cabeça do ferido, aplicou-lho nos lábios. Este começou a beber ansiosamente.
— Por favor, por favor — murmurou ela com voz doce. — Já chega. Não lhe convém encher o estômago de água.
Retirou o cantil, reclinando a cabeça de Cliff sobre qualquer coisa macia. O jovem olhou em volta, verificando que estava estendido sobre uma manta, à sombra duns álamos. A certa distância, viu uns carros e vários cavalos que pastavam na erva.
Alguns homens e mulheres acendiam fogueiras e preparavam a comida, enquanto um verdadeiro enxame de crianças, meninos e meninas, nenhum dos quais contava mais de dez anos, enchia
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os ares com as suas vozes e risos. Ao ver os pequenitos, o jovem não pôde evitar um trejeito.
— Doem-lhe muito os ferimentos? —perguntou a rapariga.
Cliff voltou os olhos para ela.
—Não, não doem muito — respondeu com voz fraca.
— Vamos, Nancy, deita-lhe uma vista de olhos para ver se a coisa marcha bem—murmurou o xerife.
A rapariga, com mão, destra e segura, desabotoou a camisa de Cliff e começou a desfazer as ligaduras que lhe cobriam o peito. O xerife, entretanto, sentou-se sobre a erva e, tirando do bolso um frasco, aproximou-o dos lábios de Ciiff.
— Tome, amigo, beba um trago. Isto faz-lhe bem.
O «whisky», ao passar pela garganta do jovem, pareceu reanimá-lo. O xerife riu-se.
— Ainda não conheci ninguém que não melhorasse ao meter no corpo uma boa quantidade de «whisky». É o melhor dos medicamentos.
Cliff olhou para Nancy, que empregava toda a sua atenção na tarefa de desfazer as ligaduras, e depois para o xerife.
— Como é que estou aqui convosco? — balbuciou.
—Há três dias encontrámo-lo na pradaria, com duas balas no corpo. A verdade é que não percebo porque milagre você continua vivo. Creio que se demorássemos mais uma hora a encontrá-lo, tinha-se passado para a vida melhor. Teve sorte em Nancy perceber destas coisas. Ela mesmo abriu os ferimentos, extraiu as balas e tratou-o depois. Desde então que o tem cuidado dia e noite para o salvar da morte, e parece que o conseguiu.
Cliff voltou o olhar para a rapariga.
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— Obrigado...
— Que diabo lhe aconteceu? — perguntou o xerife. —Algum mau encontro?
O jovem franziu as sobrancelhas.
— Viajava por esta região, ia para... Tonopah. Fez-se noite sem encontrar um local para acampar c, de repente, uns homens atacaram-me. Defendi-me, mas suponho que conseguiram atingir-me com uns tiros. Ë tudo o que me lembro.
—Para mim, está bem claro — assentiu o xerife. — Isto é uma coisa de Lloyd Hudson e da sua gente. Ouviu falar neles?
— Não — respondeu Cliff sem a menor hesitação. — Sou novo em Nevada. Há apenas uma semana que cheguei, procedente de Utah. Disseram-me que em Tonopah poderia encontrar algum emprego como vaqueiro.
O xerife coçou o queixo, pensativo.
— Que estranho isto de Hudson o atacar, não trazendo dinheiro consigo! Com certeza tomou-o por outro a quem devia esperar.
Depois duma pausa, perguntou:
— Bem, como se chama?
A breve hesitação do jovem foi impercetível.
— Werfel, Nick Werfel.
Nancy, que destapara as feridas, não ocultou um gesto de estranheza, ao mesmo tempo que os seus olhos, durante uma fração de segundo, se cravaram inquisidores nos de Cliff. Mas em seguiria desviou o olhar recobrando a serenidade.
— As feridas estão muito melhor — disse. — Creio que dentro de uns dias estarão cicatrizadas. O mais importante é que não faça movimentos bruscos.
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—Magnífico! — exclamou o xerife. --- Aconselho-o a obedecer em tudo a Nancy; sabe destas coisas mais que um médico.
Cliff, a quem o gesto de estranheza da rapariga, quando deu o nome falso, deixara profundamente preocupado, contemplou-a enquanto ela o ligava de novo.
—Assim farei. Prometo entregar-me nas suas mãos.
A rapariga, uma vez terminada a sua tarefa, pôs-se de pé e, esquivando o olhar do jovem, exclamou:
— Se precisarem de mim, chamem-me.
Depois, deu meia volta e dirigiu-se para os carros estacionados. Cliff seguiu--a com a vista.
—Bonita, hem? —disse sorrindo o xerife.
Cliff não respondeu, limitando-se a fazer uma pergunta:
— Alguma caravana vinda do Leste?
O xerife abanou a cabeça.
— Não, são fugitivos de Clarenceville.
O jovem teve de fazer um esforço para não se denunciar. —Fugitivos de Clarenceville? Que foi o que aconteceu ali?
Uma nuvem de tristeza passou pelo semblante do xerife.
— O pior que pode acontecer a uma povoação. Praticamente, deixou de existir. Presentemente, tudo o que resta é um montão de ruínas.
Apontou para os homens e mulheres agrupados em torno das fogueiras.
— Estes são os únicos sobreviventes. Clarenceville foi saqueada e destruída pela quadrilha de Lloyd Hudson. Quase todos os seus habitantes morreram defendendo-se, mas não puderam evitar que os bandidos destruíssem tudo e se apoderassem duma fortuna. Levaram tudo quanto de valor havia nas casas, além de duzentos mil dólares que o Banco tinha nos seus cofres. De facto, estamos todos à mercê de Hudson; tem atrás de si um verdadeiro exército de proscritos. Só conseguiremos acabar com ele no dia em que as autoridades militares se decidam a enviar tropas para o combater. É um verdadeiro flagelo para toda a região.
— O senhor estava em Clarenceville quando foi o assalto?
— Não, eu sou o xerife ide Tonopah. O meu nome é Harry Wickes. Vim com alguns homens para acompanhar os fugitivos até à minha cidade. Espero que Hudson não se lembre de nos aparecer; não creio que pudéssemos fazer-lhe frente. Sobretudo lamentaria por essas crianças.
Cliff contemplou os meninos e meninas que se aglomeravam à volta de Nancy.
— São da escola de Clarenceville. Quase todos perderam as famílias no ataque e eles mesmos estiveram em risco de perecerem. Eu creio que se salvaram apenas pela serenidade e coragem de Nancy.
— Porquê?
— Nancy Brent é a professora. Quando os bandidos caíram sobre a aldeia e começou a batalha, ela não abandonou os seus pequenos alunos e teve a suficiente presença de espírito para, no meio do tiroteio, tirá-los de Clarenceville e escondê-los em pleno bosque. Ainda não percebo como conseguiu fazê-lo.
— Que vão fazer agora com eles?
—De momento, alojá-los na escola de Tonopah. Nancy não quer abandoná-los e prometeu continuar a tratar deles. Essa rapariga tem um grande coração.
O xerife pôs-se de pé, acrescentando:
— Enfim, foi uma sorte que um dos fugitivos de Clarenceville pudesse vir avisar-nos do que acontecia. E você também pode dar graças a Deus, pois doutra maneira não o teríamos encontrado. Daria qualquer coisa para acabar com as façanhas de Lloyd Hudson.
Momentos depois, a caravana de fugitivos punha-se de novo em marcha. Cliff foi mudado para um dos carros onde o acomodaram sobre umas mantas. Dali podia ver o carro que o seguia, carregado com os pequenitos da escola. Na boleia, levando as rédeas, ia Nancy Brent.
O jovem contemplou-a pensativo. Que era o que sabia a rapariga? O olhar e o gesto de estranheza que ela fizera eram eloquentes. Alguma coisa ela sabia, algo que não revelara a ninguém, nem sequer a Harry Wickes. Isto era seguro, porque o xerife limitou-se a tratá-lo como mais uma vítima de Lloyd Hudson. Até certo ponto, isto era verdade, embora a atitude de todos mudasse se conhecessem a verdade.
A presença de Wickes arrancou-o aos seus pensa-mentos. O xerife conduziu o cavalo até junto do carro e perguntou:
— Como vai isso, Werfel?
— Melhor, muito melhor.
— Folgo com isso, e não só por si, como também par nós todos. Se Hudson nos descobre e se lembra de nos atacar, precisaremos de todos os homens que sejam capazes de disparar uma arma.
— Crê que existe essa possibilidade?
— Evidentemente, embora com um pouco de sorte talvez consigamos livrar-nos dele.

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