A festa de Rory Griswold estava no auge do esplendor. Não era propriamente aquilo que o povo do Este denomina de festa, mas os provincianos habitantes de «Cuenca de la Plata», pensavam de modo diferente. O toldo colocada pelo radiante Griswold era amplo e resguardava uma provisão de bebidas suficiente para todo um regimento. Fora do toldo, debaixo do primaveril céu estrelado do Novo México, um grupo de músicos mal instalados tocava uma série de músicas de dança e canções rancheiras, vagamente parecidas com as suas versões originais.
O recinto estava repleto. Griswold dizia muito satisfeito que toda a «Cuenca» estava ali reunida. Talvez a afirmação fosse um pouco exagerada, mas mais de setenta por cento dos cidadãos de ambos os sexos e de todas as idades ocupavam o espaço destinado à festa.
Era sábado e portanto podiam divertir-se até à madrugada de domingo e ninguém tencionava ir-se deitar, pois tinham um período de descansa no dia seguinte. Fazia seis dias que Griswold tinha vivido o grande acontecimento, quando perfurava um poço num pequeno vale e tinha descoberto o riquíssimo filão de cobre.
Tinha podido dar a festa antes, mas todos estavam de acordo que o sábado era o dia ideal.
Fess Dobson dirigiu-se com dificuldade até à mesa onde se acumulavam as garrafas de «whisky», genebra, rum, cerveja, licores, doces e outros de que se ignorava o recheio mas que ninguém hesitava em provar.
Fess serviu-se de uma dose dupla de «whisky». Olhou em torno e franziu as sobrancelhas. Harry dançava com uma rapariga alta e morena de beleza talvez chocante, que trajava um vestido vermelho bastante decotado. Dançava com o corpo totalmente colado ao de Harry e com o rosto junto do pescoço do rapaz. Fess não era puritano, mas Chris Hodger era uma rapariga demasiadamente liberal para os hábitos locais. Tudo isto, auxiliado pelos encantos físicos, justificava in a paixão do seu irmão pela jovem.
Fess desviou o olhar do par ao sentir uma mão sobre o ombro. Voltou-se. Diante dele estava o xerife local, Abe Wilmington, com um copo de rum na mão e o nariz com um colorido vermelho muito suspeito.
— Como vai, Dobson? — balbuciou o representante da lei, um pouco ingénuo. — Frequenta poucas vezes a vida social de «Plata».
— Sou um homem insociável, xerife. Agrada-me o sossego, e a calma.
— Isso é raro na sua idade. Olhe para seu irmão: ele sabe divertir-se. Diabo, Harry tem sorte com as mulheres! O'Malley está louco por ela... Mas ela, em troca, não abandona Harry.
— Falando dos O'Malley; viu Marcus?
— Não, não o vi; esse é diferente dos irmãos— disse o xerife apoiando-se sabre uma mesa, prestes a cair.— Marcus é o melhor de todos. Por vezes, pergunto a mim mesmo, com quem se parecerá. A rapariga, Niky… uf, que ciclone! No outro dia esbofeteou Mathews Suddlewich, só porque este ultrapassou ligeiramente as normas.
-- Parece-me uma reação muito natural— sorriu Fess.
— Sim, mas Mathews foi cair no meio da rua. É um demónio e tem a força de um cavalo selvagem. O xerife começou então a explicar como eram os cava-los selvagens. Fess não se dispôs a escutá-lo e afastou-se, deixando-o a falar sozinho. Harry já não se encontrava dançando com Chris. Não era difícil imaginar que se encontravam em algum canto escuro. Decididamente a rapariga não lhe agradava. Certamente que não era uma rapariga decente. Mas Harry nunca descobriria isso...
— Procura alguém, Dobson?
A interrogação surgiu mesmo atrás de si. Lentamente, Peso voltou-se. A voz calma, levemente gutural, sensual, pareceu corporizar-se, na brisa fresca da noite. Longe, um vaqueiro trauteava uma canção do folclore rancheiro.
Na realidade o xerife tinha certa razão. Niky O'Malley fazia lembrar um potro selvagem, um animal ainda não domado. A cabeleira loira, da cor do ouro puro, quase com fulgores de prata, flutuava solta à brisa suave da planície. Os olhos castanho-escuros chispavam, contrastando, ainda que se harmonizassem com o bronzeado da sua pele lisa. Os lábios intensamente vermelhos e as membranas nasais a vibrar como se tentassem aperceber o ambiente febril da festa; um corpo de curvas violentas, moldadas por um tecido grosseiro, e pela jaqueta de pele sobre uma blusa amarela; um corpo sinuoso e feminino, um rosto sensual. Assim era Niky O'Malley, o formoso «animal» indomável da família irlandesa de «Cuenca». Agora ali estava fincada diante dele, lançando o desafio inconsciente do seu temperamento, enquanto Fess a percorria com uma calma insultante.
— Olá, senhorita O'Malley — saudou. — Não vem em traje de festa.
— Perguntei-lhe se procurava alguém— repetiu ela, teimosa.
— Encontrei-a; que mais posso ambicionar?
— Você é um lobo solitário, não é? — ela riu-se mostrando uns dentes resplandecentes, mas Peso fitava intensamente os seus lábios escarlates...
— Lobo solitário? — Fess riu, divertido. — Ignorava que me tratavam assim.
— Meu irmão anda à sua procura— disse Niky aproximando-se dele. — Mas isso não tem pressa.
— Claro. Dança, senhorita O'Malley ?
— Não gosto de dançar.
— É curioso; eu também não. Passeamos?
— É melhor, mas não tente namorar-me, senhor Dobson.
-- Sou uma pessoa correta.
— De que falaremos? Entre um homem e uma mulher, os temas de conversa são muito escassos, não acha?
— Não, não acho. — Caminhavam sob o céu estrelado, afastando-se do recinto e das luzes. A claridade da noite tornava Niky mais formosa e atrativa. Fess pressentia o doce aroma do corpo jovem e saudável, da mulher que Niky já era. Era como um íman; mas, sem dúvida, perigoso...
— Bem, falemos então. Estou-o escutando. Tenho a certeza que me aborrecerei. O homem quando está com uma mulher só lhe diz coisas absurdas.
— A senhorita O'Malley tem uma ideia deformada dos homens.
— Chame-me Niky. Qual é o seu nome? — somente conhecia o apelido.
— Fess.
— Fess? Que nome estranho.
— Também Niky o é, embora você não o seja...
— Nem você. É elegante. Agrada-me.
— Obrigado — Fess não se surpreendeu com a astúcia de Niky. Espantar-se-ia se ela fosse diferente. Transparecia juventude, audácia, violência sensual. — Mas agora é você que está falando «à» maneira que tinha reprovado.
— É diferente. As mulheres nunca falam desse modo, mas eu sim.,
— Rebelde, hein?
— Que entende por «rebelde», Fess?
— Desejo de ser diferente, de fugir às normas comuns. Pode ser uma tentativa de fuga. Seu pai deve ser um tirano.
— Cuidado — ela deteve-se. As suas narinas vibraram tensas e os olhos brilharam mais que a Estrela Polar no firmamento. — Não diga mal de meu pai. Adoro-o.
— Não disse nada de especial. Ser um tirano não é propriamente um defeito. É preciso, por exemplo, para pessoas como Luke.
— Luke… — ela suspirou. — Não simpatiza com ele.
— Nem ele comigo. Parece um corvo falador...
— Não para mim. Luke é meu irmão.
— Mas você também não sente nenhum apreço especial por Luke.
— E porque pensa assim?
— Nada. Simples intuição. Enganei-me?
— É muito esperto... ou tem pretensões a sê-lo. — Ela continuava caminhando. A escuridão já os rodeava. — Não, Luke não me agrada. É bastante diferente de Ben e Marcus... principalmente de Marcus.
— Marcus parece ser o privilegiado da família.
— E é. Marcus é forte, inteligente, sincero, sensato. Sabe como proceder. Além disso é afetuoso e leal... Gosto muito de Marcus. É o que me compreende melhor.
— Deve ser muito inteligente, porque compreendê-la não deve ser fácil.
— Você ainda não o tentou.
— Por outro lado não pense que é completamente impenetrável. Por vezes as couraças de aço trespassam-se facilmente, e a sua tem pontos fracos.
— Deveras? — estacou devagar. Estavam num lugar isolado, unicamente com a fraca luminosidade dos astros dispersos pelo infinito. «Perigosa», pensou novamente Fess, olhando aquela boca escarlate... — descobriu esses pontos fracos, «lobo solitário»?
— Rebeldia, já lhe disse, e aborrecimento da vida, de tudo, não sei. Até ansiedade para ser encarada como uma mulher... Na realidade deseja profundamente que um homem lhe ofereça amor, e simultaneamente teme que isso suceda.
— Beije-me, Fess.
— Eh?
— Beije-me... Porque espera? Demonstre que sabe amar. — Aproximou-se de lábios entreabertos e olhos cerrados. Fess não conseguiu resistir...,
— Beija muito bem, Fess — disse ela, no fim, fria e calma. — Obrigado. Esta noite foi uma boa experiência para mim. Mas você é um insolente. Ignora tudo acerca de mim: não acertou absolutamente em nada!
E rapidamente, sem que Fess pudesse impedir, uma mão embateu violentamente no seu rosto, como uma detonação seca no silêncio da noite, só rompida pelas canções e músicas rancheiras. Depois Niky correu velozmente e desapareceu na noite como uma aparição fugaz. Mas o calor do seu corpo fresco e juvenil permaneceu, assim como a dor no rosto de Dobson; e também um doce sabor de uns lábios... Não, Niky não tinha sido uma alucinação.,
Alguém se riu, atrás de si. Fess voltou-se completamente, irritado. Viu diante de si um homem, de pernas afastadas, numa posição que recordava vagamente a de Niky, quando a viu pela primeira vez, com os cabelos ruivos, quase vermelhos e um largo sorriso divertido; levava duas pistolas na cintura.,
— Quem é? — perguntou, mas já conhecendo a resposta.
— Marcus O'Malley — disse o homem, avançando um passo. — Minha irmã é uma estranha rapariga, não é?
— Sim, muito estranha... Vinha-nos seguindo?
— De certo modo, mas juro que só vi a bofetada. Ignoro o que se passou anteriormente, mas sinceramente não pensa mal. Niky é a pessoa que melhor conheço neste mundo, e é a primeira vez que esbofeteia alguém, pelo menos que eu saiba. Sempre tive um pensamento, Dobson…
— Qual? — Fess simpatizava com a voz varonil e límpida daquele homem.
— No dia em que Niky se apaixonar por um homem, começará por esbofeteá-lo...
(Coleção Califórnia, nº 5)
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