domingo, 6 de setembro de 2015

PAS527. Desenterrar uma história macabra

Bateu com os nós dos dedos, e Rod convidou-a a entrar, com a mesma voz de sempre. Fecha a porta, sim? Ela assim o fez, e depois olhou-o com os olhos brilhantes.
-- Senta-te, Vera — disse. — E não precisas de bater na porta para entrar — esperou que ela se acomodasse, e então acrescentou: — Diz-me, que sabes tu acerca de Lina Hendrix? Quem é? Que história é essa de não ter pais? Tens ouvido alguma coisa?
O coração de Vera paralisou-se por momentos, devido ao aparente interesse que Rod mostrava por aquela rapariga esfarrapada.
Olhou-o de frente, durante mais de uni minuto, e logo com a voz um pouco rouca, respondeu:
— Tenho ouvido alguma coisa, mister Burke. Creio que a coisa ocorreu há muitos anos, quando Lina era ainda uma criança de cinco ou seis anos. Os seus pais tinham um rancho. Segundo dizem, venderam-no, e ao cabo de algum tempo ficaram na miséria. Depois, a mãe dela morreu, e meses mais tarde foi o pai. Disseram que o seu cavalo se tinha precipitado por uma abertura da «Mesa do Mogollon».
— Como se chamava o rancho deles, flor?
Era a primeira vez que lhe dirigia um galanteio, e Vera sentiu que o coração lhe batia descompassadamente no peito.
— Não o sei. Nunca consegui averiguar.
— É estranho. Se o rancho estava cá situado, como é de supor, alguém deve saber.
 Ficou alguns momentos pensativo, e Vera tirou um cigarro.
Aspirou o fumo sem ousar interrompê-lo, mas ficou pendente dele, dos seus mais pequenos movimentos, da expressão hermética do seu rosto, como nunca estivera por ninguém.
Nem sequer pelo homem que tempos atrás a seduzira.
— Lina deve saber, não é verdade?
— Não. Pelo menos foi o que ouvi dizer. Era muito pequena, quando isso aconteceu. Depois, a a vida que tem levado até agora, não foi a mais indicada para se falar disso. Há muito tempo, antes de eu vir para cá, que começaram a fugir dela, todos a repudiam, como se tivesse peste. Agora, com você, mister Burke, será outra coisa.
Rod olhava-a atentamente. Pela primeira vez, desde, havia já algumas horas. Vera surpreendeu um estranho relâmpago naqueles olhos frios e mortais.
— Que te faz supor isso, Vera?
Vera lançou ao ar uma baforada de fumo.
— O que você fez por ela. Mas não se esqueça que Lina ainda é uma criança.
Podia ser que assim fosse, ainda que a visão do regato, não era a de uma criança propriamente dita.
Rod absteve-se de o dizer. Depois, perante a admiração dela, disse, erguendo-se e aproximando-se:
— Creio que estás um pouco ciumenta, e isso não é bonito, Vera.
Pegou-lhe no queixo, e ela levantou a cabeça com um brilho alegre e prometedor nas suas grandes e misteriosas pupilas.
Ouviram então, atrás deles, uma risada.
Lentamente, separou-se dela, e ambos se voltaram para fitar a porta.
Vera não se moveu, mas conteve o alento. Rod mostrava-se completamente inexpressivo, mas a visão do regato, acentuou-se com a presença de Lina.
Estava na companhia de Sinclair, junto à porta, com os olhos brilhantes e um sorriso meio trocista nos lábios.
Trajava de mulher. Um vestido justo no busto e comprido, até aos pés, estes calçados com sapatos de salto alto.
O cabelo recolhido na nuca, numa artística banana. Uma mulher, não uma criança como dissera Vera.
Uma mulher completa.
Ainda mais bela que quando se banhava no regato, mais desejável.
Rod fez um gesto.
— Entra, Lina — olhou para Vera e Sinclair. — Deixem-me só com ela — disse à laia de ponto final.
Vera ergueu-se, atirou ao chão o cigarro meio consumido e seguiu Sinclair.
— Fecha a porta, Lina. Quero falar contigo.
Lina fitou-o nos olhos.
— Ao diabo! — explodiu. —Se tem algo para me dizer, faça-o, mas com a porta aberta. Não julgue que por quatro farrapos que me deu, eu me deixo beijar. Como essa...
Rod limitou-se a avançar, passou por detrás dela e fechou a porta. Lina impacientou-se e lançou-se contra ele.
— Deixe-me! Abra essa porta! Abra ou gritarei!
Segurou-a pelos pulsos, segundos antes das suas afiadas unhas chegarem à sua cara, e durante algum tempo, ambos estiveram lutando.
Lina caiu sobre um dos maples, respirando ofegante e com o rosto afogueado.
Mas nada disse, a expressão dele assustara-a.
— Maldita sejas mil vezes, Lina Hendrix ! — exclamou com voz rouca. — Isto não sucederia se não fosses tu. E não voltará a acontecer.
Depois, como se a desculpa o magoasse, fez um trejeito com a boca e sentou-se.
Sem nada dizer, Lina viu-o enrolar um fino e comprido cigarro, corno o acendia, e como depois cravava os olhos nela.
Sentiu-se incapaz de resistir àquele faiscante olhar Os minutos passaram céleres para ambos. Finalmente Rod começou a falar:
— Quero perguntar-te uma coisa, Lina. É referente a uma história que ouvi contar e que te diz respeito. A ti e aos teus pais. Sei que ficaste sem eles quando eras ainda uma criança. Qual era o rancho que te pertencia?
— Que me pertencia, não, mister Burke, que me pertence ainda, o que não é o mesmo
Rod franziu o sobrolho.
— Porquê, ainda te pertence? — perguntou.
— Porque tenho a certeza que o meu pai nunca o chegou a vender.
— Explica-me isso, queres?
O rosto de Lina toldou-se.
— Não lhe posso explicar, mister Burke. Mas tenho as minhas suspeitas. Veja: se esse rancho não continuasse a pertencer-me, se esse rancho não foi roubado ao meu pai, de qualquer modo que eu ignoro, como se explica que a população de Mayer, nunca me tenha ajudado? Desde criança que me repudiam, em todas as partes, como se eu tivesse lepra. Porquê? — mirou-se dos pés à cabeça e acrescentou: — Estas são as primeiras roupas de mulher que envergo. Sim... creio que mereceu a pena receber o meu primeiro beijo em troca deles —levantou os olhos, e encarou-o. — Têm medo de alguém. Alguém que deve saber toda a verdade e temem as suas represálias. Isto é uma povoação de cobardes, mister Burke. Por isso sempre me desprezaram. Por isso me desprezam ainda. E teve que ser um forasteiro quem...
Inclinou a cabeça, incapaz de continuar a falar.
— Suspeitas que essa pessoa possa ser Dayton ?
Respondeu sem o fitar:
— Não sei. É estranho, mas é verdade. Nada sei, mister Burke. Nada! Nem sequer o nome do rancho que foi dos meus pais! Esta colectividade de cobardes, nunca fala na minha presença. Para eles, eu sou uma esfarrapada. Uma desgraçada que não tem onde cair morta.
Rod olhou-a durante alguns instantes em silêncio. Depois perguntou:
— Queres trabalhar para mim?
— Onde? No saloon? Confesso que sei cantar e dançar, talvez melhor que algumas das suas canto-ras, mister Burke. Mas a ideia não me seduz.
— Não é isso. Mas se sabes escrever e fazer contas, podes ajudar Vera. Vera é a minha secretária, e creio que terá bastante trabalho, para nem ter um momento livre. Que respondes?
 Rod surpreendia-se poucas vezes, mas desta vez, teve de fazer um esforço, sobre-humano para que o seu rosto não deixasse transparecer a sua emoção, quando Lina levantou os olhos para ele e disse:
— Que tenta esquecer, mister Burke? Há alguns segundos vi-o beijar essa cantora... Vera. Depois beijou-me a mim. Vera é a sua secretária, quanto a mim...
— Cala-te!
A ordem soou como um disparo. Lina encolheu-se no maple, e aos seus olhos assomou o temor.
— Agora sai, Lina —acrescentou. —Põe-te de acordo com Vera. Ganharás cem dólares semanais.
Nada mais disse. Voltou o rosto para a janela, Lina, sem deixar de o fitar, retrocedeu de costas

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