sexta-feira, 29 de outubro de 2021

ARZ133.03 Dono do império flutuante

Com o chapéu na mão, o xerife subiu a prancha que conduzia ao «saloon» flutuante de Perry Douglas. Trazia fato escuro e laço preto no pescoço, sobre a camisa de seda branca. Excecionalmente, metera a insígnia de xerife no bolso do colete, sem dúvida porque lhe interessava dar uma vista de olhos sem chamar a atenção. Era a primeira vez que entrava ali. Esteve uns minutos indeciso, com a mão na balaustrada. 

Os três barcos fluviais permaneciam fundeados no embarcadouro, dois «saloons» e um teatro. Na realidade, aqueles faziam uma concorrência desleal ao último, cujas receitas provinham das peças que representava. 

Os «saloons» transportavam passageiros de um ponto para o outro do rio, como linha regular de transporte, exploravam os divertimentos e exibiam no palco as artistas mais bonitas. Mas naquele momento o palco tinha o pano descido e os espectadores olhavam para a escada, coisa que surpreendeu o xerife. Olhavam-no a ele? Virou um pouco a cabeça. 

Então viu uns sapatos de verniz reluzente, de salto relativamente alto para aquela época. Ergueu a vista. Mentalmente, disse para consigo que nunca vira umas pernas de mulher tão bem torneadas, como suporte de um corpo cheio de beleza e harmonia. 

Efetivamente, descia uma mulher, cuja sensacional formosura provocou uni murmúrio de entusiasmo. E apenas um murmúrio porque ninguém se atrevia a levantar a voz quando estava fora do palco. Era a noiva do chefe da quadrilha, uni tipo de génio endiabrado e, segundo constava, rapidíssimo com o revólver. 

Loura, de olhos grandes, verdes, e lábios sensuais, com um caracol atrevido a cair-lhe para a testa, o que tornava mais singular a sua beleza, aquela mulher parei cia uma deusa. 

Cem olhares convergiram para ela. Trazia nos lobos das orelhas uns brincos de argolas sucessivas, que brilhavam à luz dos bicos de gás. O'Farrell afastou-se para a deixar passar e, irresistivelmente, foi atrás dela, como atraído por uma força magnética. Ela sorriu e saudou com um movimento de braço os seus admiradores. 

— Olá, Driver! Onde está Perry? — perguntou «miss» Laura a um rapazola ruivo, que entretinha os seus ócios a tocar piano. 

— A falar com William Chapman e outros senhores — respondeu. — Esse Chapman está mais louco do que um chocalho. Diz que o arruinámos porque as pessoas preferem o teatro frívolo que nós exibimos. 

O'Farrell seguiu-a de perto. Admirava a esplêndida figura daquela maravilhosa mulher. Sabia que era a noiva de Perry, mas não se importaria de lha disputar. As coisas do coração não têm, em geral, remédio, e um homem é capaz de se meter num vulcão atrás de uma mulher como Piky. 

— Permite-me, «miss» Laura? — pediu, afastando a cadeira para ela se sentar. 

— É muito amável, cavalheiro — respondeu ela, sorrindo. 

Atreveu-se a tirar-lhe suavemente a capa que trazia pelos ombros e ela agradeceu-lhe com um gesto. O'Farrell sentou-se a seu lado e convidou-a a tomar qualquer coisa. «Miss» Laura, que o fitava com certa altivez, pediu uma espécie de ponche. 

O'Farrell bebeu aos golinhos um copo de uísque e iniciou uma conversa condizente com a mentalidade da artista. Sabia muito bem que Piky não era uma granjeirazinha convencional, que se assustasse com o olhar cobiçoso dos homens. 

— Por que deixou o teatro, miss» Laura? Chapman disse-me que era uma artista capaz de superar Adelaida Ristori. 

— É um exagero próprio de um sonhador. Chapman sonha encontrar figuras culminantes da cena do país. Não as poderá encontrar enquanto se manifestar tão mesquinho. 

— Não dispõe dos meios necessários para formar uma grande companhia. Você não o devia ter abandonado. Nesta pocilga de «mister» Douglas não conseguirá fama e prestígio, antes pelo contrário. 

— Oh! Fala como se fosse o meu preceptor. Pois fique sabendo que estou com Perry porque me agrada. Devo-me a ele. 

— Deve-se a um jogador? Suspeito que a coagiu. Quantos homens já matou esse valentão? 

— Todos os que me incomodaram — replicou, com uma careta. 

O xerife sorriu abertamente, sobretudo quando verificou que Laura, apesar do que dissera, aceitava a sua companhia. 

— Incomodava-a também Roy West? 

— Oh, não! — respondeu sem demora. Era um bom amigo de Perry. 

— Perry pode tê-lo matado por ciúmes ou porque lhe devia dinheiro. 

— Duvido muito. Onde existe amizade não cabe a traição. De resto, Perry é mais frio do que um «Iceberg». 

Permaneceram em silêncio cerca de um minuto. A sala estava quase cheia de clientes, entre os quais não faltavam mulheres. Vaqueiros com as suas camisas de xadrez e formidáveis revólveres nos cinturões bebiam ao balcão ou passeavam pela sala onde se jogava, tilintando à sua passagem as esporas de prata. Os agricultores e os comerciantes vestiam de outra maneira, elegantes sobrecasacas, calças escuras e colete com corrente e relógio de algibeira. De um momento para o outro começaria a festa e desfilariam pelo palco grupos de dança e cançonetistas. 

Naquele momento abriu-se a porta do gabinete e surgiram dois homens. O xerife conhecia Coleman e Chapman, mas não um terceiro, que apareceu atrás deles e com o qual nunca trocara palavra. 

Levantou-se e pôs as mãos nos ombros de Piky. O'Farrell não moveu um músculo da cara. Impassível, esperou que Parry Douglas chegasse onde eles estavam. Douglas avançou, a tirar grandes fumaças de um charuto. Fitava os dois, mas sobretudo a mulher. Fez uma careta demonstrativa de que lhe desagradava que o forasteiro acariciasse a rapariga. Perry deitou fora o charuto, com desprezo. 

— Que faz você aqui? Agrada-lhe a minha noiva? 

O xerife não se perturbou. 

— Não poderia ser de outro modo. 

— E uma mulher proibida. Sendo minha noiva, irrita-me bastante que um tipo como você a olhe dessa maneira. 

— Agrada-me, mais nada. 

A imediata reação de Perry Douglas tinha de ser necessariamente violenta, pois com o punho crispado atingiu o xerife na boca. Este caiu para trás e partiu uma cadeira na queda, mas pôs-se imediatamente em pé e não hesitou. Atirou-se como um bólide ao jogador. 

O primeiro golpe foi no estômago. Perry baixou um pouco a cabeça, mas levantou-a empurrada pela força de um segundo murro no queixo. Um lampejo de furor atravessou os olhos de Perry. Ninguém se atrevera ainda a falar-lhe assim nem a replicar-lhe com os punhos. Avançou para o xerife. Este cortou-lhe o passo com um novo soco que lhe acertou num olho. 

Perry perdeu o domínio dos nervos e puxou do revólver. Contudo, O'Farrell não o deixou disparar; antecipou-se ao seu gesto. Além disso, a estrela de xerife saíra-lhe do bolso e ficara presa a este por uma ponta, de forma que brilhava à luz de um bico de gás próximo. 

— Esteja quieto ou furo-lhe o ventre. 

Com os maxilares contraídos, Perry mudou ligeiramente de cor. Fez um sinal a um dos seus pistoleiros, o qual olhou com desprezo para o xerife, com expressão sinistra. Driver e Alex, sentados perto, estavam atentos à cena, dispostos a disparar no melhor momento. 

Foi então que «miss» Laura se pôs no meio de ambos. Colernan e Chapman, pelo seu lado, procuraram afrouxai a tensão. 

— Não o conhecia, Douglas? -- perguntou o empresário. — É o novo xerife de São Luís. Sabe uma coisa, O'Farrell? Perry Douglas resolveu arruinar-me se não lhe vender o «Loving Kate». No entanto, disse-lhe que nunca farei isso. Nasci no berço de um teatro flutuante e morrerei à frente da companhia, mesmo com a plateia vazia! 

— Hum! — exclamou o vereador. — Você é um homem cheio de imaginação. Perry não fez mais do que oferecer-lhe cem mil dólares pelo barco e pela companhia. Gosta de teatro. 

Os dois rivais mantiveram-se tensos, com as feições crispadas. «Miss» Laura deu umas palmadinhas no braço de Perry, convidando-o a guardar o «Colt», o que ele fez, embora de má vontade. 

— É melhor sentarmo-nos — disse Coleman. — O xerife tinha muita vontade de te conhecer, rapaz. Investiga a morte de West e julga que tu não és estranho a ela. 

— É uma suposição absurda. Não tinha motivos para o matar. Emprestou-me dinheiro, há meses, mas paguei--lho. 

— Cassidy não disse o mesmo e por isso morreu. Os pistoleiros que o mataram pertenciam à sua quadrilha. 

O xerife sentou-se diante do jogador. Pelo rabo do olho, vigiava os outros pistoleiros. 

— Não é verdade. Bebiam e jogavam no «saloon» de Dondée, mas não recebiam ordens minhas. 

— Então quem era o seu chefe? Por que eliminaram Cassidy? 

Entreolharam-se em silêncio, mais uma vez. Ninguém se atrevia a indicar uma pista que lhe poderia ser fatal. 

— Que pretende você, Douglas? Este barco ancorou aqui como se não fosse sulcar mais as águas dos rios. Este é um porto de trânsito e não de permanência. 

Perry passou o braço pelos ombros de Piky, ao mesmo tempo que sorria hipocritamente. 

— São Luís é a cidade mais próspera do Oeste. Gostaria de a possuir como possuo esta notável mulher. Não sairei daqui enquanto não o conseguir. 

— No entanto, esquece que fui eleito xerife para impedir precisamente que os tipos da sua espécie façam o que lhes apetece. Prometi ao juiz acabar com a podridão e com o roubo. 

— Conheço Cove S. Copeland e parece-me muito simpático. Você não me poderá prender, como o não puderam outros xerifes, pela simples razão de que jogo sempre limpo. Tudo o que acontece no Missouri atiram para cima de mim, sem dúvida porque sou uma espécie de cabeça de turco da Justiça. Não sou tão mau como dizem os puritanos. Dedico-me ao negócio das diversões e mais nada. Desejo que São Luís se divirta e que encha todas as noites os meus três barcos. 

— Você apenas é dono deste. 

Perry voltou a afagar o ombro de «miss» Laura. Trocou um olhar com Coleman e, sorrindo daquela maneira fria, tão peculiar nele, mergulhou a ponta do charuto no copo de uísque. 

— O outro está hipotecado a meu favor — disse com ar triunfante. — Mark Dondée é um intruso e por isso falhou. Não o vê deserto? Gostaria que não saísse do porto, exceto quando organizemos excursões com os passageiros mais ricos. Depois tratarei de comprar todos os «saloons» flutuantes que navegam no Missouri, no Mississípi e no Ohio. Vanderbilt apoderou-se de quase todas as linhas férreas da União. Rockefeller arruinou todas as companhias competidoras na exploração do petróleo. Carnigie fabrica mais aço do que todos os outros fabricantes juntos. Morgan, o banqueiro... Fez uma pausa e bebeu um golo de uísque. — Eu estou a imitá-los, xerife. Dentro de pouco tempo serei senhor absoluto de quantos barcos navegam nos rios do Oeste. Prometi-o a minha mãe, que morreu há cinco anos. O «Loving Kate» também será meu. 

Disse-o com tanto entusiasmo e convicção, como o poderia ter feito um verdadeiro rei sem coroa dos monopólios de Nova Iorque, que O'Farrell ficou atónito e sem saber que replicar em seguida. Olhou o vereador e pareceu-lhe que se babava de gozo ao ouvir falar o jogador. Pelo seu lado, Piky inclinara a cabeça no peito do homem, como para demonstrar que era submissa e que lhe pertencia. William Chapman, pelo contrário, empalidecera e mostrava-se tão perturbado que teve de passar um lenço pelo rosto, para limpar o suor. 

— Não, não, «mister» Douglas! — gritou. — Não lhe venderei o teatro. Herdei-o do meu pai... Esse barco é a minha vida, toda a minha vida. 

O'Farrell assentiu, meneando a cabeça. Douglas, porém, olhou-o com desprezo. 

— Vender-mo-á, Chapman, pouco a pouco. Está coberto de dívidas. Deve dinheiro aos carpinteiros que construíram os novos bancos, aos estofadores que estofaram as poltronas dos lugares caros, aos fabricantes de bicos de gás. Há quanto tempo não paga aos artistas da sua companhia? 

Chapman baixou a cabeça, ainda mais atribulado. 

— Um mês... Não me largam com pedidos de dinheiro, mas passam fome com gosto, porque acima de tudo são artistas. Por isso lhe dizia há pouco que necessitava de trinta mil dólares para sair deste aperto... 

Piky Laura levantou-se, muito impressionada com as palavras do empresário. Perry antecipou-se aos seus protestos. 

— Bem, Chapman, empresto-lhe esse dinheiro sem fazer parte do contrato futuro da venda do barco, como lhe propus há pouco. Empresto-lho diante do xerife. Será um empréstimo entre amigos. Aqui o tem. 

Atirou para cima da mesa um maço de notas, no qual o empresário pegou com evidente avidez. 

— São trinta e um mil duzentos e vinte cinco dólares, senhor — disse, com um fio de voz. 

— Não importa. Esse é o primeiro empréstimo que lhe faço sem juros nem prazo fixo. 

Foram as suas últimas palavras naquela noite. Abraçou «missa Laura e afastou-se com ela em direção à coberta, plenamente satisfeito com aquela exibição de generosidade, muito pouco habitual nele. 

— Viu, xerife? — perguntou Coleman, sorridente, como lacaio que era ou parecia ser do jogador. — Não é verdade que Douglas seja um especulador sem escrúpulos. 

O'Farrell guardou silêncio, não porque acreditasse nas palavras do vereador, mas sim porque olhava Chapman e via que se lhe enchiam os olhos de lágrimas. De agradecimento ou de vergonha? Era a primeira vez na sua longa carreira de organizador de espetáculos artísticos fluviais que tinha de se curvar diante de um prestamista, embora em princípio não o parecesse, para solicitar o seu favor. 

Sabia que Douglas não falara com sinceridade. Emprestara-lhe aquele dinheiro com um fim premeditado, sem dúvida tão escuro como a forma de hipoteca de que lhe falara antes. 

— É terrível, xerife. No Oeste, o teatro estás prestes a cair nas mãos de negociantes que acabarão por e envilecer — suspirou. — E tem sido até agora tão bela a história do teatro norte-americano nas terras que foram dos índios! 

Era verdade. Ao mesmo tempo que se conquistava o Oeste e que às fogueiras dos «sioux» e dos «comanches» sucediam os carroções, a roda dentada, as desengonçadas composições das primeiras linhas férreas e as diligências, chegavam também os cómicos e triunfavam clamorosamente.


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