sábado, 17 de dezembro de 2016

PAS690. Em direção à chave do destino

Despertou-o um imperioso desejo de voltar, de se encontrar nos lugares onde decorrera a sua infância. E imaginava que, no interior das suas retinas, desfilavam as personagens que o tinham conduzido a sua existência atual. Seu pai, aquele ferreiro colérico e bêbado; a sua madrasta, uma mulher a quem a musica e o baile, os rapazes e as aventuras atraiam.
E o banqueiro Crowfish que, apesar de estar com uma onça de chumbo na testa, se agarrava corn enorme tenacidade a bolsa de dinheiro pela qual o bando de Zac Methody, no qual ele tinha ingressado recentemente, tinha ido.
E ela, a pequena Becky, corn os seus grandes olhos negros desmedidamente abertos, sem chorar, apenas com um terrível assombro na cara.
Gordon teve um sobressalto. Meteu o revólver no coldre e em seguida atirou algumas notas sobre a mesa. Apercebia-se de uma forma confusa do drama da sua companheira de algumas horas, submersa na desolação do um homem morto e outro ausente, pois ele tinha decidido ir-se embora.
— Adeus — disse, roucamente.
Saiu do quarto reservado e da taberna. E também da cidade, uma povoado mineira na fronteira corn Nevada. Montado sobre «Bluebird» o seu cavalo malhado, empreendeu naquela mesma noite o caminho para as montanhas de Utah. Era o mês de Maio e brilhava a lua cheia como uma pastilha de soporífero prestes a dissolver-se no copo transbordante do horizonte.
A manha surpreendeu-o ao atravessar o Beaver Iron, a enorme extensão coberta de salvetas, salpicada, aqui e ali, por jucas das quais pendiam grandes flores brancas e rosadas. Adiante, erguia-se o maciço montanhoso das Cedar.
A povoação para onde Gordon se dirigia nao estava muito longe. Em boa verdade aquela era uma das razões que haviam determinado o seu desejo de voltar. Nunca tinha estado tao perto de Rockill, pois a major parte do tempo tinha-o passado na Califórnia e o Arizona.
O sol apareceu entre os picos que se coloriram e o cavalo empreendeu a ascensão. Gordon nao desejava acampar naquelas paragens, mas internar-se num vale onde ele e o cavalo tivessem água fresca. Não teria dificuldade em o encontrar porque abundavam por ali. A vegetação curta, o matagal, transformou-se em imensas matas de pinheiros, entre os quais se distinguiam todavia bosques de carvalhos, e nas margens dos pequenos rios e torrentes viam-se silvas e espinheiros.
O cavalo malhado desceu uma encosta. Gordon deteve-o diante do maravilhoso espetáculo que se lhe oferecia aos olhos. Um vale, o Grant Beaver, que exibia uma vegetação luxuriante, com o rio descrevendo curvas sinuosas pelo meio. Parecia incrível, mas estava deserto, sem uma maldita casa ou choça que denunciasse a presença de gente.
Talvez algum caçador de armadilha tivesse o seu esconderijo nas cercanias. Mas o magnifico cenário nao tinha outros protagonistas da grande obra da natureza que bandos de patos e pombos selvagens e alguns rebanhos de antílopes que galopavam descuidadamente por entre as ervas verdejantes.
Claro que Gordon sabia que semelhante quadro durava poucos meses e que em seguida a terra se tornava hostil e se convertia numa armadilha perigosa porque a acoitavam tormentas e nevões. Mas mesmo assim a sua conquista merecia a pena. O que era curioso era que ele nao se «via», como o possível colonizador, mas apenas como o visitante estranho de sempre.
O que o surpreendia era que ali nao houvesse uma cidade, uma povoação, com um bom «saloon» e um hotel confortável onde estender os ossos. Corn um suspiro de resignação, fez que o «Bluebird» descesse pelo caminho tortuoso, entre rochas, que conduziam ao vale.
Teve sorte e abateu corn o seu «Savage» um belo exemplar de veado que perseguira durante meia hora através do terreno. Depois procurou um lugar próximo de um regato e preparou-se para acender uma fogueira, para o que apanhou ramos de pinheiro e mato seco.
Tirou das bolsas da, sela as latas do café, da farinha e a sertã. Corn habilidade que revelava que nao era a primeira vez que o fazia, cortou um pedaço do soberbo «uapiti» e pô-lo sobre um assador improvisado. Preparou umas tortas e café.
— Fora, «Bluebird», aproveita este pasto.
Tirou a sela ao animal e soltou-o. Há seis anos que tinha aquele cavalo e embora tivesse os ossos duros, nao o trocaria pelo melhor potro. Além de que, corn a sua cor cinzento-esfumado, era quase impossível na planície ou no bosque; «Pássaro Azul» era um autêntico arsenal de astúcia, capaz por si só de enganar um grupo de batedores que pretendesse capturá-lo.
Uma vez saciada a fome, Gordon recostou-se sobre a sela e contemplou o panorama que se estendia diante dele. Flores de macela, campânulas, choupos, abetos e nogueiras, arbustos e matas de todas as espécies.
Um bando de patos cruzava o azul-claro do céu. O «gun-man» teve uma grande sensação de paz e, ao mesmo tempo, uma certa ansiedade. Era como se um maldito verme o roesse por dentro. Nao sabia o que teria acontecido durante a sua prolongada ausência, em Rockhill.
Nem sequer estava certo de que o reconhecessem.
Vinte anos era muito tempo. Claro que a sua saída do povoado nao tinha sido fácil; morte e destruição tinha sido o que havia deixado atras de si. Nao tinha remorsos de ter acabado corn o banqueiro Crowfish nem de acabar por se afastar do bando de Zac Methody, privando-os daquele dinheiro que eles tanto ambicionavam.
Um riso seco sacudiu-lhe o peito. Parecia-lhe estar vendo o gordo Zac espumando de raiva e enchendo a atmosfera de cobras e lagartos verbais. Viveria ainda? Bem, isso nao lhe importava muito. Mas, e os outros? Becky Crowfish, e a família do xerife Olaf Tallen que eliminara também deste miserável mundo, quando procurava impedir-lhe a fuga.
Julgava recordar que ele estava casado há pouco tempo e que a mulher estava gravida. Não era agradável aquela recordação, mas, ao fim e ao cabo a obrigação de um bom xerife era morrer defendendo o seu cargo. De qualquer maneira o que Gordon pretendia era enfrentar-se com fantasmas, por em marcha acontecimentos adormecidos há cerca de um quarto de seculo.
Esteve, porem, um pedaço na mesma posição. Depois, quando a fogueira se havia transformado já em cinzas, Gordon levantou-se e assobiou para que o cavalo se aproximasse. «Bluebird» acorreu corn presteza e o pistoleiro selou-o sem pressas, numa atitude meditativa.
Apanhou os seus utensílios e montou de um salto. Ia iniciar a última etapa da viagem. No outro lado daquelas montanhas encontrava-se Rockhill, cidade de umas trezentas famílias, estendida na encosta da montanha, ao lado de um declive profundo por onde corria o Revoltous Creek.
Embora o local nao parecesse o mais apropriado para uma comunidade prosperar, Rockhill contava-se entre as cidades ricas porque se tinha especializado numa tria que tinha sempre consumidores. Existiam pelo menos quatro armeiros e o fabrico de espingardas e revolveres estava muito desenvolvido.
Para além disso os habitantes tinham tido um trabalho enorme para fazer do terreno acidentado uma horta suspensa e alimentavam-se do produto das sementeiras e do gado que se criava nos escassos vales próximos. Outra indústria era a da madeira e dos carros, consequência esta daquela.
Passaram a noite, cavaleiro e cavalo, numa das numerosas grutas formadas nas montanhas. Todo aquele aglomerado rochoso era produto da erosão do vento e da chuva, e só um natural da região poderia percorrê-lo sem se perder definitivamente. E ainda nao estavam senão na parte exterior.
Ao retomar a marcha na manhã seguinte, a paisagem foi mudando prodigiosamente. Agora estavam já dentro dos desfiladeiros, passagens e anfiteatros mais trabalhados da natureza. O conjunto assemelhava-se ao estúdio de um escultor gigantesco, ou melhor, a pedreira de onde se tivessem extraído os blocos para a confeção de um enorme parque de gigantes de pedra.
Rochas cavadas pela água e pelas correntes de ar, arcos de pedra inverosímeis, tuneis e pontes. E o mais fascinante era a variedade de cores e o caleidosc6pico acender e apagar dos raios solares sobre a superfície das massas calcarias, cúpricas ou ferruginosas. Da gama assombrosa de reflexos, sobressaia o matiz rubro, um vermelho que caracterizava toda a região.
Gordon contemplou, corn uma emoção estranha, o velho espetáculo que tanto havia recordado. A seus pés estendia-se um mundo fantástico de formas, entre as quais se erguiam bosquezinhos de pinheiros e abetos. A direita, os imensos bosques do «Dixie», onde pastavam milhares de ovelhas. Em frente, o sistema de montanhas onde se espreguiçava Rockhill.
A medida que se deixava transportar pelo trote de «Bluebird» para quem a terra era indiferente, o pistoleiro ia reconhecendo os lugares onde anteriormente estivera. Acometeu-o uma terrível depressão •ao verificar que, nao obstante ser o resultado de um trabalho constante da natureza, nao se observava mudança alguma. Quantos milhões de anos teriam passado para se criarem tais figuras?
Não the aconteceria a ele coisa semelhante? Também tinha estado exposto ao sol, as inclemências do tempo e ao contínuo deambular, mas lido se notava na sua superfície. Aos trinta e nove anos conservava um aspeto quase igual ao que tinha aos dezoito anos, quando partira da sua cidade. Nem o cabelo the branqueara.
Mas ele sabia que estava gasto e velho por dentro. Gasto por tido ter vivido, por nao ter sido mais que um corpo corroído por elementos estranhos, por coisas e pessoas que the arrebatavam sempre qualquer coisa de si mesmo sem nada the darem em troca.
Gordon deteve bruscamente o andamento do cavalo. A sua vista penetrante acabava de distinguir as primeiras casas e grutas de Rockhill suspensas da encosta de Cockrock - Rocha do Galo —, um monte cujo pico recordava a crista de uma de tais aves. Por outro lado, a pronúncia, daquele nome parecia-se corn um cacarejo, o que fazia rir os moradores da cidade.
Pela primeira vez, Gordon Eyster teve medo. Porque diabo voltava? Podia acontecer que ninguém o recordasse, que todos quantos tinham qualquer coisa corn ele tivessem desaparecido e neste caso passaria de largo, afastar-se-ia dali e desta vez para sempre, morto, embora andasse em pé.
E se acontecesse o contrário, que esperava deles? Uma reabilitação? A sua condenação? Talvez levasse a desgraça as suas vidas e fosse obrigado a matar, a atuar como uma máquina desapiedada, só porque dominava o manejo dos revólveres melhor que os outros.
Apesar do frio que se apoderara dele, Gordon esporeou «Bluebird» para o lugar onde se encontrava a chave do seu destino.

Sem comentários:

Enviar um comentário