Buck abriu uma das cartas que acabava de receber, extraiu o papel e juntamente caiu um cheque. Os seus lábios formaram um sorriso duro, enquanto lia a carta, assinada pelo diretor do Banco Rio Verde:
«Meu querido amigo Jerrigan: O facto que esperava deu-se ontem, ao apresentarem-se a receber esse cheque «seu» Temos de reconhecer que está perfeitamente falsificado. Atendendo às suas indicações foi satisfeito sem que a pessoa interessada notasse a mais leve vacilação pela nossa parte. Há dois empregados que atuaram como testemunhas, podendo, se assim o desejar, identificar quem recebeu o dinheiro. Com a satisfação de sempre, saúda-o o seu bom amigo,
W. H. Darton»
Buck tirou um papel da pasta que tinha na sua frente e no qual estavam anotadas várias quantias, juntou o cheque, escrevendo sobre ele a palavra «Falsificado», e mandou chamar Denny.
— Feche a porta — disse-lhe apenas o viu aparecer, empregando um tom amável que poucas vezes usava quando se dirigia a pessoas que não gozavam da sua amizade.
Mallard fechou-a e ficou junto da mesma, observando o mulato com mal dissimulada inquietação.
— Sente-se — Denny julgou não ter ouvido bem. Acrescentou Jerrigan —: Compreendo que lhe estranhe este convite, mas é que vai fazer um trabalho que requer certa comodidade.
— O que ordenar.
Denny ocupou a cadeira, junto da mesa que o seu colega lhe apontava. Este, vagarosamente, colocou na sua frente os utensílios necessários para escrever.
— Transcreva tudo o que está escrito neste papel. Poderia conformar-me com a sua assinatura, mas será tudo mais bonito com a sua letra.
Os olhos de Denny quase saltaram das órbitas ao ver o que tinha na sua frente. Era uma relação de todas as quantias, não muito grandes, roubadas até então a Jerrigan, valendo-se de vários processos e, no final das mesmas, os cinco mil dólares recebidos por ele no dia anterior no Banco Rio Verde. Trémulo, quis levantar-se, mas as pernas falharam-lhe e caiu novamente sobre a cadeira.
Com fingida naturalidade, perguntou-lhe Buck:
— Que tem? Está doente? Mallard tartamudeou: — Eu... Isto... Eu...
— Vamos, tranquilize-se. Você está às minhas ordens e eu encomendo-lhe um trabalho de... amanuense. Comece a copiar.
— Senhor Jerrigan... que significa?
— Gosto de ter as minhas contas certas; saber onde vai parar o dinheiro que sai da minha carteira... e deixar tudo bem escriturado.
— Mas... eu...
— Você é desavergonhado, um reles ladrão, um falsificador... Mais nada. Para o meter na prisão, e até mesmo fazer com que o enforquem, não preciso que assine declaração alguma. Tenho provas de todos os seus delitos. Veja, o cheque que recebeu ontem, imitando a minha assinatura, e a carta do diretor do Banco. Isto sobra. Mas tenho o capricho de possuir uma confissão escrita por si. E você, que é um rapaz obediente, vai-me satisfazer, não?
Puxou pelo revólver e colocou-o sobre a mesa ao alcance da sua mão.
— Devo acrescentar ao elegante, ilustre e digno senhor Mallard, que, se antes de um minuto não começar a obedecer-me meto-lhe uma bala entre os olhos. Afirmam que tenho boa pontaria e eu creio que não se enganam. Será, precisamente, entre os olhos onde lhe farei um pequeno orifício por onde se lhe escapará a vida.
Um terror sem limites apoderou-se de Denny. O seu olhar, com reflexos de loucura, procurou o cano do revólver apontado para ele. Escorregou até ficar ajoelhado:
— Perdoe-me!... Perdoe-me!... Não soube o que fazia... Estarei anos a trabalhar sem receber até lhe pagar tudo!... Perdoe-me!
Frio, sem se comover, Buck anunciou:
— Começo .a contar segundos.
Colocou o relógio na sua frente.
— Não! Não!... Suplico-lhe!
— Se não se apressa, faz-se tarde. O ponteiro dos segundos corre como se tivesse interesse em dar a volta mais depressa.
— Mas...
— Decorreu meio minuto.
— Senhor Jerrigan!
— Faltam vinte segundos... Quinze...
— Não me mate! — implorou Mallard, angustiado — Eu escreverei!
— Isso é entrar na razão. Comece. Devagar e com boa letra. Agora, já não importa o tempo que demore.
Mallard dispôs-se a obedecer. A sua mão tremia de tal maneira que resultaram ilegíveis as primeiras palavras. Protestou Buck:
— Assim não vale. Comece outra. Aqui tem papel. Acenda um cigarro. Acalme-se.
— Que vai ser de mim!
— Devia pensá-lo antes de se decidir a roubar. Está comendo o meu pão sem sequer o ganhar; não concorda que é de canalhas corresponder assim a quem nos estende a mão?
— Eu... servi-o bem, facilitando-lhe informações.
— E levando as minhas aos demais. Eu sei tudo. Enganar-me é mais difícil do que parece. Renuncie a abrandar-me, ou a convencer-me da sua nobreza. Então? Mais tranquilos já os nervos?... Pois, ao trabalho, e procure não estragar esse papel, pois pode-se esgotar-me a paciência.
Não havia solução. Denny assim o compreendeu. As feições endurecidas do mulato eram um claro expoente de que cumpriria a sua ameaça se ele resistisse. Aquilo era horrível; significava apertar a corda ao pescoço; mas... talvez se lhe apresentassem oportunidades de fuga; pelo contrário, se Buck o matasse, ali concluiria tudo.
Copiou a declaração, fazendo esforços inauditos para controlar o pulso. Ao concluir, deixou cair a caneta e suspirou profundamente, como se a alma se escapasse do seu corpo. Jerrigan mostrou-se conforme com a declaração.
— Bem, insigne senhor. Agora vai devolver-me os cinco mil dólares. Não creio que os tenha gastado de então para cá.
— Devia-os... havia-os perdido ao jogo. Foi isso que me levou a falsificar o cheque.
— Diabo, diabo, você deve ser um bom ponto ao «poker». Bem... eu verei a maneira de me pagar. Agora, acompanhe-me.
— Onde?
— Verá em seguida. Vamos, adiante. Mallard obedeceu.
O terror apertava-lhe o pescoço como uma férrea mão invisível que gozasse em o estrangular lentamente. Pararam junto da porta de uma habitação destinada a guardar objetos quase inúteis. Buck abriu-a:
— Entre aí e não faça tentativas de se escapar. Além de nada conseguir, os meus rapazes vão receber ordens de o vigiar e fazerem fogo sobre si se o veem fora.
— Mas... — Entre!
Empurrou-o, violentando, fechando a porta por fora. Depois procurou o capataz:
— Naquele quarto está encerrado Denny. Como não sei o que demorarei, pois, tenho vários afazeres, entre eles um bastante trabalhoso no rancho «Cruzes de Ouro», fique com a chave para lhe poderem dar de comer. Se tentar fugir, não tenha contemplações; recorra, mesmo, a fazer fogo, mas sem o matar. Interessa-me muito a sua vida.
*
— Pode-se seguir adiante?
Georgina voltou a cabeça, surpreendida e desgostosa. No umbral encontrava-se Buck, carrancudo como quase sempre, com o chapéu na mão.
— Como se atreveu a chegar até aqui?
— A porta da rua estava aberta. Bati forte sem que ninguém me respondesse Em vista disso...
— Em vista disso, não vacilou em irromper pela minha morada.
— Engana-se, minha senhora. Se o ordena dou meia volta imediatamente; mas devo avisá-la de que o que venho dizer-lhe é grave e relaciona-se com o seu honorabilíssimo apelido.
— Com o meu apelido? Está tão alto que ninguém o pode manchar!
— Pense que não é a única Mallard.
A rapariga cravou as unhas, através da roupa nos braços cruzados. O aprumo com que Jerrigan se expressava fê-la sentir-se pequena. Pensou em Denny e teve o pressentimento de um; nova desgraça. O visitante insistiu:
— Retiro-me?
— Entre — foi a resposta de Georgina. E em seguida, como arrependendo-se —: Mas seja breve.
Buck olhou à sua volta. Tudo se encontrava revolto, anunciando os preparativos de uma viagem.
— Vai-nos abandonar? — perguntou sarcástico.
Georgina não se dignou responder. Efetivamente, havia resolvido abandonar a comarca, voltando para Phoenix. Se ainda o não havia feito era porque Jess, embora fora de perigo, continuava no leito, precisando de uma mão amiga que o atendesse.
Georgina havia conseguido os serviços de uma criada que o juiz de Sugarloaf lhe recomendara, mas não confiava nela até ao ponto de lhe recomendar o cuidado do capataz.
Quanto a «cow-boys», só contava com dois, que haviam pertencido a Theodore, e que se lhe ofereceram ao morrer este. Ela aceitou-os em plano fatalista. Os animais precisavam de cuidados. Bem-vindos eram, passasse o que passasse. Tampouco lhes podia confiar Wolf.
— Continuo sem deitar a vista em cima do seu noivo — disse Buck.
— Suponho que não se terá incomodado para me falar dessas coisas.
— E supõe bem. Foi um simples comentário.
Georgina mostrava-se cada vez mais desassossegada. Como era odiosa a segurança que aquele homem mostrava! Cravada no coração tinha a atitude de Jory. Não só estava já segura de que as acusações lançadas sobre ele eram certas, como havia comprovado até que ponto era cobarde, pois longe de se enfrentar com o seu inimigo, vivia escondendo-se, maquinando, sem dúvida, outras infâmias. Procurou, no entanto, mascarar as suas sensações e disse a Buck:
—Escuto-o.
— Não me convida a sentar, não é verdade?... Acho-o lógico. Eu faço o mesmo com as pessoas que não são do meu agrado. Bem, é de seu irmão, do honrado Denny Mallard, de quem venho trazer-lhe notícias.
Ela sobressaltou-se ainda mais do que estava:
— Trazer-me notícias?... Sucedeu-lhe alguma desgraça?
— Vai suceder-lhe que é quase o mesmo.
Georgina retrocedeu, olhando-o ferozmente:
— Que lhe fez você?
— Eu?
— Sim. Reflete-o a sua expressão. Desde o primeiro dia supus que lhe guiavam malditas intenções ao aceitar os seus serviços. Não compreendia, logicamente, que depois do passado admitisse um Mallard junto de si.
— Devo informá-la de que não fui eu que o procurei, mas sim ele que me procurou. E... francamente achei graça ao seu jogo. Procurava beneficiar-se e a si também. Certamente compartilhada na sua opinião sobre os mulatos. Uma opinião muito pobre, ahn?... Não quis estragar as suas ilusões e dei-lhe emprego. Foi uma debilidade minha. Se não tivesse incorrido nela, não me encontraria agora obrigado a chamar-lhe ladrão.
Georgina vibrou dos pés à cabeça; quis falar e não pôde; os seus lábios, brancos pela falta de sangue naqueles momentos, abriram-se em expressão dolorosa. Falsamente compassivo, acrescentou Jerrigan:
— Compreendo o mau bocado que lhe dou, mas não o posso evitar. São vários milhares de dólares que esse homem me roubou, e não devo permitir que inconscientes deem pontapés na minha fortuna. Dificilmente a rapariga pôde responder:
— Não é verdade o que diz, não pode ser verdade...
— Afirmo-lhe, minha senhora, que não me soa bem ouvir chamar-me mentiroso —. Colocou ante os seus olhos o documento assinado por Denny: — Reconhece esta assinatura? Sim?... Bem, pois... leia o que a antecede.
Colocou a declaração sobre a mesa. Georgina agarrou-a com a mão trémula, percorrendo-a de cima abaixo.
— Isto é horrível!
— Horrível? Não me parece, minha senhora. Eu acho-o de uma grande vulgaridade: o homenzinho inútil que não vacila em descer ao mais baixo desde que consiga a satisfação dos seus vícios. São aos milhares os casos desta natureza.
A jovem deixou cair o papel, como se ele o pudesse envenenar. Buck recolheu-o, dizendo:
—É uma bonita ação a sua. Supus que se apressaria a destruir a declaração que teve nas suas mãos.
Georgina ergueu-se dando a impressão que crescia.
— Como que direito me ofende? Porque meu irmão cometeu um delito, pensa que eu tenho o devido conceito do dever? Esse documento não me pertence, e ainda que da sua destruição dependesse a minha própria vida, não seria eu quem o inutilizasse.
Tal atitude produziu notável efeito em Jerrigan, se bem que não o demonstrasse. Deixando assomar o cínico sorriso que tão antipático o tornava, disse;
— Muito edificante. De todos os modos devo avisá-la de que obriguei seu irmão a escrever e a assinar isto, com o único fim de que você o lesse e não me ver obrigado a outras demonstrações aborrecidas. Mesmo que o tivesse rasgado nada se perderia, pois tenho provas mais do que suficientes para o encarcerar e processar.
Pareceu como se até aquele instante Georgina não tivesse dado conta da gravidade da situação. Respirando com dificuldade, exclamou, trémula:
— Para o encarcerar e processar?
— Exatamente, minha senhora.
— É esse... o seu propósito?
— Claro que sim!
Observaram-se com atenção, medindo talvez a respetiva potência moral. Georgina, dominando os seus impulsos, suavizou, em parte, o tom até então empregado:
— Não creio que seja isso o que mais lhe convém, senhor Jerrigan. Meu irmão não é insolvente. Pouco fruto conseguirá encerrando-o. Eu, há algum tempo que rompi relações com ele. De todos os modos, e embora a responsabilidade não me alcance em absoluto, se você se coloca num terreno acessível, é fácil que cheguemos a um acordo para que não fique prejudicado de todo.
— A que chama você um «terreno acessível»?
— Pode supô-lo.… reduzir a quantia ao mínimo, dar-me facilidades de pagamento com o fim de não me ver obrigada a retirar dinheiro das outras empresas... Bem sei que depois do seu comportamento para connosco lhe desagradará transigir; mas como depende disso o recebimento, talvez se decida, não? Estamos discutindo uma operação puramente comercial.
— Veja o que são as coisas: supus que ao fazer menção do «terreno acessível» ia oferecer--me imediatamente a entrega de uma quantia algo de valor comprovado. Este rancho, por exemplo.
Georgina deu um salto:
— Você está doido! Não; afirmo-lhe que não.
Houve uma breve pausa. Triturando as palavras que saíam através dos seus dentes, exclamou a jovem:
-- Agora compreendo tudo! Pretende fazer-me vítima de uma chantagem! É esse o seu fim! Para o conseguir, sem dúvida, colocou Denny nalguma armadilha. Você sabia da sua má cabeça e pensou que seria fácil envolvê-lo, dar-lhe mais facilidades que as lógicas, empurrá-lo ao delito. Que cobardia! Que infâmia mais repugnante!
— Própria de um desprezível mulato, minha senhora.
— Sim! Própria de um desprezível mulato! E pensar que, em algumas ocasiões, através das coisas que me diziam, julguei descobrir nobreza no seu espírito!
O bom efeito que poderia haver-lhe causado a declaração por parte de Georgina de que, em ocasiões, chegara a crê-lo nobre, ficou sem valor algum ante o facto de que esta julgasse o seu comportamento «próprio de mulato». Foi um escarvar-lhe na ferida, que lhe despertou dores invencíveis. Fria, desdenhosa, procurando colocar-se a mais altura que nunca, perguntou a jovem:
— Que cifra calculou como fruto da sua... manobra?
— Tão elevada... que não se acha ao seu alcance.
— Que não se acha ao meu alcance? Sugeriu que a garantia deste ranho seria suficiente...
— Isso era há uns segundos. Agora o preço já subiu e, repito-lhe, não há maneira de chegar a ele. Às vezes contentamo-nos com simples satisfações, e eu quero ter o prazer de ver desonrado o nome dos Mallard. Seu irmão, com as algemas postas, atravessará entre a multidão a caminho da prisão.
-- Cale-se!
— Será um processo ruidoso e, no final do mesmo, muitos anos de cárcere para Denny ou... quem sabe? Talvez a forca.
— Você é pior que uma hiena! Maldito seja mil vezes!
Jerrigan lançou uma gargalhada irónica, ofensiva. O seu rosto parecia desfigurado como se uma fogueira infernal o iluminasse interiormente. Georgina não pensou. O seu cérebro foi anulado naquele minuto. Os instintos ferozes que se aninham em todo o mortal despertaram subitamente. Na sua mão apareceu o pequeno revólver que costumava trazer consigo desde que se aguçara a luta em Anglers inn.
Aumentou o riso de Buck vendo-a naquela atitude. Não a julgou, sem dúvida, capaz de apertar o gatilho. Brotaram duas línguas de fogo. Jerrigan levou as mãos ao peito. Os seus olhos expressavam mais surpresa que dor. Georgina lançou um grito e, deixando cair a arma, cobriu o rosto. Fazendo desesperados esforços para não cair, Buck encostou-se contra a parede.
— Não tape a cara — disse —. Veja o meu sangue; repare... é vermelho... Nota alguma diferença entre o seu... e o deste... desprezível mulato?
— Apoie-se a mim! — exclamou a rapariga, sem saber o que fazia.
E procurou sustê-lo, enlaçando-o pela cintura e passando-lhe uma mão pelo pescoço. Entrou a criada, ficando muda de espanta.
— Ajude-me — suplicou Georgina procurando dominar-se.
A mulher acudiu, trémula.
— Será melhor... que me deixem...
— Cale-se!
Desta vez não foi uma ordem, mas sim uma imploração que brotou da garganta da jovem. Com muito trabalho, levaram-no para o quarto mais próximo e conseguiram deitá-lo. A criada queria fazer perguntas, mas a língua pegava-se ao céu da boca. Georgina deixou ao ar as feridas que acabava de produzir e tapou-as como pôde.
— Agarre-o! — ordenou à criada —. Não vá desmaiar!
E correu em busca do necessário para fazer o curativo. Quando o começou, Jerrigan, que lutava por conservar o conhecimento, disse com dolorosa ironia:
— Não se contenta em haver disparado? Quer liquidar-me agora com a cura?... Porque não tem sequer a ideia do que faz. Eu já lhe disse o mesmo quando se tratava de Jess Wolf.
— Dirija-me você — murmurou ela, humilde. E imediatamente, para a criada —: Os vaqueiros estão trabalhando perto. Corra a avisá-los. Um que venha para aqui e outros em busca do médico.
Continuou o curativo, sem olhar o rosto do ferido. Ele, sentindo que a noite ameaçava fazer--se a sua cabeça, deixava-a. Era curioso o forte contraste que oferecia a tensão furiosa daqueles dois seres minutos atrás e a lassidão de agora. Chegou apressado o primeiro dos «cow-boys», avisado pela criada. Antes que fizesse perguntas, Buck disse-lhe:
— Olá, rapaz... Julguei saber manejar os revólveres e resulta que uma simples brincadeira me jogou uma má partida. Ferindo-me a mim próprio...
Atónita, Georgina ordenou ao recém-chegado:
— Voe em busca de um médico! — E tão depressa ficou a sós com Jerrigan —: Porque mentiu?
— Temo os meus rapazes... sabe?... Se circula a voz que você me feriu... Bom, será melhor que não se saiba. Eu...
Pouco depois ficou sem fala. A noção das coisas afundou-se num abismo.
Foi uma discussão em voz baixa e dramática o que o fez voltar a si. Decorria na habitação ao lado. Jerrigan, conseguiu escutar:
— És um assassino, Charles! Acabo de te referir, a nobreza final desse homem...
— Deixa-te de sensibilidades! É a nossa oportunidade! Afasta-te! Acabarei com ele em seguida! Ninguém pensará mal de nós, visto que ele declarou ter-se ferido a si próprio.
— É horrível ouvir-te! És do mais desprezível que se possa conceber!
— Defendo a minha vida e os nossos interesses. Sabes bem que ele me procura para repetir comigo o que fez com Levinson. Se fica bom, continuará à minha procura.
— Defende-te quando chegar esse momento, como um verdadeiro homem!
— Prefiro actuar sobre o seguro! Tira-te do meio!
— Não!
— Terei de te afastar à força.
— Se dás um passo, mato-te!
— Georgina! Estás louca? Afasta esse revólver!
A porta abriu-se violentamente e no umbral apareceu a figura ensanguentada de Jerrigan.
— Aqui me tem, «herói»!
— Jerrigan!
A exclamação brotou simultaneamente das gargantas da rapariga e de Jory. Buck acrescentou, dirigindo-se a este:
-- Puxe a arma! Como vê estou cambaleante.
Assim era. O mulato cambaleava como se estivesse bêbado. Charles reconheceu-o e, vendo que não havia outra saída puxou a arma. Não a pôde utilizar. Antes que o conseguisse, o seu inimigo perfurou-lhe a testa com chumbo. Caiu de bruços, morto.
— — murmurou Jerrigan —. Já lhe tinha dito que havia preferido que se casassem.
Agarrando-se aos móveis, chegou até ao sofá próximo, ocupando-o. A rapariga olhava o cadáver como hipnotizada. Transcorreram minutos... Fora começou a produzir-se rumor atropelado de vozes. Depressa irromperam na habitação o capataz do «Fortaleza» e muitos vaqueiros do mesmo. Buck, prestes a desmaiar novamente, conteve-os com um gesto:
— Calma... Sofri um acidente. Esse coiote quis aproveitar-se... e pagou-o com a vida. Vamos. Levem-me.
A rapariga reagiu:
— Não! Você não está em condições de sair. Poderia ser-lhe fatal — voltou-se para os «cow-boys» —. Estabeleçam a guarda que quiserem, mas deixem-no. Eu tratarei dele.
Os lábios de Jerrigan entreabriram-se num indecifrável sorriso. Não fazendo caso da mulher, insistiu:
— Levem-me depressa.
*
Georgina pretendeu, em repetidas ocasiões, ver Jerrigan, sem o conseguir. Sempre, olhando-a com hostilidade, lhe repetiam secamente:
— Não quer receber ninguém.
Uma das vezes, apareceu Denny:
— Não voltes aqui. Isto é um inferno. E pede a Deus que o mulato se salve. Proibiu que me matassem, como queriam. Sem dúvida reserva--me para se cevar em mim quando se encontrar em condições. Vigiam-me a todas as horas e...
Interrompeu-se. Acabava de aparecer um dos vaqueiros com a mão apoiada sobre o revólver. Denny, trémulo, gaguejou:
— Desculpe... saí um momento...
Trémulo, voltou para casa.
— Que se propõem fazer com Denny? — perguntou ela.
— Nós?... Ah, se nos deixassem fazer com ele o que queremos!... Mas tranquilize-se. O patrão protege-o.
Desapareceu. Georgina, como nos dias anteriores, teve de se retirar fracassada e triste. E assim, semanas e semanas.
*
Certa tarde, Jerrigan, iniciado o período da convalescença, apanhava Sol junto de uns pinheiros. Encontrava-se abstrato, imerso o seu mundo interior. Um ruído de cascos próximo, tirou-o dos seus pensamentos. Quando dirigiu o olhar para quem se aproximava, a sua testa encheu-se de rugas. Ergueu-se com trabalho disposto a retirar-se, mas a voz doce, suplicante, da amazona conteve-o apesar da sua vontade:
— Por favor, senhor Jerrigan!
Georgina desmontou e aproximou-se, humilde. Ele reagiu bruscamente:
— Que quer? Porque não saiu já de Anglers inn? Estava preparando a bagagem no dia em que me feriu. Ainda não terminou?
Sentida por aquela hostil receção, a jovem murmurou:
— Não me senti com forças para me afastar sem estar convencida de que se encontrava livre de perigo.
— Se isso é tudo, não se detenha. Como vê, sou mais forte que as suas balas.
— Continua detestando-me, não é verdade?
— Pode duvidá-lo?
— Porquê, então, não disse que fui eu a autora da agressão?
— Bem o sabe. Quis livrá-la do castigo que lhe teriam infligido os meus rapazes, para ter a satisfação de a afundar pessoalmente.
— E... que aguarda para o fazer?
— Vem desafiar-me?
— Não. Venho pedir-lhe perdão, já que até agora não me foi possível, e dizer-lhe que, declarando-me vencida, lhe cedo o meu rancho pelo que queira dar.
Buck mordeu os lábios. Georgina cedia-lhe seu rancho depois de se proclamar vencida. Conseguir isso fora um dos seus principais propósitos; porque estremecia agora? Se desejava que aquela mulher se afastasse para sempre, porque se sentia dominado pela angústia, temendo que, ao desfazer-se do «Cruzes de Ouro», empreendesse a partida? Procurando enterrar os seus rebeldes e torturados sentimentos, respondeu:
— Não me interessa a compra.
— Nem quer perdoar o mal que lhe fiz? Não há maneira de aplacar esse seu ódio?
— Não.
Com lágrimas na voz, ela insistiu:
— Porquê?
Vacilou Jerrigan. Um sentimento de ternura fê-lo sentir-se débil. Girou sobre os tacões, cravou o seu olhar de fogo nos olhos dela e disse:
— Oiça: apesar da boa posição económica que gozava meu pai, eu, desde muito pequeno, sofri grandes desprezos... porque era mulato; tinha um irmão que adorava; a cor da sua pele, branca como a minha, não denotava a sua origem, Enamorou-se de uma rapariga que, ao inteirar-se da verdade, o expulsou indignada. Morreu de tristeza. Jurei, então, ódio aos brancos. Incrementei a fortuna de meu pai e pus em jogo o meu poder crescente para combater os de «sangue puro». A causadora de que meu irmão caísse na flor da juventude, acabou na miséria. Continuei desferindo lançadas à direita e à esquerda. Houve ocasiões em que me senti cansado; pensei que entre os meus inimigos havia pessoas generosas, mas. quando estava melhor predisposto, aparecia alguém que assoprava as cinzas. A última foi você. Decidi afundá-la. Quanto disfrutei vendo-a desesperada, tendo humilhado perante mim, como um cão, o seu irmão Denny!...
Fez uma pausa. Georgina, com os olhos muita abertos, respirando com dificuldade, ouvia-o suspensa. Continuou ele:
— Os mulatos são filhos de Deus como os demais. Disseram-me várias vezes para me acrescentar a ira... ou para me inclinar à piedade quando observava um gesto nobre nas demais pessoas, como me ocorreu com Ernest Ryan quando ao querer vender-me o seu rancho pronunciou esta frase. Sim; filhos de Deus como os demais mortais e, por vezes mais dignos de clemência que os brancos. A sua curiosidade já está satisfeita. Vá-se embora, agora! Saia da minha vista e leve o seu irmão, se é isso que a detém! Ordenarei que o libertem. Renuncio à vingança. Contento-me em satisfazê-la a si com a sua estúpida soberba e a desprezar o rebotalho que me serviu, sem o encarcerar, para provar-lhe que os nomes são honrados pela conduta e não pelo sangue daqueles que os usam.
Voltou-lhe as costas, deixando-a aturdida e chorosa.
«Meu querido amigo Jerrigan: O facto que esperava deu-se ontem, ao apresentarem-se a receber esse cheque «seu» Temos de reconhecer que está perfeitamente falsificado. Atendendo às suas indicações foi satisfeito sem que a pessoa interessada notasse a mais leve vacilação pela nossa parte. Há dois empregados que atuaram como testemunhas, podendo, se assim o desejar, identificar quem recebeu o dinheiro. Com a satisfação de sempre, saúda-o o seu bom amigo,
W. H. Darton»
Buck tirou um papel da pasta que tinha na sua frente e no qual estavam anotadas várias quantias, juntou o cheque, escrevendo sobre ele a palavra «Falsificado», e mandou chamar Denny.
— Feche a porta — disse-lhe apenas o viu aparecer, empregando um tom amável que poucas vezes usava quando se dirigia a pessoas que não gozavam da sua amizade.
Mallard fechou-a e ficou junto da mesma, observando o mulato com mal dissimulada inquietação.
— Sente-se — Denny julgou não ter ouvido bem. Acrescentou Jerrigan —: Compreendo que lhe estranhe este convite, mas é que vai fazer um trabalho que requer certa comodidade.
— O que ordenar.
Denny ocupou a cadeira, junto da mesa que o seu colega lhe apontava. Este, vagarosamente, colocou na sua frente os utensílios necessários para escrever.
— Transcreva tudo o que está escrito neste papel. Poderia conformar-me com a sua assinatura, mas será tudo mais bonito com a sua letra.
Os olhos de Denny quase saltaram das órbitas ao ver o que tinha na sua frente. Era uma relação de todas as quantias, não muito grandes, roubadas até então a Jerrigan, valendo-se de vários processos e, no final das mesmas, os cinco mil dólares recebidos por ele no dia anterior no Banco Rio Verde. Trémulo, quis levantar-se, mas as pernas falharam-lhe e caiu novamente sobre a cadeira.
Com fingida naturalidade, perguntou-lhe Buck:
— Que tem? Está doente? Mallard tartamudeou: — Eu... Isto... Eu...
— Vamos, tranquilize-se. Você está às minhas ordens e eu encomendo-lhe um trabalho de... amanuense. Comece a copiar.
— Senhor Jerrigan... que significa?
— Gosto de ter as minhas contas certas; saber onde vai parar o dinheiro que sai da minha carteira... e deixar tudo bem escriturado.
— Mas... eu...
— Você é desavergonhado, um reles ladrão, um falsificador... Mais nada. Para o meter na prisão, e até mesmo fazer com que o enforquem, não preciso que assine declaração alguma. Tenho provas de todos os seus delitos. Veja, o cheque que recebeu ontem, imitando a minha assinatura, e a carta do diretor do Banco. Isto sobra. Mas tenho o capricho de possuir uma confissão escrita por si. E você, que é um rapaz obediente, vai-me satisfazer, não?
Puxou pelo revólver e colocou-o sobre a mesa ao alcance da sua mão.
— Devo acrescentar ao elegante, ilustre e digno senhor Mallard, que, se antes de um minuto não começar a obedecer-me meto-lhe uma bala entre os olhos. Afirmam que tenho boa pontaria e eu creio que não se enganam. Será, precisamente, entre os olhos onde lhe farei um pequeno orifício por onde se lhe escapará a vida.
Um terror sem limites apoderou-se de Denny. O seu olhar, com reflexos de loucura, procurou o cano do revólver apontado para ele. Escorregou até ficar ajoelhado:
— Perdoe-me!... Perdoe-me!... Não soube o que fazia... Estarei anos a trabalhar sem receber até lhe pagar tudo!... Perdoe-me!
Frio, sem se comover, Buck anunciou:
— Começo .a contar segundos.
Colocou o relógio na sua frente.
— Não! Não!... Suplico-lhe!
— Se não se apressa, faz-se tarde. O ponteiro dos segundos corre como se tivesse interesse em dar a volta mais depressa.
— Mas...
— Decorreu meio minuto.
— Senhor Jerrigan!
— Faltam vinte segundos... Quinze...
— Não me mate! — implorou Mallard, angustiado — Eu escreverei!
— Isso é entrar na razão. Comece. Devagar e com boa letra. Agora, já não importa o tempo que demore.
Mallard dispôs-se a obedecer. A sua mão tremia de tal maneira que resultaram ilegíveis as primeiras palavras. Protestou Buck:
— Assim não vale. Comece outra. Aqui tem papel. Acenda um cigarro. Acalme-se.
— Que vai ser de mim!
— Devia pensá-lo antes de se decidir a roubar. Está comendo o meu pão sem sequer o ganhar; não concorda que é de canalhas corresponder assim a quem nos estende a mão?
— Eu... servi-o bem, facilitando-lhe informações.
— E levando as minhas aos demais. Eu sei tudo. Enganar-me é mais difícil do que parece. Renuncie a abrandar-me, ou a convencer-me da sua nobreza. Então? Mais tranquilos já os nervos?... Pois, ao trabalho, e procure não estragar esse papel, pois pode-se esgotar-me a paciência.
Não havia solução. Denny assim o compreendeu. As feições endurecidas do mulato eram um claro expoente de que cumpriria a sua ameaça se ele resistisse. Aquilo era horrível; significava apertar a corda ao pescoço; mas... talvez se lhe apresentassem oportunidades de fuga; pelo contrário, se Buck o matasse, ali concluiria tudo.
Copiou a declaração, fazendo esforços inauditos para controlar o pulso. Ao concluir, deixou cair a caneta e suspirou profundamente, como se a alma se escapasse do seu corpo. Jerrigan mostrou-se conforme com a declaração.
— Bem, insigne senhor. Agora vai devolver-me os cinco mil dólares. Não creio que os tenha gastado de então para cá.
— Devia-os... havia-os perdido ao jogo. Foi isso que me levou a falsificar o cheque.
— Diabo, diabo, você deve ser um bom ponto ao «poker». Bem... eu verei a maneira de me pagar. Agora, acompanhe-me.
— Onde?
— Verá em seguida. Vamos, adiante. Mallard obedeceu.
O terror apertava-lhe o pescoço como uma férrea mão invisível que gozasse em o estrangular lentamente. Pararam junto da porta de uma habitação destinada a guardar objetos quase inúteis. Buck abriu-a:
— Entre aí e não faça tentativas de se escapar. Além de nada conseguir, os meus rapazes vão receber ordens de o vigiar e fazerem fogo sobre si se o veem fora.
— Mas... — Entre!
Empurrou-o, violentando, fechando a porta por fora. Depois procurou o capataz:
— Naquele quarto está encerrado Denny. Como não sei o que demorarei, pois, tenho vários afazeres, entre eles um bastante trabalhoso no rancho «Cruzes de Ouro», fique com a chave para lhe poderem dar de comer. Se tentar fugir, não tenha contemplações; recorra, mesmo, a fazer fogo, mas sem o matar. Interessa-me muito a sua vida.
*
— Pode-se seguir adiante?
Georgina voltou a cabeça, surpreendida e desgostosa. No umbral encontrava-se Buck, carrancudo como quase sempre, com o chapéu na mão.
— Como se atreveu a chegar até aqui?
— A porta da rua estava aberta. Bati forte sem que ninguém me respondesse Em vista disso...
— Em vista disso, não vacilou em irromper pela minha morada.
— Engana-se, minha senhora. Se o ordena dou meia volta imediatamente; mas devo avisá-la de que o que venho dizer-lhe é grave e relaciona-se com o seu honorabilíssimo apelido.
— Com o meu apelido? Está tão alto que ninguém o pode manchar!
— Pense que não é a única Mallard.
A rapariga cravou as unhas, através da roupa nos braços cruzados. O aprumo com que Jerrigan se expressava fê-la sentir-se pequena. Pensou em Denny e teve o pressentimento de um; nova desgraça. O visitante insistiu:
— Retiro-me?
— Entre — foi a resposta de Georgina. E em seguida, como arrependendo-se —: Mas seja breve.
Buck olhou à sua volta. Tudo se encontrava revolto, anunciando os preparativos de uma viagem.
— Vai-nos abandonar? — perguntou sarcástico.
Georgina não se dignou responder. Efetivamente, havia resolvido abandonar a comarca, voltando para Phoenix. Se ainda o não havia feito era porque Jess, embora fora de perigo, continuava no leito, precisando de uma mão amiga que o atendesse.
Georgina havia conseguido os serviços de uma criada que o juiz de Sugarloaf lhe recomendara, mas não confiava nela até ao ponto de lhe recomendar o cuidado do capataz.
Quanto a «cow-boys», só contava com dois, que haviam pertencido a Theodore, e que se lhe ofereceram ao morrer este. Ela aceitou-os em plano fatalista. Os animais precisavam de cuidados. Bem-vindos eram, passasse o que passasse. Tampouco lhes podia confiar Wolf.
— Continuo sem deitar a vista em cima do seu noivo — disse Buck.
— Suponho que não se terá incomodado para me falar dessas coisas.
— E supõe bem. Foi um simples comentário.
Georgina mostrava-se cada vez mais desassossegada. Como era odiosa a segurança que aquele homem mostrava! Cravada no coração tinha a atitude de Jory. Não só estava já segura de que as acusações lançadas sobre ele eram certas, como havia comprovado até que ponto era cobarde, pois longe de se enfrentar com o seu inimigo, vivia escondendo-se, maquinando, sem dúvida, outras infâmias. Procurou, no entanto, mascarar as suas sensações e disse a Buck:
—Escuto-o.
— Não me convida a sentar, não é verdade?... Acho-o lógico. Eu faço o mesmo com as pessoas que não são do meu agrado. Bem, é de seu irmão, do honrado Denny Mallard, de quem venho trazer-lhe notícias.
Ela sobressaltou-se ainda mais do que estava:
— Trazer-me notícias?... Sucedeu-lhe alguma desgraça?
— Vai suceder-lhe que é quase o mesmo.
Georgina retrocedeu, olhando-o ferozmente:
— Que lhe fez você?
— Eu?
— Sim. Reflete-o a sua expressão. Desde o primeiro dia supus que lhe guiavam malditas intenções ao aceitar os seus serviços. Não compreendia, logicamente, que depois do passado admitisse um Mallard junto de si.
— Devo informá-la de que não fui eu que o procurei, mas sim ele que me procurou. E... francamente achei graça ao seu jogo. Procurava beneficiar-se e a si também. Certamente compartilhada na sua opinião sobre os mulatos. Uma opinião muito pobre, ahn?... Não quis estragar as suas ilusões e dei-lhe emprego. Foi uma debilidade minha. Se não tivesse incorrido nela, não me encontraria agora obrigado a chamar-lhe ladrão.
Georgina vibrou dos pés à cabeça; quis falar e não pôde; os seus lábios, brancos pela falta de sangue naqueles momentos, abriram-se em expressão dolorosa. Falsamente compassivo, acrescentou Jerrigan:
— Compreendo o mau bocado que lhe dou, mas não o posso evitar. São vários milhares de dólares que esse homem me roubou, e não devo permitir que inconscientes deem pontapés na minha fortuna. Dificilmente a rapariga pôde responder:
— Não é verdade o que diz, não pode ser verdade...
— Afirmo-lhe, minha senhora, que não me soa bem ouvir chamar-me mentiroso —. Colocou ante os seus olhos o documento assinado por Denny: — Reconhece esta assinatura? Sim?... Bem, pois... leia o que a antecede.
Colocou a declaração sobre a mesa. Georgina agarrou-a com a mão trémula, percorrendo-a de cima abaixo.
— Isto é horrível!
— Horrível? Não me parece, minha senhora. Eu acho-o de uma grande vulgaridade: o homenzinho inútil que não vacila em descer ao mais baixo desde que consiga a satisfação dos seus vícios. São aos milhares os casos desta natureza.
A jovem deixou cair o papel, como se ele o pudesse envenenar. Buck recolheu-o, dizendo:
—É uma bonita ação a sua. Supus que se apressaria a destruir a declaração que teve nas suas mãos.
Georgina ergueu-se dando a impressão que crescia.
— Como que direito me ofende? Porque meu irmão cometeu um delito, pensa que eu tenho o devido conceito do dever? Esse documento não me pertence, e ainda que da sua destruição dependesse a minha própria vida, não seria eu quem o inutilizasse.
Tal atitude produziu notável efeito em Jerrigan, se bem que não o demonstrasse. Deixando assomar o cínico sorriso que tão antipático o tornava, disse;
— Muito edificante. De todos os modos devo avisá-la de que obriguei seu irmão a escrever e a assinar isto, com o único fim de que você o lesse e não me ver obrigado a outras demonstrações aborrecidas. Mesmo que o tivesse rasgado nada se perderia, pois tenho provas mais do que suficientes para o encarcerar e processar.
Pareceu como se até aquele instante Georgina não tivesse dado conta da gravidade da situação. Respirando com dificuldade, exclamou, trémula:
— Para o encarcerar e processar?
— Exatamente, minha senhora.
— É esse... o seu propósito?
— Claro que sim!
Observaram-se com atenção, medindo talvez a respetiva potência moral. Georgina, dominando os seus impulsos, suavizou, em parte, o tom até então empregado:
— Não creio que seja isso o que mais lhe convém, senhor Jerrigan. Meu irmão não é insolvente. Pouco fruto conseguirá encerrando-o. Eu, há algum tempo que rompi relações com ele. De todos os modos, e embora a responsabilidade não me alcance em absoluto, se você se coloca num terreno acessível, é fácil que cheguemos a um acordo para que não fique prejudicado de todo.
— A que chama você um «terreno acessível»?
— Pode supô-lo.… reduzir a quantia ao mínimo, dar-me facilidades de pagamento com o fim de não me ver obrigada a retirar dinheiro das outras empresas... Bem sei que depois do seu comportamento para connosco lhe desagradará transigir; mas como depende disso o recebimento, talvez se decida, não? Estamos discutindo uma operação puramente comercial.
— Veja o que são as coisas: supus que ao fazer menção do «terreno acessível» ia oferecer--me imediatamente a entrega de uma quantia algo de valor comprovado. Este rancho, por exemplo.
Georgina deu um salto:
— Você está doido! Não; afirmo-lhe que não.
Houve uma breve pausa. Triturando as palavras que saíam através dos seus dentes, exclamou a jovem:
-- Agora compreendo tudo! Pretende fazer-me vítima de uma chantagem! É esse o seu fim! Para o conseguir, sem dúvida, colocou Denny nalguma armadilha. Você sabia da sua má cabeça e pensou que seria fácil envolvê-lo, dar-lhe mais facilidades que as lógicas, empurrá-lo ao delito. Que cobardia! Que infâmia mais repugnante!
— Própria de um desprezível mulato, minha senhora.
— Sim! Própria de um desprezível mulato! E pensar que, em algumas ocasiões, através das coisas que me diziam, julguei descobrir nobreza no seu espírito!
O bom efeito que poderia haver-lhe causado a declaração por parte de Georgina de que, em ocasiões, chegara a crê-lo nobre, ficou sem valor algum ante o facto de que esta julgasse o seu comportamento «próprio de mulato». Foi um escarvar-lhe na ferida, que lhe despertou dores invencíveis. Fria, desdenhosa, procurando colocar-se a mais altura que nunca, perguntou a jovem:
— Que cifra calculou como fruto da sua... manobra?
— Tão elevada... que não se acha ao seu alcance.
— Que não se acha ao meu alcance? Sugeriu que a garantia deste ranho seria suficiente...
— Isso era há uns segundos. Agora o preço já subiu e, repito-lhe, não há maneira de chegar a ele. Às vezes contentamo-nos com simples satisfações, e eu quero ter o prazer de ver desonrado o nome dos Mallard. Seu irmão, com as algemas postas, atravessará entre a multidão a caminho da prisão.
-- Cale-se!
— Será um processo ruidoso e, no final do mesmo, muitos anos de cárcere para Denny ou... quem sabe? Talvez a forca.
— Você é pior que uma hiena! Maldito seja mil vezes!
Jerrigan lançou uma gargalhada irónica, ofensiva. O seu rosto parecia desfigurado como se uma fogueira infernal o iluminasse interiormente. Georgina não pensou. O seu cérebro foi anulado naquele minuto. Os instintos ferozes que se aninham em todo o mortal despertaram subitamente. Na sua mão apareceu o pequeno revólver que costumava trazer consigo desde que se aguçara a luta em Anglers inn.
Aumentou o riso de Buck vendo-a naquela atitude. Não a julgou, sem dúvida, capaz de apertar o gatilho. Brotaram duas línguas de fogo. Jerrigan levou as mãos ao peito. Os seus olhos expressavam mais surpresa que dor. Georgina lançou um grito e, deixando cair a arma, cobriu o rosto. Fazendo desesperados esforços para não cair, Buck encostou-se contra a parede.
— Não tape a cara — disse —. Veja o meu sangue; repare... é vermelho... Nota alguma diferença entre o seu... e o deste... desprezível mulato?
— Apoie-se a mim! — exclamou a rapariga, sem saber o que fazia.
E procurou sustê-lo, enlaçando-o pela cintura e passando-lhe uma mão pelo pescoço. Entrou a criada, ficando muda de espanta.
— Ajude-me — suplicou Georgina procurando dominar-se.
A mulher acudiu, trémula.
— Será melhor... que me deixem...
— Cale-se!
Desta vez não foi uma ordem, mas sim uma imploração que brotou da garganta da jovem. Com muito trabalho, levaram-no para o quarto mais próximo e conseguiram deitá-lo. A criada queria fazer perguntas, mas a língua pegava-se ao céu da boca. Georgina deixou ao ar as feridas que acabava de produzir e tapou-as como pôde.
— Agarre-o! — ordenou à criada —. Não vá desmaiar!
E correu em busca do necessário para fazer o curativo. Quando o começou, Jerrigan, que lutava por conservar o conhecimento, disse com dolorosa ironia:
— Não se contenta em haver disparado? Quer liquidar-me agora com a cura?... Porque não tem sequer a ideia do que faz. Eu já lhe disse o mesmo quando se tratava de Jess Wolf.
— Dirija-me você — murmurou ela, humilde. E imediatamente, para a criada —: Os vaqueiros estão trabalhando perto. Corra a avisá-los. Um que venha para aqui e outros em busca do médico.
Continuou o curativo, sem olhar o rosto do ferido. Ele, sentindo que a noite ameaçava fazer--se a sua cabeça, deixava-a. Era curioso o forte contraste que oferecia a tensão furiosa daqueles dois seres minutos atrás e a lassidão de agora. Chegou apressado o primeiro dos «cow-boys», avisado pela criada. Antes que fizesse perguntas, Buck disse-lhe:
— Olá, rapaz... Julguei saber manejar os revólveres e resulta que uma simples brincadeira me jogou uma má partida. Ferindo-me a mim próprio...
Atónita, Georgina ordenou ao recém-chegado:
— Voe em busca de um médico! — E tão depressa ficou a sós com Jerrigan —: Porque mentiu?
— Temo os meus rapazes... sabe?... Se circula a voz que você me feriu... Bom, será melhor que não se saiba. Eu...
Pouco depois ficou sem fala. A noção das coisas afundou-se num abismo.
Foi uma discussão em voz baixa e dramática o que o fez voltar a si. Decorria na habitação ao lado. Jerrigan, conseguiu escutar:
— És um assassino, Charles! Acabo de te referir, a nobreza final desse homem...
— Deixa-te de sensibilidades! É a nossa oportunidade! Afasta-te! Acabarei com ele em seguida! Ninguém pensará mal de nós, visto que ele declarou ter-se ferido a si próprio.
— É horrível ouvir-te! És do mais desprezível que se possa conceber!
— Defendo a minha vida e os nossos interesses. Sabes bem que ele me procura para repetir comigo o que fez com Levinson. Se fica bom, continuará à minha procura.
— Defende-te quando chegar esse momento, como um verdadeiro homem!
— Prefiro actuar sobre o seguro! Tira-te do meio!
— Não!
— Terei de te afastar à força.
— Se dás um passo, mato-te!
— Georgina! Estás louca? Afasta esse revólver!
A porta abriu-se violentamente e no umbral apareceu a figura ensanguentada de Jerrigan.
— Aqui me tem, «herói»!
— Jerrigan!
A exclamação brotou simultaneamente das gargantas da rapariga e de Jory. Buck acrescentou, dirigindo-se a este:
-- Puxe a arma! Como vê estou cambaleante.
Assim era. O mulato cambaleava como se estivesse bêbado. Charles reconheceu-o e, vendo que não havia outra saída puxou a arma. Não a pôde utilizar. Antes que o conseguisse, o seu inimigo perfurou-lhe a testa com chumbo. Caiu de bruços, morto.
— — murmurou Jerrigan —. Já lhe tinha dito que havia preferido que se casassem.
Agarrando-se aos móveis, chegou até ao sofá próximo, ocupando-o. A rapariga olhava o cadáver como hipnotizada. Transcorreram minutos... Fora começou a produzir-se rumor atropelado de vozes. Depressa irromperam na habitação o capataz do «Fortaleza» e muitos vaqueiros do mesmo. Buck, prestes a desmaiar novamente, conteve-os com um gesto:
— Calma... Sofri um acidente. Esse coiote quis aproveitar-se... e pagou-o com a vida. Vamos. Levem-me.
A rapariga reagiu:
— Não! Você não está em condições de sair. Poderia ser-lhe fatal — voltou-se para os «cow-boys» —. Estabeleçam a guarda que quiserem, mas deixem-no. Eu tratarei dele.
Os lábios de Jerrigan entreabriram-se num indecifrável sorriso. Não fazendo caso da mulher, insistiu:
— Levem-me depressa.
*
Georgina pretendeu, em repetidas ocasiões, ver Jerrigan, sem o conseguir. Sempre, olhando-a com hostilidade, lhe repetiam secamente:
— Não quer receber ninguém.
Uma das vezes, apareceu Denny:
— Não voltes aqui. Isto é um inferno. E pede a Deus que o mulato se salve. Proibiu que me matassem, como queriam. Sem dúvida reserva--me para se cevar em mim quando se encontrar em condições. Vigiam-me a todas as horas e...
Interrompeu-se. Acabava de aparecer um dos vaqueiros com a mão apoiada sobre o revólver. Denny, trémulo, gaguejou:
— Desculpe... saí um momento...
Trémulo, voltou para casa.
— Que se propõem fazer com Denny? — perguntou ela.
— Nós?... Ah, se nos deixassem fazer com ele o que queremos!... Mas tranquilize-se. O patrão protege-o.
Desapareceu. Georgina, como nos dias anteriores, teve de se retirar fracassada e triste. E assim, semanas e semanas.
*
Certa tarde, Jerrigan, iniciado o período da convalescença, apanhava Sol junto de uns pinheiros. Encontrava-se abstrato, imerso o seu mundo interior. Um ruído de cascos próximo, tirou-o dos seus pensamentos. Quando dirigiu o olhar para quem se aproximava, a sua testa encheu-se de rugas. Ergueu-se com trabalho disposto a retirar-se, mas a voz doce, suplicante, da amazona conteve-o apesar da sua vontade:
— Por favor, senhor Jerrigan!
Georgina desmontou e aproximou-se, humilde. Ele reagiu bruscamente:
— Que quer? Porque não saiu já de Anglers inn? Estava preparando a bagagem no dia em que me feriu. Ainda não terminou?
Sentida por aquela hostil receção, a jovem murmurou:
— Não me senti com forças para me afastar sem estar convencida de que se encontrava livre de perigo.
— Se isso é tudo, não se detenha. Como vê, sou mais forte que as suas balas.
— Continua detestando-me, não é verdade?
— Pode duvidá-lo?
— Porquê, então, não disse que fui eu a autora da agressão?
— Bem o sabe. Quis livrá-la do castigo que lhe teriam infligido os meus rapazes, para ter a satisfação de a afundar pessoalmente.
— E... que aguarda para o fazer?
— Vem desafiar-me?
— Não. Venho pedir-lhe perdão, já que até agora não me foi possível, e dizer-lhe que, declarando-me vencida, lhe cedo o meu rancho pelo que queira dar.
Buck mordeu os lábios. Georgina cedia-lhe seu rancho depois de se proclamar vencida. Conseguir isso fora um dos seus principais propósitos; porque estremecia agora? Se desejava que aquela mulher se afastasse para sempre, porque se sentia dominado pela angústia, temendo que, ao desfazer-se do «Cruzes de Ouro», empreendesse a partida? Procurando enterrar os seus rebeldes e torturados sentimentos, respondeu:
— Não me interessa a compra.
— Nem quer perdoar o mal que lhe fiz? Não há maneira de aplacar esse seu ódio?
— Não.
Com lágrimas na voz, ela insistiu:
— Porquê?
Vacilou Jerrigan. Um sentimento de ternura fê-lo sentir-se débil. Girou sobre os tacões, cravou o seu olhar de fogo nos olhos dela e disse:
— Oiça: apesar da boa posição económica que gozava meu pai, eu, desde muito pequeno, sofri grandes desprezos... porque era mulato; tinha um irmão que adorava; a cor da sua pele, branca como a minha, não denotava a sua origem, Enamorou-se de uma rapariga que, ao inteirar-se da verdade, o expulsou indignada. Morreu de tristeza. Jurei, então, ódio aos brancos. Incrementei a fortuna de meu pai e pus em jogo o meu poder crescente para combater os de «sangue puro». A causadora de que meu irmão caísse na flor da juventude, acabou na miséria. Continuei desferindo lançadas à direita e à esquerda. Houve ocasiões em que me senti cansado; pensei que entre os meus inimigos havia pessoas generosas, mas. quando estava melhor predisposto, aparecia alguém que assoprava as cinzas. A última foi você. Decidi afundá-la. Quanto disfrutei vendo-a desesperada, tendo humilhado perante mim, como um cão, o seu irmão Denny!...
Fez uma pausa. Georgina, com os olhos muita abertos, respirando com dificuldade, ouvia-o suspensa. Continuou ele:
— Os mulatos são filhos de Deus como os demais. Disseram-me várias vezes para me acrescentar a ira... ou para me inclinar à piedade quando observava um gesto nobre nas demais pessoas, como me ocorreu com Ernest Ryan quando ao querer vender-me o seu rancho pronunciou esta frase. Sim; filhos de Deus como os demais mortais e, por vezes mais dignos de clemência que os brancos. A sua curiosidade já está satisfeita. Vá-se embora, agora! Saia da minha vista e leve o seu irmão, se é isso que a detém! Ordenarei que o libertem. Renuncio à vingança. Contento-me em satisfazê-la a si com a sua estúpida soberba e a desprezar o rebotalho que me serviu, sem o encarcerar, para provar-lhe que os nomes são honrados pela conduta e não pelo sangue daqueles que os usam.
Voltou-lhe as costas, deixando-a aturdida e chorosa.
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