terça-feira, 27 de dezembro de 2016

PAS694. A noiva do «desesperado»

Embora Jeff Gayar tivesse feito havia pouco tempo vinte e cinco anos, parecia muito mais velho. Tinha o cabelo preto e o rosto bronzeado. Andava sempre penteado e vestido com esmero.
Era alto, forte e agressivo quando atuava com o seu bando, no qual se salientavam Braxer, Ash, Joycer e Len, sulistas como ele, combatentes vencidos que tinham passado a engrossar as fileiras dos inadaptados.
Odiavam de morte os ianques. Estes haviam querido, muitas vezes, chamá-los à razão, mas Gayar e os seus tinham respondido sempre com a mais feroz violência, chegando a matar alguns dos seus adversários.
Já não eram soldados; na realidade, tinham-se convertido em delinquentes vulgares: furtos, ameaças e toda a variedade de crimes. Se continuassem por aquele caminho, não tardariam a converter-se em frios assassinos. O sangue não os assustava, porque tinham visto muito sangue na guerra.
Haviam perdido os ideais da primeira juventude; em vez de procurarem um lugar no novo sistema, criado pela vitória das armas ianques sobre os confederados, e de trabalharem para um melhor entendimento, tinham escolhido o caminho perigoso da violência.
Jeff Gayar, que tanto falara de honra, noutros tempos, não tinha agora escrúpulos.
Havia algum tempo que vivia aquela vida estranha, que se apoderava à sua passagem de tudo quanto queria, sem medo da morte. O seu ódio pelos ianques não diminuía, antes pelo contrário; mas a maior parte do veneno que trazia na alma reservava-o para Van Summers, o seu mais direto rival.
Van Summers e a sua maldita quadrilha! Malditos fossem! Eles eram uns ianques cobardes... tinham ganhado a guerra e dedicavam-se à pilhagem... Jeff Gayar pensava no que teria sido se ganhasse o Sul. Capitão, influente, teria podido refazer a arruinada plantação de seus pais, mortos de fome, em consequência da miséria e da destruição gerais.
«Ao diabo com tudo!» Jeff Gayar aborrecia-se consigo mesmo quando começava a pensar no passado. Algumas vezes embriagava-se. Outras, procurava a companhia de mulheres frívolas, que acediam aos seus desejos, pois conheciam bem a sua reputação. Às vezes, os olhos escuros e profundos de Jeff Gayar olhavam de um modo que metia medo, até aos homens.
Ninguém podia imaginar que os olhos de Jeff Gayar pudessem olhar com ternura.
Só havia uma pessoa em Lincoln City que o podia afirmar.
Era Ana Feeling.
Jeff Gayar ficara deslumbrado da primeira vez que vira Ana, cuja beleza resplandecia, apesar da sua descolorida indumentária, recordação triste de outra época que fora esplendorosa.
Diante dela, era outro homem, diferente em tudo; talvez se comportasse como o adolescente que fora. Pôde ver a miséria que a rodeava e conheceu seu pai, o amargurado velho prematuro. A este deu-lhe dinheiro e ele aceitou; era um bêbedo e continuaria a sê-lo.
Tal como dizia Nancy, não era espírito de caridade o que guiava Jeff Gayar, mas sim o desejo de se poder aproximar de Ana e fazê-la sua. Havia algum tempo que pensava que com dinheiro tudo se pode obter.
Ana acolhera-o com simplicidade. Era uma rapariga que inspirava amor. E também desejo; porque o seu busto era ereto e de suaves contornos, a sua cintura estreita e flexível, as suas ancas e pernas bem desenhadas, como as desejaria para a sua arte o mais exigente pintor ou escultor.
Os olhos de Ana, os verdes olhos de Ana...
Eram armas mais perigosas para Jeff Gayar do que os revólveres de todos os seus inimigos.
O olhar de Ana era angelical. O Bem refletia-se nele. Parecia impossível que uma jovem, mergulhada num ambiente em decomposição moral, pudesse continuar com uma alma tão pura.
E toda a audácia e fogosidade de Jeff Gayar caíra por terra. Não se atrevera nem sequer a insinuar-se. E acabara por lhe falar de casamento.
Ana não acreditava nos mexericos que lhe contava Nancy, embora, inteligente como era, soubesse que a vida de Jeff era irregular. Sentia compaixão por ele e por todos... Que vida mais absurda! Quatro anos os homens do mesmo país a matarem-se uns aos outros e agora chamavam paz àquilo!... Sabia que o pai aceitava dinheiro de Jeff... A princípio tivera medo; depois, quando vira a atitude do rapaz, deixara de o temer, porque a sua fina sensibilidade lhe dera a entender que jamais se atreveria a desrespeitá-la.
E dissera-lhe que casaria com ela... Ana não estava apaixonada por Jeff. Ouvira falar muitas vezes de amor, mas nunca o soubera definir. Ela sentia vontade de amar todos os seres humanos, mas o amor entre um homem e uma mulher era diferente... embora talvez não fosse com exatidão o que dizia Nancy...
Ana sentia inquietações, algumas vezes sonhava acordada, mas jamais experimentara as emoções de algumas heroínas românticas que conhecera através de alguns romances lidos para matar o tempo.
Ana via muito negro o horizonte da sua vida. Não se podia enganar a si mesma. Estava rodeada de patifes. O pai convertera-se num irresponsável. E gostaria tanto de poder regenerar Jeff, de fazê-lo regressar ao caminho reto! Esforçar-se-ia por o amar e o seu amor seria como que uma esponja que levasse todo o coração dele... Jeff comportava-se como um cavalheiro e isso era de agradecer; de resto, agora não tinha de suportar as impertinências dos outros, porque todos temiam Jeff...
Este veio vê-la, como todas as noites.
— Ana...
Ele esperava-o.
— Pareces preocupado...
— Não... Estou contente por te tornar a ver.
— Dizem que andas aos tiros por aí...
O rosto de Jeff Gayar mudou de expressão.
— Já esteve a falar contigo essa maldita Nancy!
— Deixa-a, Jeff; já a conheces. Não julgues que é má rapariga. Sabes que me vai emprestar um bonito vestido verde para ir ao baile de sábado? Além disso, vai provar-mo e ajustá-lo à minha medida...
— Tu ao baile? Ouve, Ana, perguntei-te se querias casar comigo e isso nunca o propus a nenhuma mulher.
Ana riu como só ela ria. Era como se uma música deliciosa brotasse da sua fina garganta.
— Ao baile, sim, mas contigo!
— Comigo...
— Claro que sim... pediste-me que fosse tua mulher; eu não te disse que sim nem te disse que não... Mas quando uma rapariga não recusa imediatamente... Creio que me podes acompanhar, e se fores bom dançarino, talvez me decida essa noite...
— Eu ao baile do Exército ianque? Corja de patifes!...
— Gostas de amargurar a tua vida?
— Só vivo quando estou a teu lado... Mas ao ouvir mencionar esses...
— Não continues e entra na razão. Se vais ter de os suportar durante toda a tua vida, não é melhor que comeces a habituar-te? Assim não conseguirás nada...
— Nem tu irás ao baile.
— Hoje pareces-me um homem diferente. Vejo-te colérico, desassossegado. Sempre te recebi como uma verdadeira amiga a um bom amigo. E reconheço que sempre te portaste como tal. Ao princípio, tinha medo de ti.
— Deveras?
— Sabia que davas dinheiro ao meu pai; sei que vivemos graças a ti.
— Nunca to deitei em cara.
— Bem sei...
— E tu queres levar-me a esse baile... Porque és tu...
— Exatamente. E se queres casar comigo terás de fazer muitas outras coisas; uma delas, mudar de vida.
— Sabes uma coisa, Ana?
— Se ma disseres...
— Não vim para discutir contigo. Talvez vá a esse baile...
— Claro que sim! Se vai toda a gente... Mas esquece--te dos teus revólveres.
— Com exceção de ti, gostaria de me esquecer, de muitas coisas.
— Quero consegui-lo, Jeff. O ódio é um veneno que destrói. O revólver é uma arma que só deve ser empunhada para salvarmos a própria vida. E embora nos tenha tocado viver nesta época turbulenta, alguma coisa devemos fazer para vencer. Talvez o trabalho seja o melhor remédio.
— Tu queres endireitar a árvore torcida, pequena... Não é tarefa fácil. Sim, sim... levar-te-ei a esse baile, Ana... porque sem ti não sou nada.
Ana pensou que com o tempo amaria aquele homem por quem tanta piedade sentia. Beijou-o no rosto, quase sem lhe tocar.
Ele fechou os olhos como se, tendo morrido, se encontrasse no Paraíso.
Contudo, no fundo da sua alma persistia a aversão aos ianques e em especial a Van Summers.

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