quarta-feira, 27 de outubro de 2021

ARZ133.01 A morte de um jornalista subitamente rico


S. Luís do Missouri, com os seus cento e cinquenta mil habitantes nos fins do século, era uma cidade mais importante do que Kansas City, esta situada a montante do Missouri. 

Em S. Luis juntavam-se os rios mais caudalosos da União, circunstância que permitia a passagem dos «barcos-saloons» e dos teatros flutuantes, famosos na história do Oeste, os primeiros pela sua turbulência, os segundos pelo seu romantismo. 

Mais do que os problemas de pastos e de linhas férreas que atravessavam os ranchos, como acontecia noutros condados, proliferavam os conflitos de consciência social. Era uma espécie de paraíso dos jogadores e desse mundo tão característico e fascinante que constitui o teatro. 

O juiz Cove S. Copeland sabia positivamente que os dois xerifes anteriores a O'Farrell tinham falhado na tentativa de descobrir os laços que uniam os negociantes do embarcadouro às mais influentes personalidades do estado, origem de todos os males. 

Roy West era um caso típico daquela cidade. Filho de um vaqueiro humilde do rancho «Dondée», de Moberly, empregara-se como redator no jornal «The Mirror». Não escrevia ecos de sociedade, mas sim crónicas sobre os acontecimentos artísticos verificados no porto e as festas do «rodeo» celebradas semanalmente, onde eram permitidas as apostas nos vaqueiros mais destros na doma de potros selvagens e no derrube de reses. 

Ao fim de três anos de trabalho, Roy West era uma figura popular. Toda a gente o conhecia. Era tão amigo dos pistoleiros e dos jogadores como do xerife, do juiz e dos políticos. As suas fontes de informação, portanto, não podiam ser melhores. Como era um lince, valia-se da amizade de gente tão diversa, intimamente relacionada com a ralé dourada, para conseguir as melhores reportagens. Contudo, o seu ordenado era pequeno e não parecia fácil que pudesse prosperar com semelhante vencimento. Mas, de súbito, começou a gastar dinheiro a rodos e como prenda de casamento comprou um enorme rancho. 

— Sou tua mulher, Roy. Por que não és sincero comigo? Donde provém o dinheiro? Dir-se-ia que herdaste uma grande fortuna. 

— Essa pergunta já ma fez muita gente. Todos os meus conhecidos estão espantados com a minha mudança de vida. Suponho que é inveja, Ruth. Herdei de um tio que morreu no Colorado. Mas, além disso, jogo nos cavalos, percebes? Conheço os segredos do «rodeo» e estou a par das manhas do jogo; posso, por isso, apostar pelo seguro. 

Depois, vestiu um casacão de couro, calçou as botas altas de pele de vitela e saiu para a rua, montou a cavalo e dirigiu-se para a cidade. Deixou o animal amarrado a um poste e entrou no Hotel Sherman, onde esteve a conversar com um vereador cerca de duas horas. 

Atrás daquele quarteirão de casas ficava o recinto onde se efetuava o «rodeo». Ouviam-se os gritos da multidão e os relinchos dos potros. 

Ao chegar a meio do corredor, um homem novo e alto, que trazia chapéu de abas largas, cinzento, e grandes revólveres no cinturão, virou a esquina de estacas e avançou para West. Tinha os maxilares fortemente apertados e ambas as mãos nas algibeiras. Diante de Roy caminhavam dois vaqueiros e uma mulher, que não prestaram atenção ao jovem. 

— Olá, West! 

Esta exclamação, proferida com voz aguda, serviu para que o visado se virasse um pouco, mas mal teve tempo de abrir a boca, estupefacto. O vaqueiro que falara acabava de empunhar um revólver e disparava duas vezes seguidas. Roy caiu de bruços, fulminado por uma bala que lhe atravessou o coração. O pistoleiro olhou à sua volta. Estudara bem o momento do crime, quando o corredor era menos frequentado. Contudo, viu que dois vaqueiros se viraram rapidamente, já com as mãos nos coldres. 

— Eh, tu! Que fizeste? — gritou um deles. 

O criminoso correu para a esquina de saída. Perto havia um poste, onde o esperava o cavalo. Chegou junto dele perseguido pelos tiros dos vaqueiros. Deu um salto notável, tão bem medido que caiu na sela, mas o chapéu voou-lhe pelo ar. 

— Para, miserável! — exclamou o vaqueiro. — Vou dar-te o castigo que mereces! 

Foi inútil esta ameaça. Galopando como um centauro, desapareceu da vista dos seus perseguidores, os quais não puderam fazer mais nada a não ser apanhar o chapéu. 

Entregaram-no ao xerife Philips O'Farrell, que assistia ao espetáculo do «rodeo» e que imediatamente se dirigiu para o local do crime. Quando reconheceu Roy West ficou perplexo, sem dar crédito ao que via. Duppy, o diretor do *Mirror», recebeu-o no seu gabinete três horas mais tarde. 

— São Luís é um inferno. Como Kansas City, como o fora São Francisco e Seattle, quando se descobriu o ouro. Não atiremos as culpas para cima dos outros, xerife, porque todos contribuímos para esta situação — observou o diretor. — Roy herdou uma boa quantidade de dólares e negociou uns terrenos. Também teve sorte a jogar aos «rodeos». 

— Foi o que me disse a sua esposa. 

— Lamento, mas não faço ideia de quem possa ter sido o assassino e porquê. Espero que tenha alguma pista, xerife. Por exemplo, espera obter alguma indicação por intermédio do chapéu do pistoleiro? 

—Pouca coisa. Foi vendido há uns dois meses numa loja da Lincoln Street, mas a empregada não se recorda do comprador. 

Toda a gente estava suspensa das investigações do xerife. O jornal ofereceu uma recompensa de dois mil dólares a quem descobrisse o assassino ou fornecesse provas que conduzissem à sua detenção. Mas como o crime estava rodeado do maior mistério, O'Farrell tinha de trabalhar com todo o cuidado. 

A personagem do «Hotel Sherman» era Coleman, vereador pelo bairro dos embarcadouros. Visitou-o à noite num «saloon» flutuante. Coleman tomava um copo de uísque, de pé, junto do balcão. Sentados a uma mesa, dois vaqueiros jogavam aos dados. 

Coleman recebeu o xerife sem nenhum interesse. Parecia evidente que não lhe interessava falar do sucedido. 

— Sim, Roy esteve comigo uns minutos. Interessava--lhe uma informação a respeito da história doa teatros flutuantes do Mississípi. Dei-lha com muito prazer, como sempre. Não falámos de outra coisa. 

— Não seria mais natural que falassem de negócios? 

— Que tinha a ver a fortuna de Roy com a minha? Éramos amigos e mais nada — respondeu secamente. 

— Suspeito que você recebe algumas dádivas dos jogadores do embarcadouro. Você é o principal empresário das casas de jogo. Admito a possibilidade de Roy saber que você estava associado com eles e de tencionar publicar a notícia. Pode ter sido esse o motivo do crime. 

— É uma suposição gratuita, xerife! — protestou, dando um murro no balcão, com tanta força que fez saltar o uísque. — Roy era um grande -amigo meu. Procure o assassino noutro lado. 

— Ninguém sabe nada... parece uma conspiração de silêncio, como se todos estivessem implicados no assassínio e na situação anómala por que passa a cidade. 

— Exagera, xerife. Protesta sem razão contra a chegada dos «saloons» flutuantes. Dão vida a São Luís. Eu admiro os homens que dão colorido à vida rotineira das povoações perdidas na pradaria. O teatro é um símbolo de cultura. West era da minha opinião. 

— O teatro, sim; mas não o jogo, que é perversão e morte. Eu admiro sinceramente a farândola flutuante que oferece aos habitantes do Oeste selvagem as obras imortais do teatro inglês e grego, que doutra maneira nunca poderíamos ver. 

— Efetivamente, os pioneiros da cena engrandeceram esta terra. Veja esse barco que chegou há semanas. É o «Loving Kate», dirigido por um neto de William Chapman. Não lhe parece fascinante o aspeto que oferece agora, quando está prestes a começar a interpretação de «Como Quiserdes», de Shakespeare? 

O'Farrell aproximou-se da amurada e olhou lentamente à sua volta. Centenas de bicos de gás, cuja luz se espalhava refletida em grandes espelhos, davam um aspeto deslumbrante à embarcação. A luz dourada, que era como um punhado de pó de ouro espalhado por mãos subtis, brincava na água entre reflexos irisados e miríades de cintilações. O palco, adornado com cortinados de musselina e velas à guisa de castiçais, encontrava-se numa extremidade, diante de centenas de bancos corridos, de madeira. Nos cantos vizinhos do palco erguiam-se os camarotes, com poltronas forradas de veludo vermelho. 

Os espectadores subiam por uma ampla ponte de embarque, ataviados com os seus melhores trajos. Famílias endinheiradas, vaqueiros, agricultores, homens e mulheres do povo, todos juntos, aprestavam-se para ver a representação que os faria esquecer, por umas horas, os problemas comuns da vida quotidiana nos povoados do Oeste. 

— Isso é arte, xerife — insistiu Coleman. — Alguns puritanos clamam contra a farândola porque perverte os costumes. É certo que nos barcos se oferecem funções de circo e de revista, mas as mais das vezes são de obras imortais. Devíamos levantar um monumento ao inventor dos teatros flutuantes. 

— Quem foi esse indivíduo? — perguntou o xerife, sonolento. — Inventou também os «saloons» de jogo na coberta? 

— Sim. Trata-se do primeiro William Chapman, um inglês que organizou por voltas de 1828 uma companhia, com a sua própria família, construiu o primeiro teatro flutuante, em Pittsburgh, lugar de confluência de dois importantes afluentes do Mississípi. 

— Calculo que terá percorrido o rio Ohio até à sua foz, no Cairo? 

— Decerto. Era um barco fluvial, chato, mais feio do que um demónio, facilmente reconhecível pelas rodas que o faziam navegar e pela grande bandeira com a inscrição «Teatro». Entrou no rio e percorreu-o de norte a sul, dando espetáculos nas principais cidades das margens. Os teatros flutuantes deixam à sua passagem um halo de romantismo que só os míopes procuram ignorar. 

—Insisto que o teatro é utilíssimo para a sociedade, mas não os «saloons» flutuantes — disse O'Farrell, fitando-o duramente nos olhos. — Do romantismo passou à turbulência, quase sem transição. O exemplo está à vista: os jogadores profissionais apoderaram-se de São Luis. Além disso, estou convencido de que um desses negociantes ordenou a morte de Roy West. 

Guardaram silêncio. Coleman tirou um «havano» e acendeu-o devagar. Como era muito mais alto do que o xerife, atirou-lhe à cara a primeira baforada de fumo, indubitavelmente com má intenção. 

— Dá-me que pensar a fortuna de Roy West, que parece ter-lhe caído do céu. De que falaram mais, esta manhã? 

— Sou fraco de memória, xerife. Contei-lhe as aventuras do velho Chapman e de passagem apreciámos a beleza de uma mulher. Conhece Piky Laura? 

— Não, creio que não. 

— Pois é uma mulher maravilhosa. 

— Compreendo a sua admiração por essa fascinante artista. Ou não é comediante? 

— Sim, trabalha no «saloon» de Perry Douglas. Do teatro dramático passou para a revista. Mudou de género sem deixar os barcos. 

— Perry Douglas? O jogador que se estabeleceu no rio? 

— Efetivamente. É um jogador profissional que se tornou independente e seguiu as pisadas de Chapman. Era um bom amigo de Roy West. Em que pensa, xerife? 

— Penso em você. Não me parece lógico que Roy se levantasse na manhã seguinte ao seu casamento para ir ao hotel falar-lhe de uma mulher que lhe dera volta ao juízo. 

— Tínhamos um encontro marcado para ontem. 

— Para falar de «mias» Laura? 

— A essa hora conversava eu com Cassidy e Liew, conhecidos vaqueiros que organizaram o «rodeo». Não me interessa, porém que se saiba que me entendo com eles. 

— Oh, um vereador escrupuloso! — exclamou o xerife, com ironia. — Toda a gente sabe que você está metido em todos os negócios do embarcadouro, sejam limpos ou sujos. 

As veias do pescoço de Coleman pareceram prestes a rebentar, ao mesmo tempo que os seus olhos despediam chispas de cólera. 

— Isso é o que dizem, mas eu fui o primeiro a oferecer a minha colaboração ao prefeito Max Tyler, para acabar com a corrupção. 

— Não acredito. Suspeito que Roy e você estavam associados. 

— O senhor é um irresponsável e por isso não tomo em consideração as suas palavras. 

Despediu-o com palavras exaltadas, sem que O'Farrell lhe replicasse com a mesma cólera. Era uma personagem influente que, se quisesse, poderia fazer-lhe muito mal. Desceu ao embarcadouro. Preocupava-o a sua investigação. Por isso, a sua surpresa foi grande quando soube que West não ganhara um único cêntimo com a especulação de terrenos para a linha de caminho de ferro. Pelo contrário, perdera cinco mil dólares. 

— Ganhou dinheiro com o «rodeo» e suspeito que recebia boas «luvas» dos jogadores — disse-lhe o diretor da companhia. — Isto é, a não ser que a herança... 

A herança fora pequena. Assim o informou um irmão do assassinado, que trabalhava no rancho «Dondée». Encontrava-se a derrubar e a marcar reses no curral. Henry West correu atrás de uma vitela, apanhou-a com o laço e conseguiu. derrubá-la. Em seguida aplicou-lhe o ferro em brasa. 

— Havia tempo que não via o meu irmão. Eu mesmo me afastei dele porque me pareceu endeusado. Quando dizia que era a personagem mais importante de S. Luís, eu ria-me com vontade. Claro que ganhou muito dinheiro, mas só o diabo sabe como. 

— Mas a herança do seu tio... 

— Hum! Foram quatro moedas de cobre. Olhe, com a parte que me coube, só consegui comprar um chapéu e um revólver. 

— Mas o seu irmão amealhou uma fortuna, nos últimos tempos.

— Nunca ouviu falar de Perry Douglas? O meu irmão admirava-o muito. Uma vez disse-me que Douglas e ele podiam arruinar o tio Sam. 

Não falaram mais. 


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