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O recinto estava repleto. Griswold dizia muito satisfeito que toda a «Cuenca» estava ali reunida. Talvez a afirmação fosse um pouco exagerada, mas mais de setenta por cento dos cidadãos de ambos os sexos e de todas as idades ocupavam o espaço destinado à festa.
Era sábado e portanto podiam divertir-se até à madrugada de domingo e ninguém tencionava ir-se deitar, pois tinham um período de descansa no dia seguinte. Fazia seis dias que Griswold tinha vivido o grande acontecimento, quando perfurava um poço num pequeno vale e tinha descoberto o riquíssimo filão de cobre.
Tinha podido dar a festa antes, mas todos estavam de acordo que o sábado era o dia ideal.
Fess Dobson dirigiu-se com dificuldade até à mesa onde se acumulavam as garrafas de «whisky», genebra, rum, cerveja, licores, doces e outros de que se ignorava o recheio mas que ninguém hesitava em provar.
Fess serviu-se de uma dose dupla de «whisky». Olhou em torno e franziu as sobrancelhas. Harry dançava com uma rapariga alta e morena de beleza talvez chocante, que trajava um vestido vermelho bastante decotado. Dançava com o corpo totalmente colado ao de Harry e com o rosto junto do pescoço do rapaz. Fess não era puritano, mas Chris Hodger era uma rapariga demasiadamente liberal para os hábitos locais. Tudo isto, auxiliado pelos encantos físicos, justificava in a paixão do seu irmão pela jovem.
Fess desviou o olhar do par ao sentir uma mão sobre o ombro. Voltou-se. Diante dele estava o xerife local, Abe Wilmington, com um copo de rum na mão e o nariz com um colorido vermelho muito suspeito.
— Como vai, Dobson? — balbuciou o representante da lei, um pouco ingénuo. — Frequenta poucas vezes a vida social de «Plata».
— Sou um homem insociável, xerife. Agrada-me o sossego, e a calma.
— Isso é raro na sua idade. Olhe para seu irmão: ele sabe divertir-se. Diabo, Harry tem sorte com as mulheres! O'Malley está louco por ela... Mas ela, em troca, não abandona Harry.
— Falando dos O'Malley; viu Marcus?
— Não, não o vi; esse é diferente dos irmãos— disse o xerife apoiando-se sabre uma mesa, prestes a cair.— Marcus é o melhor de todos. Por vezes, pergunto a mim mesmo, com quem se parecerá. A rapariga, Niky… uf, que ciclone! No outro dia esbofeteou Mathews Suddlewich, só porque este ultrapassou ligeiramente as normas.
-- Parece-me uma reação muito natural— sorriu Fess.
— Sim, mas Mathews foi cair no meio da rua. É um demónio e tem a força de um cavalo selvagem. O xerife começou então a explicar como eram os cava-los selvagens. Fess não se dispôs a escutá-lo e afastou-se, deixando-o a falar sozinho. Harry já não se encontrava dançando com Chris. Não era difícil imaginar que se encontravam em algum canto escuro. Decididamente a rapariga não lhe agradava. Certamente que não era uma rapariga decente. Mas Harry nunca descobriria isso...
— Procura alguém, Dobson?
A interrogação surgiu mesmo atrás de si. Lentamente, Peso voltou-se. A voz calma, levemente gutural, sensual, pareceu corporizar-se, na brisa fresca da noite. Longe, um vaqueiro trauteava uma canção do folclore rancheiro.
Na realidade o xerife tinha certa razão. Niky O'Malley fazia lembrar um potro selvagem, um animal ainda não domado. A cabeleira loira, da cor do ouro puro, quase com fulgores de prata, flutuava solta à brisa suave da planície. Os olhos castanho-escuros chispavam, contrastando, ainda que se harmonizassem com o bronzeado da sua pele lisa. Os lábios intensamente vermelhos e as membranas nasais a vibrar como se tentassem aperceber o ambiente febril da festa; um corpo de curvas violentas, moldadas por um tecido grosseiro, e pela jaqueta de pele sobre uma blusa amarela; um corpo sinuoso e feminino, um rosto sensual. Assim era Niky O'Malley, o formoso «animal» indomável da família irlandesa de «Cuenca». Agora ali estava fincada diante dele, lançando o desafio inconsciente do seu temperamento, enquanto Fess a percorria com uma calma insultante.
— Olá, senhorita O'Malley — saudou. — Não vem em traje de festa.
— Perguntei-lhe se procurava alguém— repetiu ela, teimosa.
— Encontrei-a; que mais posso ambicionar?
— Você é um lobo solitário, não é? — ela riu-se mostrando uns dentes resplandecentes, mas Peso fitava intensamente os seus lábios escarlates...
— Lobo solitário? — Fess riu, divertido. — Ignorava que me tratavam assim.
— Meu irmão anda à sua procura— disse Niky aproximando-se dele. — Mas isso não tem pressa.
— Claro. Dança, senhorita O'Malley ?
— Não gosto de dançar.
— É curioso; eu também não. Passeamos?
— É melhor, mas não tente namorar-me, senhor Dobson.
-- Sou uma pessoa correta.
— De que falaremos? Entre um homem e uma mulher, os temas de conversa são muito escassos, não acha?
— Não, não acho. — Caminhavam sob o céu estrelado, afastando-se do recinto e das luzes. A claridade da noite tornava Niky mais formosa e atrativa. Fess pressentia o doce aroma do corpo jovem e saudável, da mulher que Niky já era. Era como um íman; mas, sem dúvida, perigoso...
— Bem, falemos então. Estou-o escutando. Tenho a certeza que me aborrecerei. O homem quando está com uma mulher só lhe diz coisas absurdas.
— A senhorita O'Malley tem uma ideia deformada dos homens.
— Chame-me Niky. Qual é o seu nome? — somente conhecia o apelido.
— Fess.
— Fess? Que nome estranho.
— Também Niky o é, embora você não o seja...
— Nem você. É elegante. Agrada-me.
— Obrigado — Fess não se surpreendeu com a astúcia de Niky. Espantar-se-ia se ela fosse diferente. Transparecia juventude, audácia, violência sensual. — Mas agora é você que está falando «à» maneira que tinha reprovado.
— É diferente. As mulheres nunca falam desse modo, mas eu sim.,
— Rebelde, hein?
— Que entende por «rebelde», Fess?
— Desejo de ser diferente, de fugir às normas comuns. Pode ser uma tentativa de fuga. Seu pai deve ser um tirano.
— Cuidado — ela deteve-se. As suas narinas vibraram tensas e os olhos brilharam mais que a Estrela Polar no firmamento. — Não diga mal de meu pai. Adoro-o.
— Não disse nada de especial. Ser um tirano não é propriamente um defeito. É preciso, por exemplo, para pessoas como Luke.
— Luke… — ela suspirou. — Não simpatiza com ele.
— Nem ele comigo. Parece um corvo falador...
— Não para mim. Luke é meu irmão.
— Mas você também não sente nenhum apreço especial por Luke.
— E porque pensa assim?
— Nada. Simples intuição. Enganei-me?
— É muito esperto... ou tem pretensões a sê-lo. — Ela continuava caminhando. A escuridão já os rodeava. — Não, Luke não me agrada. É bastante diferente de Ben e Marcus... principalmente de Marcus.
— Marcus parece ser o privilegiado da família.
— E é. Marcus é forte, inteligente, sincero, sensato. Sabe como proceder. Além disso é afetuoso e leal... Gosto muito de Marcus. É o que me compreende melhor.
— Deve ser muito inteligente, porque compreendê-la não deve ser fácil.
— Você ainda não o tentou.
— Por outro lado não pense que é completamente impenetrável. Por vezes as couraças de aço trespassam-se facilmente, e a sua tem pontos fracos.
— Deveras? — estacou devagar. Estavam num lugar isolado, unicamente com a fraca luminosidade dos astros dispersos pelo infinito. «Perigosa», pensou novamente Fess, olhando aquela boca escarlate... — descobriu esses pontos fracos, «lobo solitário»?
— Rebeldia, já lhe disse, e aborrecimento da vida, de tudo, não sei. Até ansiedade para ser encarada como uma mulher... Na realidade deseja profundamente que um homem lhe ofereça amor, e simultaneamente teme que isso suceda.
— Beije-me, Fess.
— Eh?
— Beije-me... Porque espera? Demonstre que sabe amar. — Aproximou-se de lábios entreabertos e olhos cerrados. Fess não conseguiu resistir...,
— Beija muito bem, Fess — disse ela, no fim, fria e calma. — Obrigado. Esta noite foi uma boa experiência para mim. Mas você é um insolente. Ignora tudo acerca de mim: não acertou absolutamente em nada!
E rapidamente, sem que Fess pudesse impedir, uma mão embateu violentamente no seu rosto, como uma detonação seca no silêncio da noite, só rompida pelas canções e músicas rancheiras. Depois Niky correu velozmente e desapareceu na noite como uma aparição fugaz. Mas o calor do seu corpo fresco e juvenil permaneceu, assim como a dor no rosto de Dobson; e também um doce sabor de uns lábios... Não, Niky não tinha sido uma alucinação.,
Alguém se riu, atrás de si. Fess voltou-se completamente, irritado. Viu diante de si um homem, de pernas afastadas, numa posição que recordava vagamente a de Niky, quando a viu pela primeira vez, com os cabelos ruivos, quase vermelhos e um largo sorriso divertido; levava duas pistolas na cintura.,
— Quem é? — perguntou, mas já conhecendo a resposta.
— Marcus O'Malley — disse o homem, avançando um passo. — Minha irmã é uma estranha rapariga, não é?
— Sim, muito estranha... Vinha-nos seguindo?
— De certo modo, mas juro que só vi a bofetada. Ignoro o que se passou anteriormente, mas sinceramente não pensa mal. Niky é a pessoa que melhor conheço neste mundo, e é a primeira vez que esbofeteia alguém, pelo menos que eu saiba. Sempre tive um pensamento, Dobson…
— Qual? — Fess simpatizava com a voz varonil e límpida daquele homem.
— No dia em que Niky se apaixonar por um homem, começará por esbofeteá-lo...
(Coleção Califórnia, nº 5)
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