quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

PAS684. Uma queimadura reveladora

Quando recuperou os sentidos, continuava às escuras. Durante os primeiros momentos, julgou que ainda continuava desmaiado, mas o rumor de algumas vozes no exterior fê-lo compreender que tinha voltado à vida.
— Lotte! — chamou, enquanto se punha em pé.
Não recebeu resposta. Repetiu a chamada e ouviu um estranho gorgolejo, como se um líquido se escapasse de um recipiente. Também lhe fez lembrar o pingar da chuva sobre um charco de água.
Tropeçou numa mesa e caiu de novo ao chão. Levantou-se e andando como um ébrio pôde chegar até à parte do vagão destinada a habitação.
Estendeu uma das mãos e tocou no corpo despido de Lotte. Compreendeu o que se tinha passado e, soluçando como urna criança, abraçou-se à esposa. Os seus dedos sentiram a quente viscosidade do sangue e, quando encontraram a ferida, compreendeu que Lotte tinha escassos segundos de vida.
A calma que havia perdido voltou-lhe de novo e surpreendeu-se ao ver que ainda era capaz de pensar e sentir depois da horrível tragédia que acabava de destroçar a sua existência.
Movimentou-se na escuridão até que encontrou uma candeia de azeite. Acendeu-a sem que os dedos lhe tremessem. Instintivamente, pegou na maleta dos instrumentos cirúrgicos e regressou para junto da esposa.
Fechou os olhos, horrorizado, ao ver a brutal ferida aberta no peito, muito próximo do coração. O sangue brotava às golfadas e depois de resvalar pelo corpo de Lotte encharcava as roupas da cama revolta.
Ela abriu os olhos e, quando viu o rosto de Bruce muito perto do seu, fitou-o, aterrada. Sobre a sua pele, sentia o sujo contacto das mãos daqueles selvagens e as lágrimas deslizaram-lhe silenciosamente pelas faces.
— Queimei... um... deles... na mão... direita... outro era...
Abriu desmesuradamente os olhos, como se neles quisesse expressar o nome do canalha. Os lábios moveram-se-lhe, mas nenhum som saiu por eles. Um fio de sangue apareceu ao canto da sua boca entreaberta e a cabeça tombou-lhe sobre o ombro.
Lotte Dawson acabava de morrer. Bruce deixou-se cair de joelhos e mergulhou o rosto entre os cabelos loiros da mulher que perdera para sempre. Os soluços sacudiram-lhe o corpo forte e assim permaneceu até que o sol iluminou as terras avermelhadas de Utah.
Lentamente, separou-se do cadáver de Lotte e olhou à sua volta. O interior do vagão estava destruído e o armário onde estivera guardava a pasta com o dinheiro encontrava-se aberto.
Viu a candeia com a qual Lotte se tinha defendido, caída próximo da cama. O vidro estava partido e formara-se uma grande mancha de azeite no chão.
Durante aquela noite de pesadelo, Bruce Dawson sofreu uma grande transformação. Era jovem e parecia um velho; a bondade havia desaparecido dos seus olhos e as feições pareciam ter-se tornado duras.
Abriu uma das janelas fechadas pelos ladrões e observou os movimentos do acampamento ferroviário. Os operários estavam prontos a continuar o prolongamento da via e os capatazes começavam a gritar-lhes as ordens necessárias. Tudo se mantinha igual como sempre... menos Bruce Dawson.
O seu olhar fixou-se num revólver de cano curto, caído entre as ligaduras e frascos de medicamentos. Inclinou-se e depois de o ter apanhado foi-o erguendo lentamente, até que ficou apoiado numa das suas fontes. O dedo indicador começou a apertar o gatilho.
Só a morte podia libertá-lo da terrível angústia que o dominava. Nunca acreditara que o sofrimento moral pudesse chegar a causar dor física, como se fosse um golpe ou um tiro, mas naquele momento acabava de descobrir que na verdade assim era.
No instante em que ia disparar, lembrou-se das últimas palavras de Lotte. Ela lutara até ao fim e tivera forças para se defender. Um dos homens que a tinham ultrajado recebera uma queimadura numa das mãos e Bruce, como médico, sabia perfeitamente que uma cicatriz o acompanharia durante toda a vida.
— Tenho de encontrar esse homem... Sei que não será fácil, mas encontrá-lo-ei nem que demore trinta anos... e ele terá de dizer-me os nomes dos outros.
Deixou cair o revólver e naquele momento morreu um homem chamado Bruce Dawson, médico da «Union Pacific», e em seu lugar nasceu outro homem, também chamado Bruce Dawson, mas que apenas ia viver para se vingar.
Envolveu o corpo de Lotte num lençol branco e tomou-a entre os braços. Os louros cabelos da jovem formavam urna dourada cascata que se movia suavemente a cada passo dado por Bruce.
Abriu a porta do vagão e durante uns segundos deteve-se a contemplar o acampamento da via ferroviária. Ali, deviam encontrar-se seis canalhas condenados à morte.
— E eu executá-los-ei. Não terei piedade e hei-de acossá-los como se fossem cães raivosos — murmurou.
A primeira pessoa que encontrou Dawson com a fúnebre carga foi o engenheiro Samuel Powers, que ia procurá-lo, porque rebentara uma caldeira e havia vários feridos.
Abriu a boca para perguntar o que tinha acontecido, mas voltou a fechá-la sem dizer uma única palavra. A expressão do rosto ensanguentado de Bruce fizera-o emudecer.
Este caminhava lentamente, com infinito cuidado, como se receasse acordar a esposa. Uma suave brisa fazia agitar os longos cabelos de Lotte.
Os funcionários que se encaminhavam para o seu trabalho detiveram-se e silenciosamente foram tirando os chapéus enquanto Bruce continuava a avançar com o cadáver de Lotte entre os braços.
Tinha o olhar fixo na distância e levava a cabeça erguida, como se procurasse a carícia da brisa matinal para que lhe aliviasse o calor que sentia na fronte.
Não via as duas longas fileiras de homens que o observavam com pena e respeito. Não os via, apesar de passar tão perto deles que quase lhes tocava. Não podia vê-los porque ele tinha Unicamente uma ideia no seu cérebro: vingar-se dos seis canalhas que haviam ultrajado e assassinado a sua mulher.
Powers, Dawies e mais alguns amigos e conhecidos falaram-lhe, mas ele não ouviu as suas vozes. Só se deteve quando a figura avantajada do engenheiro Jurgen Nielsen se interpôs no seu caminho, perguntando:
— Que aconteceu, Bruce?
— Arranje uma pá e uma picareta, Jurgen. Tenho de enterrar a Lotte... e tenho de o fazer longe da linha férrea. Não quero que os comboios perturbem o seu eterno descanso.
Nielsen conhecia os homens e sabia que, o genro não lhe daria mais explicações, pelo menos naquele momento. Talvez quando se tivesse acalmado lhe contasse o que se passara. Pegou nas ferramentas e seguiu os passos de Dawson.
Caminharam durante uma longa hora que pareceu interminável ao engenheiro. A filha tinha-lhe morrido e ele ignorava tudo acerca da sua morte. Em pouco tempo, Bruce transformara-se e não falava. Ao chegar junto de um elevado penhasco de pedra vermelha como o sangue, deteve-se e pousou o corpo de Lotte no chão.
Ao reparar que os seus louros cabelos repousavam sobre a terra, despiu o casaco manchado de sangue e colocou-lho debaixo da cabeça.
— Que se passou, Bruce?... Peço-te que me expliques. Ela era tua mulher, mas também era minha filha suplicou Nielsen, tentando conter as lágrimas que teimavam em brotar dos seus olhos cansados.
— Mais tarde; agora devemos enterrar Lotte — respondeu o médico, pegando na picareta.
Entre ambos, abriram uma cova profunda. Quando terminaram, Bruce ficou no seu interior e pegou no corpo sem vida que lhe entregava o engenheiro Nielsen. Suavemente, colocou-o no fundo e começou a cobri-lo de terra com as mãos.
Só quando o cadáver de Lotte ficou completamente coberto, ele saiu da cova e com a pá acabou de a encher. Depois, ajoelhou-se junto dela e começou a orar. O sogro imitou-o e Bruce disse-lhe:
— Terá de fazer o favor de colocar urna cruz com o nome dela, Jurgen.
— Está descansado que o farei, meu filho. Queres relatar-me agora o que aconteceu?
— Sim, vamos; Lotte já não precisa de nós — respondeu Bruce, levantando-se.
Empreenderam o regresso e o médico explicou a tragédia que ocorrera no interior do vagão. Quando se encontravam muito perto do acampamento, Nielsen pousou uma das mãos sobre o ombro do genro e perguntou-lhe:
— Que vais fazer, filho?
— Procurar esses seis homens e acabar com eles.
— Eles sabem manejar as armas e tu não. E podes ter a certeza de que te hão-de assassinar; para mais, desconheces a identidade deles.
— Eu sei, mas procurarei um homem que tenha a cicatriz de uma queimadura na mão direita. Além disso, se voltar a ouvir as suas vozes, reconhecê-los-ei imediatamente. Quanto ao manejo das armas, estou certo de que aprenderei — respondeu Bruce, separando-se de Nielsen e encaminhando-se para o «Mormon Saloon».
Quando entrou no estabelecimento, fez-se o mais profundo silêncio à sua volta. Dirigiu-se diretamente para urna mesa ocupada pelos gémeos Ryter e disse apenas:
— Quero aprender a disparar.
— Vamos — respondeu Jess, levantando-se. Brent imitou-o e os três homens abandonaram o «saloon». Alguns operários viram-nos selar os seus cavalos e empreenderam a marcha para o Sul.
Bruce afastava-se das vermelhas terras de Utah porque não se encontrava em condições de acabar com os assassinos da sua mulher; mas, quando soubesse manejar um revólver, regressaria para se vingar.
Enquanto cavalgava com rumo ao Sul acompanhado pelos irmãos Ryter, pensava que já não lhe interessava morrer; primeiro, tinha de vingar a morte de Lotte e um voz interior dizia-lhe que, apesar da dificuldade da tarefa, chegaria a descobrir os seis homens.
Um mês depois do assassínio de Lotte, o troço da via férrea Nova Iorque-São Francisco ficou terminado.

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